... com os meus agradecimentos à Dra. Edite Estrela. O acontecimento deu-se na FNAC do Norteshopping, e foi organizado pela Papiro Editora, Porto.
TOTAL AFLORAÇÃO
De
VÍTOR OLIVEIRA JORGE
Porto, 07/12/2006
Apresentar um livro nunca é para mim tarefa fácil. A leitura solitária é prazer e deslumbramento. Entrar na intimidade do autor, em público e na sua presença, acarreta inultrapassável inibição. Pesa-me a responsabilidade e o receio de omissão grave deixa-me bloqueada … e o mais que, neste caso, é respeito e admiração pelo autor e pela obra, não me deixa levantar voo. Sei que, no final, acabarei por pensar, como o autor, que “deveria, deveríamos ter procedido / de maneira diferente”. Resta-me esperar a compreensão de quem reconhece que “é arriscado / escrever / sobre o que outros / já escreveram”.
A surpresa da escolha, a vossa surpresa, que antevi, compreendo e sinto, foi a minha surpresa. O convite, seco e directo, sem perífrases nem antonomásias, chegou por e-mail, o mais moderno e eficaz meio de comunicação em tempo real, nesta era dialógica, nas palavras de Baktine, quando as circunstâncias da vida nos colocam a distância.
Habituada a dizer sim e não, em função da agenda, do tempo que falta ou do que com boa vontade se pode arranjar, dependendo apenas do apreço pelo requerente, respondi que sim, pois até se dá a feliz coincidência de me encontrar, no Porto, em reunião dos socialistas europeus. Resta acrescentar que fiquei (e continuo) lisonjeada por ter sido a eleita. Mas, quando caí em mim – porquê eu? – percebi que não só o tempo era escasso para tamanha obra, mas, mais grave, senti-me qual Salieri a precisar de ser o Mozart da palavra para corresponder ao encontro marcado para o “recanto do texto”.
Precisava, mas não tive, “alumiação” ou “afloração” que me ajudassem a adequar o registo e a escolher o tom e a nomenclatura para melhor discretear sobre a singularidade da poesia de VOJ, a que Manuel António Pina chamou «uma voz pessoalíssima, se não “inaugural” (…), decerto órfã no contexto da poesia portuguesa mais recente», o que leva o autor do Prefácio de Pequeno Livro de Aforismos seguido de Algumas Alumiações a concluir que “uma poesia assim tinha, necessariamente, que pagar o preço da solidão”. Foi assim que este meu pobre “texto recomeçou interminavelmente muitas vezes”, porque n’Os Ardis da Imagem vi “as palavras sangrarem” num “esforço desesperado”.
Venho do coração da «Europa, como sempre, em desassossego» e com Jacques Brel no ouvido. Este multifacetado e inigualável intérprete e compositor, escrevia a Miche, sua mulher, je me crois poète, evocação que a afirmação “escrevo poemas” de VOJ me suscitou. Brel era, sem dúvida, um poeta da síntese, o criador da fórmula sublime de harmonizar a palavra com a música. O académico, ensaísta e professor de arqueologia Vítor Oliveira Jorge é o poeta-fotógrafo das palavras, a matéria-prima que pode captar os recessos da alma, “le moi profond” – “le seul réel », nas palavras de Proust, “procurando os caminhos da espiritualidade” aqui tomada como plenitude. Um e outro, Brel e VOJ, convocam experiências multidisciplinares, apelam à variedade de saberes, cuidam do rigor da forma que valoriza o fundo. A atenção e cuidado postos na apresentação gráfica, tipográfica e iconográfica é outro ponto comum.
Perdoem-me o gesto subjectivo do meu desassossego e declarar que “o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as coisas: só me obriga a ser consciente”. Tenho a dolorosa consciência das minhas limitações para fazer ouvir (ler) esta sinfonia em quatro andamentos: “I Experiência das Veredas”, “II Contemplação das Áleas”, “III Visão do Céu no Interior dos Claustros” e “IV Erecção Total do Espírito”. Neste conjunto de poemas, na sua maioria longos, de versos curtos que alternam com outros mais longos, segundo os limites do sentido, os apreciadores da poesia de VOJ podem fruir a aventura da “total afloração” e assistir à emergência dos filões de luz à superfície do poema.
