quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

MITOLOGIAS – 1


NEOLÍTICO,
EXPULSÃO DE ADÃO E EVA DO PARAÍSO, ABANDONO DA NATUREZA E ACESSO À CULTURA


Quero abordar aqui este tema vasto, complexo, interdisciplinar, de forma muito rápida, esquemática e sucinta. Apenas um conjunto de tópicos, de apontamentos. Por isso desculpar-me-ão as grandes generalizações e, portanto, simplificações, que a muitos poderão parecer absurdas. Corro o risco.
O tema do neolítico, ou da domesticação (palavra que significativamente deriva do termo latino “domus”, casa) da terra pelo ser humano, é um dos temas matriciais da nossa cultura ocidental de origem grega e judaico-cristã.
Nele convergem, de forma alucinante, muitos dos “dados adquiridos” ou “evidências constituintes” da nossa própria maneira de estar no mundo. Ou seja, por muito que se queira inovar num tema que já vem da Génese, o primeiro “livro” da compilação bíblica, está-se sempre dentro de uma matriz que se mantém estável há milénios.
A pré-história é, essencialmente, uma versão moderna, científica, complexificada, daquele “primeiro” livro.
Uma série de pares de opostos permitem esquematicamente situar, de um lado, o paleolítico, ou estado de natureza, e do outro o neolítico, ou estado de cultura, dicotomia fundamental da nossa ontologia.
Assim, temos, por ordem alfabética, tal é a arbitrariedade com que poderíamos mencionar estes pares de conceitos, dada a sua intrínseca articulação à estrutura do mito:

- abrigo/cabana – casa/aldeia
- animal como presa – animal como posse
- animal provedor de carne – animal provedor de “bens secundários” (força, lã, leite)
- aproveitamento de características naturais – arquitectura
- arquitectura natural/paisagem "natural" - arquitectura pensada e concretizada, transformadora/ "paisagem cultural"
- atemporalidade – história
- ausência da noção de propriedade – propriedade
- baixa densidade demográfica – crescente densidade
- bando/horda – tribo
- caça/recolecção – agricultura/pastorícia
- cadeias operatórias simples – cadeias mais complexas
- certa indiferenciação entre seres humanos e animais – subjugação dos animais aos seres humanos
- cestaria/peles – cerâmica/tecelagem
- coisas aproveitadas – artefactos/ coisas feitas pelo ser humano
- consumo imediato – armazenamento
- cozinhados elementares – cozinhados em recipiente de ir ao lume
- dado – adquirido pelo esforço/transformado
- deslocações entre pólos espaciais – deslocações a partir de pólos fixos
- desvalorização dos velhos – valorização dos velhos/antepassados
- encontrar – fazer
- externo indiferenciado – interno organizado
- fluidez – fixação
- formas naturais, intrínsecas aos materiais – formas impostas
- improvisação - planeamento
- inerte/passivo – activo
- instrumental reduzido, transportável – instrumental diversificado
- liderança improvisada – liderança estabilizada
- modo de vida natural, muito dependente do meio – modo de vida artificial, com alterações significativas do meio
- não acumulação - acumulação/troca
- natural/material – artificial/artefacto
- natureza – cultura/sociedade/civilização
- nomadismo – sedentarização
- nudez/vestuário sumário ou em pele – vestuário tecido e cozido
- objectos ao dispor – objectos “fabricados”
- ócio – trabalho
- paz/tolerância/partilha - guerra/disputa
- instrumentos de "pedra lascada" – "pedra lascada e polida"
- pensamento “colado” à acção – pensamento “descolado” do imediato
- pré-existências – criações
- recolha – produção
- selecção natural – selecção artificial
- selvagem – doméstico
- tempo imediato – tempo diferido
- tendência para a linearidade – tendência para a circularidade
- território extenso – território mais circunscrito
- valorização do momento - valorização do tempo, do passado

