terça-feira, 16 de janeiro de 2007

cristal de rocha

um dia encontrei a Realidade, e decidi tentar penetrar nela: com um golpe de cintura, passar finalmente para esse outro lado do espelho que sempre me intrigara.
cansado de literatura, de filosofia, de tudo quanto o ser humano engenhosamente engendrara, percorrido por mil vozes de poetas que me sussurravam na neve como ruídos de trenós ao longe, num coro louco e esmaecido pelas nuvens vermelhas do nascente, desejei inadiavelmente lançar-me ao vento, expor-me ao desconhecido, trepar por uma pedreira alta e brilhante, entregar o meu corpo a uma mulher nua.
e exigir, para execução imediata: trabalha comigo, de uma vez por todas, restaura-me como se eu fosse um móvel, faz-me esquecer todas as palavras, todas as astúcias do verso.
leva-me para longe da terra do sentimento, esfrega-me contra as pedras lisas da ribeira para me tirares este sarro horrível de tudo o que me ensinaram, faz-me esquecer, nem que seja por momentos, as multidões de metáforas hirtas, de sapatos altos de bico, intactas na sua beleza, que me perseguem e me assustam. porque não há condição mais triste, mais penosa, do que viver entre citações, do que ser compelido todos os dias à frase, não conseguir escapar ao discurso que envenena mais do que o fumo do cigarro nuns pulmões cobertos de pólvora.
dá-se um pano sujo, embebido em experiência, esfrega-me os olhos com lixa, crava-me as costas de pequenas lascas de cristal de rocha, e, com essa tábua viva, passa-a sobre a terra, como se fosse um instrumento de lavoura.
é tudo o que peço, envenenado pouco a pouco por poesia, poluído de leituras, cansado de inteligência e de sublime: dá-me finalmente Fealdade.

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