Atemoriza-me, já o disse, a tarefa de individualizar o “eu” do poeta dos “muitos /e diversos, / que me fitam / interrogativamente, / como que/a pedirem-me/um nome, / a água de baptismo, / a unidade”. Este desdobramento do eu é composição e ocultação, sem máscaras ou nomes, ao gosto de Pessoa. As vozes que se ouvem fazem emergir o carácter para a superfície do comportamento e condicionam inexoravelmente o curso de cada vida. E, no último poema (prosa poética?) “exaltação mística do terno presente do mundo”, acrescenta “quem assim caminhava, e estes pensamentos acalentava, utili-/zando a primeira pessoa do singular, falando em meu nome,/servindo-se inclusivamente dos meus dedos para registar isto/aqui, não sei quem é.”
Perante isto, verifico que Bernardo Soares tem razão, ao afirmar que «tudo o que vemos é outra coisa» e que “tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem/De um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da/nota tiramos o sentido que havia de ser o do texto; mas fica/sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos”. Descobrir essa “outra coisa”, trazê-la da penumbra do contexto para a luz do texto, decifrar os sinais, descobrir os sentidos possíveis, dissipar a dúvida é o prelúdio da compreensão do Verbo, o princípio de tudo, da Palavra, casa do ser.
O poeta dispensa apresentação. Porque o conhecem bem e porque ele próprio se apresenta de forma por que jamais outros o poderiam fazer (p.9). Os destinatários somos nós, caríssimos (familiares, colegas, amigos, desconhecidos), a quem o poeta chama “contingentes, inúteis, espúrios, mesmo ridículos”, todos (ele incluído), porque vivemos no reino do efémero e na era do vazio, na definição de Lipovetsky, e nessa azáfama diária gastamos todas as energias. O poeta distingue-se de nós, quando declara que o seu “reino não é deste mundo” e que só pelo Verbo se redime.
Temos todos duas vidas, lembrou Pessoa. VOJ reconhece que a vida vivida difere da vida sonhada.: “somo os dias no meu corpo, / conto as tardes que faltam” (p.13). A vida não é linear nem fácil, mas antes de luta e lucidez para saber aproveitar os breves e raros momentos de harmonia entre o que se sente e o que se vê, o que, para Margeritte Yourcenar, é a felicidade.
Começo a percorrer a orografia do(s) poema(s) para chegar aos meandros do(s) sentido(s) e, como ao poeta, também a mim o texto interpela “em que moldura me vais meter” e as palavras reclamam “desregra”, porque, justificam, “não queremos ser disciplinadas,/ num lugar preciso”. O enigma da palavra, do texto, do que é escrever perpassa por vários poemas de Total Afloração.
Em «Prenúncio» (p.32), o poeta observa à lupa a sua interioridade, feita de “figuras da nostalgia” e “colossos do remorso”, para concluir que “o pior é esse longo velório; / é seres viúva de um vivo”. As reflexões existenciais, onde não se pressente auto-compaixão nem grande esperança, mas talvez desejo de remissão, são formas de transferência da interioridade do poeta para o poema. Em tom melancólico, a sangrar, o poeta comenta o jogo da vida, porque, como noutro poema reconhece, “estou em trânsito/ entre o meu passado e o meu futuro”.
Em “até à vista” (p.36) fala-nos do seu mundo, “o escritório”, “amados livros, / minha história / meu quarto de sentir, de pensar, de compor”, através de uma amálgama de ícones, semelhante a “laboratório” (p.95) com um manancial de formas e de cores. E, em outros poemas, assistimos a um turbilhão de figuras e ritmos. A importância da escrita redentora é recorrente. Já em “a terrível doença da contabilidade” (p.12), o poeta afirmara que o dia só vale a pena ser vivido porque há livros. A palavra escrita usada como terapia de substituição dos afectos: “ e de livro em livro/procuro a intensidade, / porque nenhuma amizade/me visita, / nenhum amor me convida /para o seu braço”. Os afectos são frágeis com as plantas e como elas precisam de ser alimentadas e fortalecidas, com amor e zelo, para resistirem à falta de sol e de companhia.
Em “alguns momentos da elevação da mulher” (p.112), espécie de cosmografia do corpo e da palavra, prazer do corpo e da língua, o poeta considera que o “gozo pleno” só é atingível quando há “o conhecimento/lúcido da excitação”. A consciência do prazer sexual a aumentar o próprio prazer.
