sábado, 10 de fevereiro de 2007

malaquite




cheguei a uma terra marítima, onde só havia mulheres e pássaros costeiros, agarrados em cachos, nas falésias.
inebriado do iodo intenso do atlântico, entrei num bar, onde me puseram sobre a mesa dois ovos de gaivota (ou seriam de albatroz? em novo cheguei a querer ser naturalista...) e uma garrafa de cerveja coberta de pó. que faço eu com isto? perguntei.
e é se queres, responderam-me. abrimos uma excepção para ti, por seres o primeiro embarcadiço que chega aqui há muitos anos.
acabei por ir para a rua, onde passavam quadros de delvaux com figuras, estas num tom azul, levando grandes toalhas bordadas como mantos arrastados pelo chão, dirigindo-se sempre para o horizonte em total nudez, com aquele característico tom lívido e determinado.
perguntei: como podem vocês viver aqui sem um homem, onde estão os que pescam no alto mar?
uma das figuras voltou-se, e como não parecia possuir olhos, não sei se me encarava. disse apenas: temos tudo o que precisamos. a ilha está cheia de hematite. não há alto nem baixo mar, o que vês como paisagem é só cenário.
a noite principiava a anunciar-se, embora fossem apenas quatro da tarde, e eu comecei a temer não encontrar alojamento, achar-me em atraso para qualquer obrigação (destas que as pessoas estão sempre a marcar-nos como inadiáveis); ou ter perdido o telemóvel (objecto que, quando se extravia, fica logo cheio de mensagens e de contactos). enfim, era uma inquietação que se me instalava como se fosse o ruído do meu corpo ao longe.
há aqui ligação à internet? perguntei. mas nessa altura já todas as figuras tinham decorrido, e via-se apenas os candeeiros de gás acesos, que se curvavam reverentemente à minha passagem.
para onde me dirijo? pareceu-me que estas palavras estavam a sair da minha boca, mas arrastando as sílabas tão pesadamente como se fosse uma saliva doente, ou o voo de um bando de corvos voltando ao seu poiso nas árvores, para se acoitarem nos ramos despidos, como grandes frutos negros.
tenho sede, a boca sabe-me a iogurte, tenho dificuldade em engulir, disse para a rua, como se esta fosse uma presença importante, decisiva, um oco onde o meu apelo encontrasse acolhimento.
nos olhos abriram-se-me duas janelas, que projectaram uma luz sobre a calçada.
o jantar está na mesa, ouvi dizer; mas aí percebi que era decerto uma alucinação: todas as mães que tivera, umas boas, outras más, estavam mortas há muito, e os seus túmulos encontravam-se bastante longe da ilha, léguas e léguas afastadas na bruma, quem sabe se boiando no mar como caixões naufragados; essa certeza era até a única bagagem que trazia comigo, além do computador portátil, e de uma mochila que tinha sido ganha aos pontos, num supermercado.
dirige-te ao vale que está para lá do fundo da rua, sempre andando a direito pelo meio dos campos, rezava a ortografia de um papel pregado numa parede há pouco tempo, porque ainda dele escorria um pequeno fio de sangue vivo.
mas como, se estou tão cansado, e já fiz quase todas as viagens que eram obrigatórias; posso provar isso com os carimbos do passaporte. tudo o que quero é um sítio onde possa escrever o meu livro, porque me prometeram que depois de centenas de provas, e testes, e formulários preenchidos, depois de responder a milhares de indivíduos que me vinham fazer perguntas, depois de ter de passar por toda a espécie de truques, eu tinha finalmente direito a uma pausa para escrever o meu livro. havia muitas pessoas no meu passado, é verdade; e o que imaginei sobre elas vai ser a matéria-prima que vou usar, é o meu acto de redenção. preciso de um sítio, uma morada certa, onde me sente para não mais me levantar, até que tenha coisa digna de ser apresentada, obra que, se agitada da praia, faça parar qualquer veleiro, que me leve de novo para o editor.
depressa compreendi que, apesar destes pensamentos, estava já há muito a caminho do tal vale, porque essa era a única direcção a que levava aquele verdadeiro dédalo de ruas, de casas todas iguais, com as suas cortinas de rendas bordadas nas janelas. uma pessoa que chega a uma terra desconhecida precisa de ter uma orientação, uma palavra escrita no pó que se apinha ao lado dos passeios, qualquer sinal que lhe permita seguir uma narrativa, senão as frases perdem-se em detalhes, e as forças acabam por sossobrar.
bem-vindo ao vale em que dia e noite nós, os que perdemos tudo menos a força muscular, damos à manivela incansavelmente, estava escrito.
abeirei-me da imensa cratera, qual vulcão onde fervilhava uma multidão de monstros, em incessante suor: eram feitos de partes de corpos de várias espécies, cada qual produto de uma combinatória infinita, e um deles, que era apenas composto de dois braços, escrevia incessantemente nas paredes onde os outros, dia e noite, exploravam a malaquite: por aqui não passou o sábio lineu; ficámos desprovidos da taxonomia.
comecei a pensar que tinha ido parar ao sítio certo, que era mais interessante e diversificado o que ali via do que toda a minha experiência anterior. senti-me jovem, veio uma aragem com essa sensação, e só então dei pelas mulheres.
para contar mesmo com verdade, só a mais próxima se distinguia claramente; mas pareciam todas verdes, e dando a volta ao rebordo da cratera, em roda interminável, como que concentrada no que se passava lá em baixo; enfim, um cenário fora do vulgar.
e àquela chegou-se um monstro que era apenas constituído por uma bandeja horizontal e, debaixo desta, duas enormes patas com garras aguçadas, que lhe permitiam trepar a falésia com extraordinária rapidez.
ah, encontraste o que interessa, disse a mulher; e começou a tirar da bandeja pedaços muito polidos de mineral, ocorrências raríssimas, decerto, e com elas foi tapando todos os orifícios do corpo, escolhendo cuidadosamente peça a peça, orifício a orifício. e antes de fechar a boca sobre uma amostra decisiva, articulou ainda a seguinte frase, que parecia ser dirigida a mim.
não queremos aqui escritores, gente que se alimenta do suor humano para contar histórias cheias de vida, mas só arrasta cadáveres atrás de si, peças mudas para ler, fechadas no papel.
desaparece, não vês que estamos a gozar ?
desloquei-me então às arrecuas até à praia, perfurando o cenário, tropeçando em bancos de moluscos, escorregando em algas. e jurando a mim próprio nunca mais escolher destes temas litorais. as marinhas estão muito vistas, ninguém quer mais contemplar superfícies tão extensas, ainda por cima deixando cabelos no horizonte.

copyright voj 2007
Foto: Ian Britton
Fonte: http://www.freefoto.com/preview.jsp?id=15-11-44

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