quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

serpentina


não te cansam os dias, esta rotina de escutar o corpo, de estar sempre a pensar, de termos de cumprir tantas regras e ritos, de responder a tantas solicitações do mundo exterior?
esta suspeita de que, por mais que procuremos, jamais encontraremos, e de que a nossa própria natureza é precisamente a de não poder encontrar?

às vezes entrevejo o teu vulto a acercar-se de uma janela.
e imagino: é ela.
finalmente chegou.
e vai continuar a aproximar-se inexoravelmente do parapeito. deixando, atrás das espáduas brilhantes, séculos e séculos de saber e astúcia, para executar o gesto definitivo, a consumação da paixão.
mas qual?

traz os tornozelos orlados de pérolas, traz o seu colar de serpentina, que é aquele com que o ser se aproxima do vermelho dragão, o bicho que estica a língua enorme dos paradoxos, e nos sorve para dentro de si.
ela é a única capaz de o olhar frente a frente, de o fazer ajoelhar no chão domesticado.
e julgo acreditar.

mas põe-se a noite dentro da sala, e o corpo entrevisto continua ainda o seu movimento hirto, soberano. percebo quanto um trajecto pode marcar a beleza dos eixos verticais.
daqui a quanto tempo se saberá, porém, o desfecho?

só ouço, a caminhar pelo corredor que vem do fundo, negra, uma máquina de costura antiga, com o som de estar a trabalhar, com aquele matraquear das agulhas no vazio, como se fossem passos de uma avó grande, de um vulto castigador e de pesadelo.

está tudo tão parecido com o nada, tão em sossego, entre esta desinquietação das coisas.
que é esse tudo? é a cor, são as arquitecturas, é a luz e o calor que irradiam da serpentina, que saem de todo o quadro – afirmo peremptoriamente.
do resto não sei, o texto é opaco, resiste como um cão danado a que se lhe tire o segredo de entre as silabas aceradas.

copyright voj 2007

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