Em “a exposição de mulher” (p.61) homenagem a antónio ramos rosa (prémio de poesia da APE) o mais erótico de todos os poemas de Total Afloração, “a imagem putíssima” “como se fossem monumentos”, “lembras ainda uma catedral de mármore”. Fala da paisagem humana e da paisagem monumental a que lhe está mais próxima, como já havia feito em “prenúncio”.
Em “prelúdio da suite número cinco, em dó menor, para violoncelo solo, BWV 1011, de J.S.Bach” em homenagem a ingmar bergman, o poema abre com uma intrigante interrogação “é possível fugir de vez / às metáforas das metáforas / do vazio?”. (p.21). Como noutros poemas, a cadência do verso a captar a melodia da metáfora (p.26): “apesar do olhar vazio, incrédulo das metáforas”. Ou, ainda (p.22): “e as pétalas das metáforas/ao caírem uma a uma de exaustão (…) como se fossem gotas/de vinho, em oferendas de ouro,/ em dobras de manto/letras góticas caídas/uma a uma sobre o texto”. O processo de equivalência vai da metáfora para a comparação. Em “reflexão sobre os limites”, da metáfora à hipálage (p.23), pressente-se um movimento de ascensão da dor das cicatrizes e luto para o escorrer de saudade (p.24) “no frenesim dos estames/na poluição dos pólens”.
Em “conversas de la Belle com la Bête, com remate final a condizer”, (p.41), longo poema em três andamentos – conversa I, conversa II e remate - o leitmotiv da distância entre o ser e o parecer, a “absurda desconformidade / entre interior e exterior”, quando afinal “tudo constitui uma unidade” porque a forma é também conteúdo; o desencontro, a inversão dos papéis, o desfasamento sentimental, a des-coincidência entre o que se sente pela obra e pelo seu autor “apaixonei-me pela tua poesia / de tanto a ler, / enquanto/ por ti esperava”. Guardados pelo “anjo da escrita” (curiosamente, “o mesmo da ironia”), A e B redescobrem-se na “atemporalidade” das almas sem “a mais pequena alteração”, fundindo-se “num abraço soberano”. A síntese de plenitude.
Ao de leve, como quem seriamente brinca, o recurso ao haikai em extraordinárias composições, onde se apreende o mais evidente movimento metafórico de conjunto: “dez haikais vegetais” (p39), paradoxalmente poesia mais conceptual que vegetal, o conselho: “recusa sempre / liquefazeres-te na / indiferença”. Mas há mais: “doze haikais sazonais”, “dez haikais flamencos” (da Andaluzia e não da Flandres, e não flamengos); “doze hiakais sobre apresentação” (sozinho lanço / mais um livro ao mundo; silêncio total” (o manto da indiferença da crítica portuguesa). “Doze haikais venezianos”; “Doze haikais de interior”; “Dez haikais pompeianos” (lava escorre /apenas nos canais do / pressentimento” erupção do Danúbio comparado ao orgasmo.
Em Total Afloração, observa-se uma diversidade de meios sintácticos, através dos quais o poeta estabelece certas classes de equivalências. O processo mais comum de fazer a equivalência é o da metáfora (a que já aludi) e o da comparação (p.104) “permanecem/até hoje de costas/ como num quadro de Magritte”. Há também outras incursões pela pintura, referências a grandes vultos como Chagall (p.107) ou Dali (p.97). Voltando às equivalências, refiro ainda o recurso à comparação virtual (p.23) “as figuras do povo” “como se fossem personagens já mortas/de um quadro antigo”. Património humano e cultural.
A repetição como intensificação : (p.23) “campos e campos e campos”; (p.22) “a citar a citar a citar”; (p.25) “pelos séculos dos séculos dos séculos”; (p.26) “sempre e sempre e sempre”.
O poeta dá vida e autonomia às criações verbais a que o conhecimento, a sageza e a experiência serviram de suporte: (p.90) des-cuido, (p.108) reinumar, (p.114) cíclades, (p.114) oblata, (p.112) cárnica, (p.109) obsidiana, etc. Chamemos-lhe recriação verbal para que não nos responda como Boris Vian, quando foi acusado de inventar palavras: “reparem que são sempre palavras que ninguém conheceria à mesma, se eu usasse as palavras verdadeiras, pois no fundo ninguém conhece o nome das flores que há no mais banal dos jardins”.
