segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

turquesa

para s.

vou-te contar uma história infantil.
era uma vez uma menina que era pobre; usava em casa umas pantufas onde se reflectia o seu olhar, que era triste; e o mais curioso é que os seus olhos pareciam duas pantufas, duas pantufas pousadas.
mesmo quando ia à rua com a mãe fazer compras, o seu olhar era assim, como que a acomodar-se ao que, mais tarde, se sentiria ao vê-lo nas sucessivas fotografias que se tiram numa existência, que é tudo o que depois resta de um rosto, de uma pessoa viva.
essa menina não tinha televisão, nem quarto próprio na pequena casa onde habitava, assombrada por uma avó que tapava a pouca luz que se desprendia da janela estreita.
só tinha um gato, mas este era preto, e olhava de noite com os seus olhos interrogantes, amarelos, como se lhe dissesse: nós os dois não tivemos sorte, não vamos nunca ser felizes.
mas um dia as pessoas talvez se comovam ao ver as nossas fotografias, ao perceberem que não podíamos fazer nada a respeito disto: o que era realmente importante passou-nos mesmo ao lado, e deslizou com o vento, anonimamente, pelos túneis do tempo.
e a menina ficava longamente a pensar: se eu soubesse como falar com um gato poderia talvez entrar em contacto com ele, isto é, podia fazer dele uma pessoa, e não viver assim separada da sua mudez, na minha mudez.
e acariciava-o como quem olha uma fotografia de si mesmo vinte anos mais tarde, ou seja, como quem encara de frente, mesmo sem o saber bem, a sua radical impotência.
naquele prédio havia também uns senhores ricos que já tinham televisão, embora a preto e branco, e com as figuras sinistras dos anos cinquenta a passarem todo o tempo. mas a menina queria era ver filmes, uns a seguir aos outros se pudesse. porém, tinha apenas um pequeno banco que levava consigo, escapulindo-se para a casa dos vizinhos; e nele se sentava a olhar fixamente para o aparelho desligado, esperando que as pessoas se lembrassem de ver televisão. às vezes, passadas umas horas, e percebendo que nunca mais ninguém reparava nela (fariam de propósito?), regressava a casa e ficava a acariciar o gato até dormir, na sua cama armada num canto da cozinha.
um dia em sonhos um senhor de barbas apareceu-lhe e disse-lhe: já ouviste as sonatas para violão e baixo contínuo de ignazio albertini, datadas dos finais do século dezassete, que irão ser interpretadas e gravadas em paris, na capela do hospital de nossa senhora do bom socorro, em julho de dois mil e um? eu, um dia, hei-de comprar-te esse disco, ou então havemos mesmo de ir juntos a paris, a essa precisa capela.
talvez nos apareça o autor em pessoa, algum dos intérpretes, talvez ali tenha ficado caída no chão uma nota ou outra das que ecoaram nas imagens durante a execução, e depois foram descendo no ar, depositando-se ao longo dos anos.
talvez nos apareça a própria nossa senhora, que nos socorra de estarmos assim todos tão perdidos no mundo, sentados todos nuns banquinhos, à espera que o espectáculo comece.
o que é mesmo importante é sabermos fazer alguma coisa por nós, tentarmos torar desforço desta apatia do real, fazer alguma coisa que nos arranque da garganta aquele som temível que se não sabe de onde vem, e onde se cruzam as duas linhas do arco na sua máxima extensão.
a menina, ao contrario do que lhe era habitual, nunca mais se lembrou desse sonho, que só décadas mais tarde voltaria a aparecer-lhe.
no dia seguinte a cozinha estava igual aos outros dias, à hora do levantar. era ainda noite, mas a janela encontrava-se entreaberta, exposta à pureza do ar; e o gato empoleirado no beiral, em vez de olhar para fora, como era seu hábito, fixava atentamente o lugar onde normalmente se punham as pantufas.
nesse lugar ele viu um violão pousado, e ao lado uma turquesa. mas, como não sabia falar, não pôde avisar a menina que, cheia de sono, corria já para a escola, como sempre, ao longo do túnel do resto da sua vida.


copyright voj 2007

2 comentários:

Anónimo disse...

Que lindo, Vitor! Parabéns. Já adicionei o Trans-ferir aos meus favoritos. Um abraço fraterno da amiga brasileira.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Obrigado...
Estamos em contacto para tentar todos os dias trans-ferir experiências.
Um abraço amigo
Vitor