quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Senso comum, ética mínima, sobrevivência

Publicado em:
jornal "A Página da Educação", nº 163, Janeiro 2007


Qualquer forma de sociabilidade – qualquer relação social – se apoia na partilha de um número mínimo de normas ou comportamentos tacitamente acordados, muito mais do que os expressos, legislados ou programados. Essa partilha implica formas de comunicação activa (“mobilização colectiva” mais ou menos subtil) entre os seres humanos, muitas das quais subentendidas ou não verbalizadas.
A “norma primeira” (para usar uma expressão redutora, pois não há nada de inicial de que todo o resto decorra) da sociabilidade parece ser a de uma forma qualquer de reciprocidade, ou seja, todo o indivíduo espera receber em troca do que dá, em maior ou menor grau, de formas muito diversas.
Não há nenhum acto desinteressado: desde o pagamento directo de um produto pelo seu preço no mercado de todos os dias (troca capitalista, com referência última ao dinheiro abstracto) até ao acto mais “generoso” de abdicação (espera de uma recompensa transcendente, por referência a um valor moral ou religioso abstracto).
É bem sabido quanto a retórica do desinteresse (nada compra a felicidade, a amizade não se agradece, não há nada que pague isso, há valores que estão acima de tudo, estou aqui para servir o país, etc.) é um ecrã (disfarce) para uma forma de vida centrada no interesse, ou melhor, de que o interesse é o próprio horizonte de desejo, a “parede última” (mesmo que etérea e movente) do sistema em que vivemos (“sistema” é um recurso retórico já muito usado, apenas para não cair aqui no desgastado conceito humanista de “natureza humana” a-histórica).
O melhor exemplo pode ser o amor (compaixão pelo próximo, companheirismo, amizade, amor familiar, amor apaixonado, etc.) : envolvendo, como toda a acção humana, esquemas inconscientes e de desejo, trata-se de uma emoção/acção em que a determinada altura o ser se entrega totalmente com uma expectactiva de retorno indefinida, mas que é incondicional e sobretudo especular: ao dar-se, o ser deseja o desejo do outro, deseja sentir que o outro o deseja com a mesma (ou equiparável) intensidade. Num certo sentido, nunca há encontro com esse mítico outro (projecção do eu): a sedução, por exemplo, é um processo auto-alimentado de reconfirmação do eu a si mesmo, de certificação de que se é desejável.
O objecto (último) de desejo (tem a ver com os fantasmas de cada um) é por definição inalcançável, para poder permanecer como tal. Substituimo-lo por pequenas aquisições diárias (compras, descobertas, escapadelas furtivas à rotina, pensamentos, investimentos de toda a espécie no eu), sabendo de antemão a (des)ilusão que daí advém. O medo, porém, de perdermos esse conforto (pela doença, pelo imprevisto) de nos mantermos como viciados consumidores (des)iludidos existe, é é mesmo fundamental. Vício consiste em desejar reiterada e ardentemente uma prática, mesmo sabendo conscientemente que ela é nociva ou até mortal : liga-se à necessidade de manter (“artificialmente”) um horizonte de risco, como forma de suster a pura previsibilidade ou colonização do futuro (o planeamento total é insuportável porque faz o sujeito sentir o que de facto é: um mero instrumento).
O que se dá e o que se recebe, apesar da ideologia capitalista, foge ao cálculo. É por isso impossível contabilizar racional e objectivamente se uma pessoa é justa ou injusta em relação a mim, se me dá tanto quanto eu lhe dou, etc. A vida quotidiana permanentemente escapa às regras maquínicas dos economistas e gestores, abrindo a porta das possibilidades de um futuro diferente, que hoje sabemos não ser conquistável pela força, nem a curto prazo (nem ter uma configuração imaginável).
Num certo sentido, o que funciona mal na economia é a nossa esperança; talvez pudéssemos dizer isso de toda a sociedade: as suas disfunções (maiores ou menores) são os caminhos por onde passa a história, uma história diferente que, entre outras coisas, abre a ilusão do futuro. Por exemplo, as pessoas jogam na lotaria e noutras apostas não porque pensem ganhar o grande prémio (a probabilidade é mínima), mas para comprarem uns dias de sonho, de possibilidade de se encaixarem numa pequena fissura institucionalizada no bloqueio das suas vidas.
Os economistas sabem muito bem desta economia libidinal (a economia é num certo sentido a única ciência exacta, porque mexe com o valor supremo, o dinheiro; não pode haver enganos porque estes levam à perda e à extinção; daí que sejam os ricos a controlarem, por especialistas que têm, cada cêntimo que podem poupar), que ainda por cima alimenta a publicidade e embraia o mercado e o consumo; por isso as ciências sociais (de cujos resultados todos nos servimos, incluindo evidentemente o capital) são um permanente campo de construção/desconstrução, de luta política, de jogo.
As várias componentes da sociedade (desde o gestor de multinacional ao sem-abrigo) utilizam de modos diferentes e mais ou menos conscientes os resultados da objectificação (promovida por aquelas ciências) dos seres humanos no mundo do senso comum, da chamada vida prática, na acção corrente. Todos fazemos parte do mesmo sistema, alimentando-o até nas suas margens – ele é suficientemente poderoso (de momento) para abranger essas dilatações. Nunca estivemos tão conscientes da ausência de externalidades (perdemos o Grande Outro por excelência, Deus; ele passou a depender da minha opção íntima de crer nele), e é por isso também que a nossa época é neo-barroca: agita-se e dobra-se irrequieta dentro de um espaço fechado (apesar dos seus discursos históricos sobre a inovação, a aventura, o céu como limite, etc.).