O mal existe e é indispensável à espiritualidade, um complemento necessário à realidade que se debate em nós. Não há aberração nem indecência nem inflação erótica. Mas há erotismo (pp.115,112 e 116) (prazer que resulta do conhecimento e da imaginação”, (p.122) associado ao património, p90 “erótico ou porno-gráfico (é o mesmo)”, termo recorrente e sempre com esta grafia (pp. 114 e 119). Sobre o amor e o erotismo, recorro a Hélia Correia, “Fenda Erótica”: “o amor é uma coisa rara, difícil de encontrar; e que só aparece, por acaso, e uma vez por século, se tanto, como outros fenómenos igualmente inexplicáveis, aqueles de elevar-se alguém nos ares ou de um analfabeto citar Cícero em correcto latim”.
Os leitores de VOJ não são (como poderiam ser?) os consumidores dos media ou os instalados na facilidade. Esses, afastados em lonjura de galáxia da Arte, da Literatura, da Poesia, cobrem-na com a capa da indiferença. Em tempos de «fascismo da vulgaridade”, nas palavras de Steiner, que lugar para a obra múltipla, a excelência, a lucidez? Pouco mais que um pequeno espaço exterior à manta de silêncio e esquecimento que, inexplicavelmente, cobre os virtuosos, não os medíocres!
Os leitores de VOJ têm de ser atentos, capazes de atender ao essencial, disponíveis para a aventura das palavras, dos ritmos, das formas e das cores. Em suma, para a Vida, em toda a sua complexa simplicidade. Porque só se quer e ama o que se sabe ser razoável, como revela Ortega y Gasset, Ensaios sobre el amor.
Agora, tem a palavra o leitor. Ler é compreender, na concepção kristeviana. Sem leitores não há literatura. De acordo com a "estética da recepção" de Hans Robert Jauss, a vida da obra literária é inconcebível sem o papel activo que desempenha o seu destinatário. O leitor tem a liberdade de ponderar melhor este ou aquele segmento à luz de uma visão de conjunto. Pode saborear as palavras, ponderando a distância que vai do significante ao significado, da presença à ausência. E estabelecer conexões com os elementos extra-textuais.
VOJ não precisa de uma exegese, por isso termino convocando as palavras de um escritor de outro tempo, D. Francisco Manuel de Melo, para me desculpar perante o poeta e apelar à benevolência do auditório: «Vós sabeis que pudera eu aqui dizer muito mais, e eu sei que quiséreis vós ouvir muito menos».
Mas apesar de mim, leitora feita crítica neste dia, com o poeta direi: “glória a ti, criador, que nos deste a poesia”.
Obrigada pela vossa atenção.
Edite Estrela
A surpresa da escolha, a vossa surpresa, que antevi, compreendo e sinto, foi a minha surpresa. O convite, seco e directo, sem perífrases nem antonomásias, chegou por e-mail, o mais moderno e eficaz meio de comunicação em tempo real, nesta era dialógica, nas palavras de Baktine, quando as circunstâncias da vida nos colocam a distância.
Habituada a dizer sim e não, em função da agenda, do tempo que falta ou do que com boa vontade se pode arranjar, dependendo apenas do apreço pelo requerente, respondi que sim, pois até se dá a feliz coincidência de me encontrar, no Porto, em reunião dos socialistas europeus. Resta acrescentar que fiquei (e continuo) lisonjeada por ter sido a eleita. Mas, quando caí em mim – porquê eu? – percebi que não só o tempo era escasso para tamanha obra, mas, mais grave, senti-me qual Salieri a precisar de ser o Mozart da palavra para corresponder ao encontro marcado para o “recanto do texto”.
Precisava, mas não tive, “alumiação” ou “afloração” que me ajudassem a adequar o registo e a escolher o tom e a nomenclatura para melhor discretear sobre a singularidade da poesia de VOJ, a que Manuel António Pina chamou «uma voz pessoalíssima, se não “inaugural” (…), decerto órfã no contexto da poesia portuguesa mais recente», o que leva o autor do Prefácio de Pequeno Livro de Aforismos seguido de Algumas Alumiações a concluir que “uma poesia assim tinha, necessariamente, que pagar o preço da solidão”. Foi assim que este meu pobre “texto recomeçou interminavelmente muitas vezes”, porque n’Os Ardis da Imagem vi “as palavras sangrarem” num “esforço desesperado”.
