segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

ouro


debaixo das cidades correm ainda os rios de outrora, autêntica rede de veias que de vez em quando, aqui e ali, rompe à superfície e traz suspiros do interior do corpo da terra. como toda a gente sabe, nada é estável sob a fixidez rígida dos prédios, e nem para isso é preciso relembrar a voracidade dos milhões de ratazanas negras que habitam a humidade dos intestinos da noite.
quanto aos edifícios, eles apenas testemunham uma vontade insensata de arquitectar, de acrescentar volumes, um pouco à semelhança das palavras, que não cessam de engendrar outras palavras, ou das pessoas, que não terminam jamais de se agitar. Porque, embora um mundo sem movimento seja absolutamente inconcebível, a natureza dos seres consiste precisamente nesta sobre-irrequietude constante, sucessiva, em excesso e sobreposição, além de subterrânea, prestes sempre a emergir, a rebentar à superfície, ou mesmo a espalhar-se por todo o lado, como a luz, ou as grandes epidemias que vêm dos canos e dos tubos que perfuram o território natural.
há uma redundância geral que está sempre em crescimento, tão incontível como o serpentear das raízes debaixo de terra, quais odaliscas infernais.
pelo contrário, um mundo sem movimento seria talvez habitado por pássaros gélidos, por fotografias, fotografias frias numa paisagem horizontal, contendo todos os tons do branco. esse mundo seria desprovido de sistema nervoso, e as próprias estátuas fariam os seus gestos magníficos sem qualquer efeito, porque não teriam nenhum olhar para as ver. a carne seria da cor da massa de polvos, esponjosa e cheia de olhos cegos.
é possível que deus tenha criado esse mundo-outro, entre múltiplas possibilidades; mas, se o fez, fê-lo como o artesão da matéria amassada, o padeiro que sobre a sua mesa divide a matéria-prima dócil em formas: esta parte para aqui, aquela para ali, e cada uma delas com o seu destino independente.
do mesmo modo existiram na imaginação dos homens cidades do ouro, em que os horizontes eram insuportáveis de ver a certas horas, tal a resplandescência da atmosfera.
entre as mulheres nuas, balouçando em cadência, quais ninfas do novo mundo, e a ganância do ouro, de pegar, comer, e de se identificar com ele, até os mais polidos aristocratas a cavalo, por um segundo, hesitavam, no momento esplendoroso da descoberta. Como se tivessem ficado à porta de uma fotografia de cândida hofer, temendo entrar em tamanha monumentalidade, disponibilidade, presença.
é: o ouro enlouquece mais que o vinho ou a luxúria, é um valor mais perene, queima as mãos e converte-se em anéis de luxo que se colam à identidade da pessoa. por isso todos o procuram, e os que têm tal poder levam milhões de homens, como ratazanas, a buscarem dia e noite debaixo da terra, cobertos de suor, uma riqueza que julgam poder depois ficar para eles.
nada escapa à perseguição do ouro: nem as faces das imagens nas igrejas, nem as lombadas dos livros que há séculos ocupam o seu lugar próprio nas bibliotecas, fazendo brilhar ainda mais os conteúdos, nem o próprio coração dos românticos burgueses que por vezes com punhais de ouro se suicidam.
enquanto nos quartos ao lado as ninfas de klimt se masturbam com falos de ouro maciço, com ornatos em forma de cabeças de leão nas glandes, encontrados em pompeia, e que já há séculos faziam as delícias das mulheres deixadas umas às outras, e à ignorância da lava que as viria a fundir.


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