terça-feira, 16 de janeiro de 2007

prata

“pois em nenhum lugar se permanece imóvel”
(Rilke, Elegia 1)
o meu amor adoeceu.
e passou então a ocorrer sob as mais diferentes aparências, como se as forças que o trabalhassem tivessem a ver, em algo de fundamental, com o princípio da metamorfose.
às vezes eu encontrava-o pousado na berma do grande muro, olhando o nevoeiro, como que mirando fixamente, e sem qualquer roupa, o interior desse halo que parecia subir lá de baixo, das profundezas do abismo, de onde a terra exala o seu hálito branco, aquele que sobe com lentidão e silêncio pelas encostas, absorvendo tudo, as árvores centenárias, os animais adormecidos.
não sei se a sua fisionomia de grande ave seria suficiente para se lançar no vazio, vencendo - com os músculos prateados das asas, os olhos radiados de vermelho, e a vontade adunca das garras - a distância até à incógnita que parecia cercar o castelo.
outras vezes foi surpreendido de costas, descendo entre veredas para o rio, por tempo quente, e portanto admitindo a hipótese de se ir banhar, acentuada pela visão das nádegas, cuja cor e concentração tanto contrastavam com o verde disperso da vegetação em volta. não se sabe se alguma vez apareceu a flutuar à superfície das águas, como se fosse uma grande folha de nenúfar, ainda viçosa, ou já entregue à deriva da corrente.
talvez para mim o mais perturbante fosse vê-lo sentado nos grandes canapés de verga das marquises, sempre de rosto invisível, e como que parado no seu movimento, parecendo estar continuamente absorvido no acto de bordar, debruçado para a frente, o seu próprio segredo.
reflectiam-se-lhe então nas costas as cores esfumadas dos vidros, muito variadas, possivelmente a simbolizar essa mesma indecidibilidade que alimentava as suas aparições.
foi então que sais de prata começaram a invadir-lhe a superfície da pele, como se fossem folhas espalmadas de fetos dermatológicos, muito finos e belos; e, à medida que tais formas se espalhavam, a sua imagem ia-se progressivamente dissolvendo no outro mundo.

copyright voj 2007

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