Venho do coração da «Europa, como sempre, em desassossego» e com Jacques Brel no ouvido. Este multifacetado e inigualável intérprete e compositor, escrevia a Miche, sua mulher, je me crois poète, evocação que a afirmação “escrevo poemas” de VOJ me suscitou. Brel era, sem dúvida, um poeta da síntese, o criador da fórmula sublime de harmonizar a palavra com a música. O académico, ensaísta e professor de arqueologia Vítor Oliveira Jorge é o poeta-fotógrafo das palavras, a matéria-prima que pode captar os recessos da alma, “le moi profond” – “le seul réel », nas palavras de Proust, “procurando os caminhos da espiritualidade” aqui tomada como plenitude. Um e outro, Brel e VOJ, convocam experiências multidisciplinares, apelam à variedade de saberes, cuidam do rigor da forma que valoriza o fundo. A atenção e cuidado postos na apresentação gráfica, tipográfica e iconográfica é outro ponto comum.
Perdoem-me o gesto subjectivo do meu desassossego e declarar que “o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as coisas: só me obriga a ser consciente”. Tenho a dolorosa consciência das minhas limitações para fazer ouvir (ler) esta sinfonia em quatro andamentos: “I Experiência das Veredas”, “II Contemplação das Áleas”, “III Visão do Céu no Interior dos Claustros” e “IV Erecção Total do Espírito”. Neste conjunto de poemas, na sua maioria longos, de versos curtos que alternam com outros mais longos, segundo os limites do sentido, os apreciadores da poesia de VOJ podem fruir a aventura da “total afloração” e assistir à emergência dos filões de luz à superfície do poema.
Atemoriza-me, já o disse, a tarefa de individualizar o “eu” do poeta dos “muitos /e diversos, / que me fitam / interrogativamente, / como que/a pedirem-me/um nome, / a água de baptismo, / a unidade”. Este desdobramento do eu é composição e ocultação, sem máscaras ou nomes, ao gosto de Pessoa. As vozes que se ouvem fazem emergir o carácter para a superfície do comportamento e condicionam inexoravelmente o curso de cada vida. E, no último poema (prosa poética?) “exaltação mística do terno presente do mundo”, acrescenta “quem assim caminhava, e estes pensamentos acalentava, utili-/zando a primeira pessoa do singular, falando em meu nome,/servindo-se inclusivamente dos meus dedos para registar isto/aqui, não sei quem é.”
Perante isto, verifico que Bernardo Soares tem razão, ao afirmar que «tudo o que vemos é outra coisa» e que “tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem/De um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da/nota tiramos o sentido que havia de ser o do texto; mas fica/sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos”. Descobrir essa “outra coisa”, trazê-la da penumbra do contexto para a luz do texto, decifrar os sinais, descobrir os sentidos possíveis, dissipar a dúvida é o prelúdio da compreensão do Verbo, o princípio de tudo, da Palavra, casa do ser.
O poeta dispensa apresentação. Porque o conhecem bem e porque ele próprio se apresenta de forma por que jamais outros o poderiam fazer (p.9). Os destinatários somos nós, caríssimos (familiares, colegas, amigos, desconhecidos), a quem o poeta chama “contingentes, inúteis, espúrios, mesmo ridículos”, todos (ele incluído), porque vivemos no reino do efémero e na era do vazio, na definição de Lipovetsky, e nessa azáfama diária gastamos todas as energias. O poeta distingue-se de nós, quando declara que o seu “reino não é deste mundo” e que só pelo Verbo se redime.
Temos todos duas vidas, lembrou Pessoa. VOJ reconhece que a vida vivida difere da vida sonhada.: “somo os dias no meu corpo, / conto as tardes que faltam” (p.13). A vida não é linear nem fácil, mas antes de luta e lucidez para saber aproveitar os breves e raros momentos de harmonia entre o que se sente e o que se vê, o que, para Margeritte Yourcenar, é a felicidade.
Começo a percorrer a orografia do(s) poema(s) para chegar aos meandros do(s) sentido(s) e, como ao poeta, também a mim o texto interpela “em que moldura me vais meter” e as palavras reclamam “desregra”, porque, justificam, “não queremos ser disciplinadas,/ num lugar preciso”. O enigma da palavra, do texto, do que é escrever perpassa por vários poemas de Total Afloração.