As formas de sociabilidade instalam e reforçam cada dia algo de comum, que é volátil, fragmentário, fluido e dependente dos contextos; mas sem essa comunidade mínima tácita (sempre em reforço e em desconstrução, em esforço, se quisermos, em desgaste de energia) a vida seria impossível.
Todas as pessoas pensam, e sabem, e sonham; têm é diferentes formas de o fazer, e diferente acesso aos chamados bens culturais, que permitem atingir níveis de verbalização e aumentar certos tipos estratégicos (no mundo de hoje) de auto-reflexividade, porque formais, abstractos, e portanto investíveis (como o dinheiro) em boas aplicações.
A mobilização de recursos, rápida, está ligada ao poder, no sentido que lhe deu Foucault, isto é, à capacidade de autonomia de cada um e de negociação de um espaço de actuação e de visibilidade, de inclusão, de auto-produção no campo social como “actor”, como sujeito e não como mero objecto. Muitas pessoas são de facto transformadas (aparentemente, pois todas têm algumas formas de resistência) em objectos, que se vendem (a sua capacidade de trabalho, por muito sofisticado que seja, dado situarmo-nos numa economia de signos, quer dizer, num capitalismo financeiro onde tudo se tornou volátil, metafísico) estando objectivamente impedidas na vida de todos os dias de se construir como elementos de disputa do campo social. É pela consciência desta situação que passa, hoje, entre múltiplos outros aspectos, a distinção entre direita e esquerda.
Muitos seres humanos, crescentemente, terminam como excluídos. Um excluído é um indivíduo a quem foi recusada (ou que recusou a ele próprio) a capacidade de sonhar poder intervir na comunidade, e em última análise que se sabe condenado à morte a prazo mais ou menos curto. As perdas assim obtidas (incluindo as resultantes de pandemias, do tráfico de drogas, de seres humanos, do crime) são de certo modo homeostáticas face ao cinismo do sistema: se todos os excluídos entrassem no “mercado de trabalho” este não poderia funcionar com as suas actuais regras depredadoras (dos seres, do ambiente, etc.). A exclusão funciona hoje como mecanismo homeostático, como as grandes guerras no passado: e mesmo assim, a população aumenta assustadoramente, tanto quanto a depredação de recursos do planeta e a concentração dos capitais.
O valor (mítico) dado por exemplo à poesia (“versão profana do texto santo”, nas palavras de Eduardo Lourenço, 2006) e, de uma maneira geral, a todas as formas de expressão estética ou de criatividade, liga-se à necessidade de evasão (tornada palavra de ordem) dos incluídos, que não suportam as rotinas disciplinares impostas pelos sistemas produtivos, pela complexidade dos protocolos e das regras a cumprir (exigindo atenção vigilante permanente) e pelas próprias normas repetitivas formais a que os sistemas religiosos tradicionais estão obrigados (sob pena de se desfazerem; não há transcendência sem ritos que a reforcem). Aqui entram como muito úteis as reflexões de um autor como M. de Certeau sobre a subtil resistência das pessoas na vida de todos os dias ao que lhes é imposto.
Também é evidente, à luz deste contexto de evasão e de mobilidade (as pessoas estão deslocadas de si mesmas, são nómadas dentro um espaço cartografado e localizável, de que o telemóvel, mas também a internet são, por exemplo, elementos- fetiche paradigmáticos) a crescente importância do turismo, que se desmultiplicou em infindas variantes, como o resto do mercado. É o padrão dos tempos modernos: sob o pretexto do descanso ou do trabalho, da distracção ou da crença, da própria relação afectiva ou de sociabilidade, a mobilidade, a viagem, a deslocação, o turismo, estão no centro de tudo, tornaram-se comportamento de massas.
Desloque-se para fazer o que gosta (lazer) ou o que precisa (emprego), fique em casa (teletrabalho, resolução de questões administrativas do cidadão via internet, comunicação e lazer, etc.) sempre que possa. Assim, entre os espaços da deslocação rápida (os não-lugares) e os espaços da domesticidade (refúgio uterino), vão-se erosionando as antigas formas de sociabilidade e tornando muito mais complexas, por vezes conflituais, titubeantes, modos alternativos, emergentes, sem as quais as pessoas não poderiam viver.
Claro que para muitos o entretenimento (cultura própria da sociedade de massas, que propugna o hedonismo mas onde as pessoas cada vez mais recorrem, se o puderem pagar, aos curandeiros psicológicos, desde os gurus aos psiquiatras) passa apenas pelas suas formas mais acessíveis e vulgares, sendo apanágio de uma minoria o consumo de produtos sofisticados, exóticos, que o mercado disponibiliza constantemente, numa combinatória que dá a ilusão de novidade. Nesse jogo entra a questão das distinções sociais, relacionada obviamente com o poder.
Como sempre aconteceu, os que têm mesmo poder são invisíveis, deslocam-se rapidamente e estão apartados do constrangimento das massas. Por isso aqueles que têm de se mostrar, de aparecer nos media, que precisam constantemente de ser vistos para existir (incluindo os políticos) provocam um sentimento de certa compaixão, são caricatos.
Na sociedade da imagem, o núcleo do poder não tem ícone, como sempre aconteceu: é irrepresentável, só se dá a ver por sinais, tem a estética do sublime, do divino (mas vê-nos a nós constantemente). Por isso até os grandes jogadores de futebol ou as estrelas de cinema ostentam o mesmo “glamour” das outras “modas”: estão destinados mais cedo ou mais tarde à reciclagem como figuras canonizadas, quer dizer, como património.

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Dezembro de 2006

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