quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Livro muito interessante


Fonte da imagem: http://www.livroscotovia.pt/

Alguns conceitos fundamentais em Giorgio Agamben
(64 anos, filósofo italiano, prof. nas Univs. de Veneza e Paris, antigo aluno de Heidegger), livro Profanações, Lisboa, Cotovia (ed. orig. 2005- ed. port. 2006) (reproduzidos aqui segundo organização minha, e com autorização da editora)

- Capitalismo – é uma religião, a religião de modernidade (Benjamin) e não apenas uma secularização da fé protestante (Weber). Desenvolve-se parasitariamente a partir do cristianismo. É uma religião baseada no cumprimento de um culto (não de um dogma ou ideia) muito extremo e absoluto; esse culto não tem interrupções, é permanente (o dia de festa é o dia de culto); o culto dirige-se à própria culpa (e ao desespero), não à sua redenção ou expiação. É uma religião da consciência culpada, universal, enredando Deus nessa culpa. Não visa a transformação do mundo (como outras religiões), mas a sua destruição. Nietzsche teorizou essa culpa, sob a forma de solidão, bem como Freud (o remorso é o capital recalcado no inconsciente) e Marx (através do socialismo). O capitalismo generaliza e absolutiza em todos os
âmbitos a estrutura de separação própria da religião, herdada do cristianismo. O processo de separação não é o do sacrifício, mas é único, multiforme, incessante, investindo todas as coisas e todos os lugares, toda a actividade humana, dividindo-a de si mesma. Profanar tornou-se impossível, ou muito difícil.
- Consagrar (sacrare) – retirar as coisas da esfera do direito humano.
- Consumo – uma das formas (abusus) da impossibilidade do uso, tendo como outra face o espectáculo: o que não pode ser usado é destinado ao consumo ou à exibição espectacular. Cada coisa é exibida na sua separação de si. O consumo, que destrói necessariamente a coisa, é a impossibilidade ou negação do uso, é sempre passado ou futuro (memória ou expectativa). Só existe ao desaparecer.
- Criação de um novo uso – é unicamente possível para o homem se desactivar um velho uso, tornando-o inoperacional.
- Cristianismo – Deus entra como vítima no sacrifício; (reproduzido na missa), introduzindo em si uma separação que, no paganismo, tinha apenas a ver com as coisas humanas. Duas naturezas passavam a estar integradas sem ambiguidade numa única pessoa ou vítima (encarnação). Ou seja, a esfera divina parecia estar a colapsar para dentro da humana e, vice-versa, o homem a trespassar para o divino. Este aspecto também criou dificuldades no entendimento da omousia, ou dogma da Trindade.
- Defecação – escondida atrás de interditos. É um campo de tensões polares entre natureza e cultura, privado e público, singular e comum. Qualquer tentativa de profanação das fezes desemboca num sentido paródico.
- Encarnação – esta doutrina cristã garantia que as naturezas divina e humana estavam presentes sem ambiguidade numa mesma pessoa.
- Habitar – a pátria dos cristãos era o céu, pelo que eram estrangeiros na terra; mas na religião capitalista não há pátria, habita-se a pura forma de separação, tanto em casa e na cidade de origem, com os seus centros comerciais e TV, como na concretização da deslocaççao turística.
- Homo sacer – indivíduo excluído da comunidade, podendo ser morto impunemente, mas não sacrificado aos deuses. É um homem sagrado que sobreviveu ao rito que o separou dos homens. No mundo profano, tem um resíduo de sacralidade; na esfera divina, é excluído do culto porque a sua vida já é propriedade dos deuses (mas conserva um resto de profano no mundo do sagrado).
- Improfanável – sistema, situação que é, ou resulta, d(a) captura e desvio de uma intenção autenticamente profanatória.
- Infelicidade do consumidor – resulta de consumir objectos que incorporam em si a própria impossibilidade de uso, mas também, e sobretudo, porque ele pensa exercer o seu direito de proprieade sobre aqueles objectos, na medida em que se tornaram incapazes de os profanar.
- Jogo – utilização (ou re-utilização) incongruente do sagrado. Constitui uma das formas de passagem do sagrado para o profano. Jogo, rito e sagrado são esferas extremamente próximas. A maior parte dos jogos deriva de antigas cerimónias sagradas, rituais, práticas divinatórias. O jogo representa de certo modo a subversão do rito, pois despedaça a unidade entre mito e rito: como ludus (jogo de acção) abandona o mito e conserva o rito; como jocus (jogo de palavras) anula o rito e conserva o mito. Só metade da operação sagrada (mito mais rito) se realiza através do jogo (reduzindo o mito a palavras e o rito a acções). O jogo liberta a humanidade da esfera do sagrado mas nunca totalmente.
- Linguagem – está hoje investida de um vazio, esvaziada do seu potencial profanatório, indisponível para novas experiências da palavra. Os media dizem o seu próprio nada.
- Meios puros – esfera muito precária, representada pela desactivação e ruptura de todas as separações. Os dispositivos do culto capitalista são meios puros, isto é, agem sobre comportamentos separados de si mesmos, dissociados da sua relação com um fim. O capitalismo é um sistema gigantesco de captação de meios puros, quer dizer, dos comportamentos profanatórios.
- Museu –corresponde ao auge da (exposição) da impossibilidade de usar, de habitar, de experimentar. É uma dimensão separada para a qual se transfere o que em tempos era sentido como verdadeiro e decisivo (cidades, regiões/parques/oásis naturais, indivíduos, formas de vida), e já não o é. Ocupa na religião capitalista o lugar antigamente reservado ao templo.
- Negligência – atitude livre e “distraída”, livre da religio das regras, face às coisas e seu uso, às formas de separação e seu significado. É a atitude oposta à da religião.
