segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

jadeíte


as minhas mais permanentes companheiras são as árvores que avisto do meu escritório, em casa, quando estou sentado na longa secretária em frente ao computador, com os livros à volta e as estantes em frente, rodeado de aparelhos e de vasos, pequenos receptáculos de memórias: a família, poderia dizer.
ao olhar para a minha esquerda, na direcção da janela, lá estão elas, como sentinelas da minha própria distracção. isto é algo que dá um conforto imenso, até porque variam muito de aspecto e de cor ao longo das horas, dos dias, das estações, chegando a brilhar com um verde de lagarto, e lembrando até por vezes o esplendor polido da jadeíte. no meio da leitura dos livros, estas coisas cintilam como surpresas, como pequenas aparições indeléveis.
a sua presença é aliás uma garantia de estabilidade, de que a vida, apesar de todos os estremeções (e às vezes o vento, vindo do mar, abana-as com muita violência) mesmo assim permanece, e o coração continua a bater à cadência do relógio de corda, da regularidade em que passam carros ao longe, do ritmo com que as estantes seguram as lombadas e as jarras a disposição da flores secas: a estética das pequenas coisas.
por outro lado, não há dúvida de que se trata, também, de uma pintura, de uma verdadeira pintura a óleo; de maneira que, quando uma imagem é assim tão invasora, permanente e bela, contém todas as outras, e portanto estar aqui sentado é como percorrer os museus do mundo, sala a sala, cidade a cidade.
uma paz (costuma-se dizer: interior) vai-se depositando a cada passo, à medida que se caminha sobre uma espécie de caruma, e ela traz um som e um cheiro da infância, quando íamos para os pinhais a correr, na ânsia daqueles tempos.
são basicamente pinheiros bravos, altos, o que, para os fitar (às vezes lembro-me deles, de que possivelmente estou a perder qualquer coisa concentrando-me apenas na minha acção, numa atenção que me transporta, que me leva a não parar durante horas seguidas), me obriga a levantar um pouco a cabeça; desenham por assim dizer no topo das copas uma linha ondulante, que ora sobre, ora desce; é bonito.
mas há outras árvores em planos situados mais abaixo, redondas, eventualmente cobertas de flores, plantas diversas e canaviais – talvez resquícios do jardim botânico que dantes chegaria até aqui.
e umas casas baixas, com hortas, onde passam pessoas cujas vozes às vezes se ouvem; inclusivamente, juntam-se de vez em quando num pequeno largo que só avistaria de outra janela, e ali rezam e cantam a nossa senhora. é verdade isto, não deliro, pois existe aqui mesmo ao pé.
a prova de que não me engano é que - por alturas da páscoa, creio - já tenho visto um cortejo de gente a passar com uma imagem sobre um andor, na rua, lá em baixo. agora, quando ouço isso, já não é novidade, nem me levanto daqui, não interrompo o meu trabalho, e penso só: lá vai a população a celebrar, passou mais um ano. é enternecedor o tempo, a maneira como é celebrado, os ritmos, a simplicidade das tarefas, das idas e vindas. e olho a vegetação, a minha companheira - mesmo que enegrecida pela noite, desfocada pela luz dos candeeiros que abre pequenas clareiras, ou halos de visão - com uma certa cumplicidade e tolerância para com os seres humanos. a alma deixa então os pequenos insectos noctívagos alimentarem-se sob a caruma, como um húmus calmo.
de facto, quando anoitece, sei que as árvores continuam lá, porque voltam a aparecer, alinhadas, no dia seguinte. como uma caravana que estivesse fotografada, sempre na mesma posição ou pose sublime, apenas variando a paleta de luz que a vai iluminando ou apagando, conforme.
entre elas é frequente uma luz aparecer ou desaparecer. já me tem lembrado alguém que, ao longe, estivesse a fazer sinais de luz, como um barco perdido no mar, ou um farol; mas devo reconhecer que é muito provavelmente um candeeiro de estrada mais longínquo, e que a ondulação das copas é que causa esta intermitência, isto é, o facto de tão depressa esse brilho surgir, como não. às vezes lembra um pouco aquele quadro de magritte que representa uma casa, entre árvores, cujas luzes no interior já estão acesas, com o secretismo das janelas à noite; e, no entanto, no céu por cima ainda resplancesce a luz do meio-dia. mas não sei por que faço esta associação de imagens.
outras vezes há grande vozearia ao longe. são, imagino - pelo tipo de tom que os gritos adquirem, apesar de estarem voltados para o outro lado do vento - os estudantes, provavelmente vestidos de preto, reunidos, repetindo as mesmas frases, não sei bem o quê. talvez tenham bebido muita cerveja, e celebrem também, com os seus signos e ritmos próprios, qualquer coisa. é sempre preciso, o acontecimento, a desmedida.
na verdade, as ruas paradas, apenas rodeadas de muros e sebes antigas, parecem ser em geral insuportáveis para as pessoas, que correm na obsessão de se divertir; apenas os pintores, os poetas, demoram mais o olhar, mas disfarçadamente, para que os vizinhos ou os que vêm à janela não os confundam com loucos, ou drogados, gente que não está em si nem desempenha qualquer função previsível.
por mim, nos últimos dias tenho recolhido na rua, num preciso sítio onde está uma árvore frondosa, uns frutos grandes, que enegrecem, e tombam por esta ocasião do outono. tenho-os aqui à minha volta, em várias pequenas jarras. parece que são infrutescências, que formam favos, ou reentrâncias no seu corpo, todas voltadas para cima; e dentro deles brilham, como que espreitando, pequenas intumescências muito vermelhas.
são belos, são magníficos de terem sido assim apanhados como esculturas um pouco desgastadas no chão, gratuitas, e parecendo cheias de reconhecimento.
também os contemplo. e pergunto: se eu tivesse as pupilas, que nunca observei atentamente, feitas de jaspe puro, extremamente liso, que veriam os meus olhos?

copyright voj 2007

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