Claro que as coisas não são assim apresentadas de forma tão simples. É próprio dos mitos gerarem inúmeras, infinitas variantes, que, no caso da ciência, têm o aspecto de afinações de pormenor, as quais no entanto neste caso não põem em causa a estrutura fundamental do raciocínio dicotómico, moralista, naturalizador de uma visão da história como processo universal que desemboca no presente e tem a nossa civilização como líder e modelo.
A questão da "fronteira" entre os dois estados, o estado de natureza e o estado de cultura, é móvel. Muitos referem o seu carácter convencional. Outros empenham-se em encontrar indícios sempre mais antigos de certas "capacidades", numa outra obsessão, que é a da origem, da matriz. Cruzam-se aqui debates muito antigos e complexos.
Muitos apontam o "paleolítico superior" como a verdadeira barreira, a autêntica "revolução" que oporia o ser humano "moderno" (definitivamente liberto dos constrangimentos da "evolução biológica" - mais uma ditocomia muito interessante de observar) aos seus antecessores.
Outros reportam a momentos anteriores as "passagens" decisivas, individualmente consideradas, ou em combinação: aquisição da posição bípede, libertação da mão em relação à locomoção e sua capacidade para funcionar como órgão de experimentação e transformação; capacidade cerebral de cartografar territórios cada vez mais amplos e aumento da mobilidade, com a consequente saída dos nichos ecológicos de origem e expansão para todo o planeta; aquisição da linguagem (simbolismo) em relação à simples gesticulação ou comunicação dos animais entre si, etc. etc.
Poderíamos ficar nisto eternamente. O ponto fundamental é que tudo tende a girar em torno do eixo evolucionista que vem do racionalismo das Luzes e do historicismo; e, por outro lado (e não menos importante) as "aquisições" no sentido do "progresso" (espécie de teleologia) estão articuladas entre si, quer dizer, tendem a surgir como pacotes, tipo "tudo ou nada" (como diz um certo autor, não há meio simbolismo, há um simbolismo constituído ou não há, etc.).
Assim, o neolítico (há quem fale de uma primeira e de uma segunda revolução neolíticas, precisamente a acentuar o carácter coetâneo e relativamente abrupto das transformações ocorridas) é um "pacote" de inovações que veio de oriente para ocidente, foi-se expandindo pela Europa, e isso introduz uma alteração radical e indiscutível. Qualquer que seja o seu ritmo, a sua variabilidade local, os fenómenos de aculturação e de "pré-adaptação", fenómenos de contacto, etc.
Ou seja, é primeiro criada uma figura mítica, a de neolítico, ou de processo de domesticação do mundo (mundo amimal, mundo vegetal, esfera social), na qual são projectados, em embrião, os elementos considerados indicadores da "civilização", e depois é traçada a história dessa passagem do embrião às várias etapas do ser, até hoje.
O mito do neolítico é o mito da modernidade. Vindo do próximo oriente bíblico, é paradigmático de como a luz, embora laica, e projectada no passado, continua a iluminar o mesmo quadro. Ao mesmo tempo, é compensatório, porque a onda do progresso, que no passado recente (revolução industrial) foi de oeste para leste, é vista no passado antigo como tendo chegado de leste.
Estas oscilações dão esperança a todos de, com as vicissitudes da história, acabar por estar bem repartida, na visão global, a criatividade e originalidade, a energia expansiva, hoje tão encorajada pelo empreendedorismo.
Tanto mais que todos os continentes teriam tido os seus centros próprios de inovação, e as suas vias de expansão - um multiculturalismo neo-liberal politicamente correcto.

Fonte da imagem (adapatada): http://www.umehon.maine.edu/images/hon112/florence/
The%20Fall%20of%20Adam%20and%20Eve.jpg
(Pecado de Adão e Eva - Miguel Ângelo)

3 comentários:

Anónimo disse...

É curioso como este post veio numa altura em que estou a ler o Alcorão. Não sou muçulmana.. "ou outra coisa qualquer".. sou apenas uma "curiosa"..
É um livro que sempre tive curiosidade em conhecer e finalmente arranjei tempo para o fazer. Há dois dias li as versiculas de Adão.

34 E quando dissemos aos anjos: Prostrai-vos ante Adão!
Todos se prostraram, excepto Lúcifer(12) que,
ensoberbecido, se negou, e incluiu-se entre os incrédulos.

35 Determinamos: Ó Adão, habita o Paraíso(13) com a tua
esposa e desfrutai dele com a prodigalidade que vos
aprouver; porém, não vos aproximeis desta árvore, porque
vos contareis entre os iníquos.

36 Todavia, Satã os seduziu, fazendo com que saíssem do
estado (de felicidade) em que se encontravam. Então
dissemos: Descei!(14) Sereis inimigos uns dos outros, e, na
terra, tereis residência e gozo transitórios.

37 Adão obteve do seu Senhor algumas palavras de
inspiração(15), e Ele o perdoou, porque é o Remissório, o
Misericordioso."

in Alcorão - Al Bácara, 2ª surata

Vitor Oliveira Jorge disse...

E qual é a continuação da história, no Alcorão?

Anónimo disse...

Bem.. a história de Adão acaba aqui pelo que li até agora.. os versiculos seguintes dizem:

"38 E ordenamos: Descei todos aqui! Quando vos chegar
de Mim a orientação, aqueles que seguirem a Minha(16)orientação não serão presas do temor, nem se atribularão.

39 Aqueles que descrerem e desmentirem os Nossos versículos serão os condenados ao inferno, onde permanecerão eternamente."

Macabro... com este tipo de leitura tenho sempre o mesmo pensamento. Como é possivel uma divindade que proclama o bem, a justiça e a misericordia contradizer-se constantemente? com frases como "porque é o Remissório, o Misericordioso." e logo a seguir, "serão os condenados ao inferno, onde permanecerão eternamente."
Onde está aqui a misericordia?
Mas sinto-me "impotente" ao criticar O Livro que milhões de pessoas respeitam há séculos. No fundo o meu interesse no Alcorão é mais pelas narrativas de povos anteriores, de séculos passados; há histórias dos profetas, dos Mensageiros, dos povos, dos grupos, das pessoas, dos acontecimentos e do desenrolar da história da civilização.