Em «Prenúncio» (p.32), o poeta observa à lupa a sua interioridade, feita de “figuras da nostalgia” e “colossos do remorso”, para concluir que “o pior é esse longo velório; / é seres viúva de um vivo”. As reflexões existenciais, onde não se pressente auto-compaixão nem grande esperança, mas talvez desejo de remissão, são formas de transferência da interioridade do poeta para o poema. Em tom melancólico, a sangrar, o poeta comenta o jogo da vida, porque, como noutro poema reconhece, “estou em trânsito/ entre o meu passado e o meu futuro”.
Em “até à vista” (p.36) fala-nos do seu mundo, “o escritório”, “amados livros, / minha história / meu quarto de sentir, de pensar, de compor”, através de uma amálgama de ícones, semelhante a “laboratório” (p.95) com um manancial de formas e de cores. E, em outros poemas, assistimos a um turbilhão de figuras e ritmos. A importância da escrita redentora é recorrente. Já em “a terrível doença da contabilidade” (p.12), o poeta afirmara que o dia só vale a pena ser vivido porque há livros. A palavra escrita usada como terapia de substituição dos afectos: “ e de livro em livro/procuro a intensidade, / porque nenhuma amizade/me visita, / nenhum amor me convida /para o seu braço”. Os afectos são frágeis com as plantas e como elas precisam de ser alimentadas e fortalecidas, com amor e zelo, para resistirem à falta de sol e de companhia.
Em “alguns momentos da elevação da mulher” (p.112), espécie de cosmografia do corpo e da palavra, prazer do corpo e da língua, o poeta considera que o “gozo pleno” só é atingível quando há “o conhecimento/lúcido da excitação”. A consciência do prazer sexual a aumentar o próprio prazer.
Em “a exposição de mulher” (p.61) homenagem a antónio ramos rosa (prémio de poesia da APE) o mais erótico de todos os poemas de Total Afloração, “a imagem putíssima” “como se fossem monumentos”, “lembras ainda uma catedral de mármore”. Fala da paisagem humana e da paisagem monumental a que lhe está mais próxima, como já havia feito em “prenúncio”.
Em “prelúdio da suite número cinco, em dó menor, para violoncelo solo, BWV 1011, de J.S.Bach” em homenagem a ingmar bergman, o poema abre com uma intrigante interrogação “é possível fugir de vez / às metáforas das metáforas / do vazio?”. (p.21). Como noutros poemas, a cadência do verso a captar a melodia da metáfora (p.26): “apesar do olhar vazio, incrédulo das metáforas”. Ou, ainda (p.22): “e as pétalas das metáforas/ao caírem uma a uma de exaustão (…) como se fossem gotas/de vinho, em oferendas de ouro,/ em dobras de manto/letras góticas caídas/uma a uma sobre o texto”. O processo de equivalência vai da metáfora para a comparação. Em “reflexão sobre os limites”, da metáfora à hipálage (p.23), pressente-se um movimento de ascensão da dor das cicatrizes e luto para o escorrer de saudade (p.24) “no frenesim dos estames/na poluição dos pólens”.
Em “conversas de la Belle com la Bête, com remate final a condizer”, (p.41), longo poema em três andamentos – conversa I, conversa II e remate - o leitmotiv da distância entre o ser e o parecer, a “absurda desconformidade / entre interior e exterior”, quando afinal “tudo constitui uma unidade” porque a forma é também conteúdo; o desencontro, a inversão dos papéis, o desfasamento sentimental, a des-coincidência entre o que se sente pela obra e pelo seu autor “apaixonei-me pela tua poesia / de tanto a ler, / enquanto/ por ti esperava”. Guardados pelo “anjo da escrita” (curiosamente, “o mesmo da ironia”), A e B redescobrem-se na “atemporalidade” das almas sem “a mais pequena alteração”, fundindo-se “num abraço soberano”. A síntese de plenitude.
Ao de leve, como quem seriamente brinca, o recurso ao haikai em extraordinárias composições, onde se apreende o mais evidente movimento metafórico de conjunto: “dez haikais vegetais” (p39), paradoxalmente poesia mais conceptual que vegetal, o conselho: “recusa sempre / liquefazeres-te na / indiferença”. Mas há mais: “doze haikais sazonais”, “dez haikais flamencos” (da Andaluzia e não da Flandres, e não flamengos); “doze hiakais sobre apresentação” (sozinho lanço / mais um livro ao mundo; silêncio total” (o manto da indiferença da crítica portuguesa). “Doze haikais venezianos”; “Doze haikais de interior”; “Dez haikais pompeianos” (lava escorre /apenas nos canais do / pressentimento” erupção do Danúbio comparado ao orgasmo.