- Operação sagrada – junção, unidade consubstancial de mito e de rito.
- Operações políticas – tanto a secularização (exercício do poder que garante, reportando-o a um modelo sagrado) como a profanação (desactivação dos dispositivos do poder restituindo ao uso comum os espaços que aquele tinha conquistado) o são.
- Pornografia – contacto despudorado e directo com o espectador, pura exibição (valor de exposição, de Benjamin). Mas o seu consumo solitário e desesperado substitui-se à promessa de novos usos, tentando tornar improfanável este campo.
- Profanar – restituir as coisas sagradas ou religiosas ao livre uso comum (incluindo a propriedade) pelos homens. Abre uma forma especial de negligência que ignora a separação, ou faz dela um uso particular, jogando com o uso. A profanação do jogo não diz apenas respeito à esfera religiosa. Em muitos casos, a profanação é a passagem de uma religio (sentida como falsa e opressiva) para a negligência da vera religio, numa nova dimensão do uso (não confundir com desleixo). A profanação implica uma neutralização daquilo que profana: o que estava indisponível e separado perde a aura e é restituído ao uso. A religião capitalista, na sua fase extrema, visa o absoluto improfanável. Consegui-lo-á?
- Profanare – ambíguo, porque significa em latim quer tornar profano, quer sacrificar. Tanto a operação profanatória, como a sua oposta, a consagratória, são constitutivamente ambíguas, na medida em que se articulam com a passagem de um mesmo objecto de uma esfera (sagrada, profana) para outra, mantendo sempre esse objecto um resíduo da sua qualidade anterior.
- Propriedade – dispositivo que desloca o livre uso dos homens para uma esfera separada, na qual se coloca em direito.
- Pura – tal como profana, é a coisa devolvida ao uso comum dos homens.
- Religião – o que retira coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum, transferindo-os para uma esfera separada. Não existe religião se não houver separação.
- Religião capitalista – realiza a forma extrema, pura, de separação (nada resta para separar). Profanação absoluta e consagração vazia, integral, coincidem. Mercadoria, linguagem, sexualidade, corpo humano, tudo o que é representado, vivido, produzido, é dividido de si próprio e deslocado para uma esfera separada (fetiche inantingível). Aí não há divisões substanciais e qualquer uso duradouro é impossível (consumo).
- Religio – não deriva de religare (unir o humano e o divino) mas de relegare ( atitude de escrúpulo, de atenção, de inquieta hesitação - “reler” – perante as formas e as fórmulas a observar na separação entre o sagrado e o profano). É aquilo que zela por manter distintos homens e deuses.
- Rito – separa o profano do sagrado nos dois sentidos.
- Rosto da mulher – ao sentir-se observada, torna-se intencionalmente inexpressiva no rosto, no que se pode relacionar com a indiferença descarada dos manequins (modelos), pornostars e outros profissionais da exposição. Trata-se de dar a ver a pura acção de dar a ver (medialidade). Paradoxalmente, assim inexpressivo, o rosto disponibiliza-se para outros sentidos e para novas formas de comunicação erótica. Im passível, dá-se a ver como lugar ilibado da expressão, como puro meio; nesse sentido, o dispositivo da pornografia procura neutralizar o potencial profanatório assim aberto.
- Sacer – aquilo que através do acto solene da sacratio ou da devotio foi entregue aos deuses, sendo sua pertença exclusiva.
- Sacrifício – dispositivo que acciona e regulamenta a separação. Através de rituais minuciosos, ratifica, caso a caso, a passagem de qualquer coisa do humano para o sagrado, divino. Na máquina do sacrifício, sagrado e profano representam dois pólos de um sistema em que um significante flutuante, referindo-se ao mesmo objecto, transita de um âmbito para o outro.
- Sacrílego – qualquer acto que violasse os interditos relacionados com a indisponibilidade das coisas religiosas.
- Sagradas (dos deuses celestes) ou religiosas (dos deuses ínferos) – coisas que pertenciam aos deuses. Retiradas do livre comércio, não podiam ser vendidas nem empenhadas, cedidas em usufruto ou oneradas.
- Secularização – forma de remoção que deixa as forças intactas, limitando-se a deslocar (por ex., deslocação do poder da monarquia celeste para a terrestre).
- Separação – qualquer que seja, conserva em si um núcleo genuinamente religioso. Ela exercita-se, por exemplo, na esfera do corpo (repressão e dissociação de certas funções fisiológicas, como a defecação).
- Transubstanciação – segundo o cristianismo, as espécies do pão e do vinho transformavam-se, sem resíduos, no corpo de Cristo.
- Turista – peregrino incessante, sem paz, da religião capitalista. Porquê sem paz? Porque ao contrário dos antigos peregrinos, que, à chegada, participavam do sacrifício, separando a esfera do sagrado da do profano, os turistas celebram na sua pessoa o sacrifício da experiência de uma impossibilidade de uso.
- Umbral – limite, cesura que a vítima do sacrifício tem de atravessar (da esfera humana para a divina, ou vice-versa).
- Uso (ou uso comum) – só se lhe acede através de uma profanação. A religio, já não observada mas jogada, abre a porta do uso. O uso pressupõe que a substância da coisa permanece intacta. O uso nunca pode constituir uma propriedade (dominium), pois se refere às coisas na medida em que estas são inapropriáveis.
- Valor de exposição (Benjamin) - não é valor de uso nem de troca, mas um terceiro termo [conceito discutível à luz dos trabalhos de J. Baudrillard - anotação de VOJ ].

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