Em Total Afloração, observa-se uma diversidade de meios sintácticos, através dos quais o poeta estabelece certas classes de equivalências. O processo mais comum de fazer a equivalência é o da metáfora (a que já aludi) e o da comparação (p.104) “permanecem/até hoje de costas/ como num quadro de Magritte”. Há também outras incursões pela pintura, referências a grandes vultos como Chagall (p.107) ou Dali (p.97). Voltando às equivalências, refiro ainda o recurso à comparação virtual (p.23) “as figuras do povo” “como se fossem personagens já mortas/de um quadro antigo”. Património humano e cultural.
A repetição como intensificação : (p.23) “campos e campos e campos”; (p.22) “a citar a citar a citar”; (p.25) “pelos séculos dos séculos dos séculos”; (p.26) “sempre e sempre e sempre”.
O poeta dá vida e autonomia às criações verbais a que o conhecimento, a sageza e a experiência serviram de suporte: (p.90) des-cuido, (p.108) reinumar, (p.114) cíclades, (p.114) oblata, (p.112) cárnica, (p.109) obsidiana, etc. Chamemos-lhe recriação verbal para que não nos responda como Boris Vian, quando foi acusado de inventar palavras: “reparem que são sempre palavras que ninguém conheceria à mesma, se eu usasse as palavras verdadeiras, pois no fundo ninguém conhece o nome das flores que há no mais banal dos jardins”.
O mal existe e é indispensável à espiritualidade, um complemento necessário à realidade que se debate em nós. Não há aberração nem indecência nem inflação erótica. Mas há erotismo (pp.115,112 e 116) (prazer que resulta do conhecimento e da imaginação”, (p.122) associado ao património, p90 “erótico ou porno-gráfico (é o mesmo)”, termo recorrente e sempre com esta grafia (pp. 114 e 119). Sobre o amor e o erotismo, recorro a Hélia Correia, “Fenda Erótica”: “o amor é uma coisa rara, difícil de encontrar; e que só aparece, por acaso, e uma vez por século, se tanto, como outros fenómenos igualmente inexplicáveis, aqueles de elevar-se alguém nos ares ou de um analfabeto citar Cícero em correcto latim”.
Os leitores de VOJ não são (como poderiam ser?) os consumidores dos media ou os instalados na facilidade. Esses, afastados em lonjura de galáxia da Arte, da Literatura, da Poesia, cobrem-na com a capa da indiferença. Em tempos de «fascismo da vulgaridade”, nas palavras de Steiner, que lugar para a obra múltipla, a excelência, a lucidez? Pouco mais que um pequeno espaço exterior à manta de silêncio e esquecimento que, inexplicavelmente, cobre os virtuosos, não os medíocres!
Os leitores de VOJ têm de ser atentos, capazes de atender ao essencial, disponíveis para a aventura das palavras, dos ritmos, das formas e das cores. Em suma, para a Vida, em toda a sua complexa simplicidade. Porque só se quer e ama o que se sabe ser razoável, como revela Ortega y Gasset, Ensaios sobre el amor.
Agora, tem a palavra o leitor. Ler é compreender, na concepção kristeviana. Sem leitores não há literatura. De acordo com a "estética da recepção" de Hans Robert Jauss, a vida da obra literária é inconcebível sem o papel activo que desempenha o seu destinatário. O leitor tem a liberdade de ponderar melhor este ou aquele segmento à luz de uma visão de conjunto. Pode saborear as palavras, ponderando a distância que vai do significante ao significado, da presença à ausência. E estabelecer conexões com os elementos extra-textuais.
VOJ não precisa de uma exegese, por isso termino convocando as palavras de um escritor de outro tempo, D. Francisco Manuel de Melo, para me desculpar perante o poeta e apelar à benevolência do auditório: «Vós sabeis que pudera eu aqui dizer muito mais, e eu sei que quiséreis vós ouvir muito menos».
Mas apesar de mim, leitora feita crítica neste dia, com o poeta direi: “glória a ti, criador, que nos deste a poesia”.
Obrigada pela vossa atenção.
Edite Estrela
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