Uma vez um arqueólogo da Pré-hstória - uma daquelas pessoas que, como eu, estudam as humanidades anteriores aos romanos - acordou e pensou:
e se tudo o que tenho imaginado sobre esse período não fosse mais do que uma ilusão, uma projecção do que eu penso hoje sobre as coisas (sobretudo do que eu acho como indiscutível) nas mentes dos homens e mulheres do passado? E se tudo o que eu tenho dito e escrito não passasse de um prolongamento de ideias que me ensinaram, universais indiscutíveis, valores a-históricos, elas próprias versões inconscientes de mitos que vêm da minha tradição cultural greco-latina e judaico-cristã?!
Aí o arqueólogo teve um susto. Sou capaz de ter publicado imensos trabalhos em que sobrepus, aos materiais que encontrei e pressurosamente publiquei, com belos desenhos e fotos, uma interpretação que não passa de uma pura invenção moderna, minha.
Correu a ver os trabalhos, seus e doutros, e sobretudo foi interrogar de novo as peças, os sítios, os museus. E as coisas pareceram-lhe, passados tantos anos, assim depois de restauradas e apresentadas, coisas diferentes. Mas elas não diziam nada...
Quando se vinha embora pareceu-lhe que um vaso se contraía ligeiramente dentro de uma vitrina, e julgou que lhe segredava do lado de lá do vidro: já fui funcional, já fui ritual, já fui simbólico, já servi para armazenar, para fazer comida, para beber cerveja e vinho, para oferenda funarária, para interveniente em relações de poder, eu sei lá... eles é que não sabem nada, quem me pôs aqui devia ter pena de mim, mas está inconsciente de que não tem sentido o discurso museológico onde, após tantos milhares de anos, me haviam despudoramente de expor, aos olhos de toda a gente... tira-me daqui, peço-te!
O arqueólogo voltou-se, mas teria sido uma alucinação. Vinha a entrar uma fila de jovens atrás de um senhor (do serviço educativo? não, talvez fosse mesmo um guia turístico culto) que sobre cada peça perorava durante o tempo que queria, explicando tudo. No fim as pessoas compravam postais de algumas peças, catálogos, livros à venda na loja, T-shirts.
E o arqueólogo voltou para casa no carro, guardando na mala, não fosse alguém ver, as suas dúvidas.
Aquilo que alguns bons professores lhe tinham dito, e que é próprio do saber (a suspeita, a dúvida, a questão), interrompia o negócio e o ócio dos outros.
A sua inquietação tinha-se tornado obscena.
E ele não queria ser desmancha-prazeres de ninguém.
Como se diz agora: fazer parte da solução, nunca do problema.
E enquanto pensava nisto, cruzava-se com autocarros e autocarros de pessoas, que se dirigiam, máquinas fotográficas em punho, para o património, com a avidez de quem, do lado de lá do vidro das janelas, quer reencontrar o passado.
e se tudo o que tenho imaginado sobre esse período não fosse mais do que uma ilusão, uma projecção do que eu penso hoje sobre as coisas (sobretudo do que eu acho como indiscutível) nas mentes dos homens e mulheres do passado? E se tudo o que eu tenho dito e escrito não passasse de um prolongamento de ideias que me ensinaram, universais indiscutíveis, valores a-históricos, elas próprias versões inconscientes de mitos que vêm da minha tradição cultural greco-latina e judaico-cristã?!
Aí o arqueólogo teve um susto. Sou capaz de ter publicado imensos trabalhos em que sobrepus, aos materiais que encontrei e pressurosamente publiquei, com belos desenhos e fotos, uma interpretação que não passa de uma pura invenção moderna, minha.
Correu a ver os trabalhos, seus e doutros, e sobretudo foi interrogar de novo as peças, os sítios, os museus. E as coisas pareceram-lhe, passados tantos anos, assim depois de restauradas e apresentadas, coisas diferentes. Mas elas não diziam nada...
Quando se vinha embora pareceu-lhe que um vaso se contraía ligeiramente dentro de uma vitrina, e julgou que lhe segredava do lado de lá do vidro: já fui funcional, já fui ritual, já fui simbólico, já servi para armazenar, para fazer comida, para beber cerveja e vinho, para oferenda funarária, para interveniente em relações de poder, eu sei lá... eles é que não sabem nada, quem me pôs aqui devia ter pena de mim, mas está inconsciente de que não tem sentido o discurso museológico onde, após tantos milhares de anos, me haviam despudoramente de expor, aos olhos de toda a gente... tira-me daqui, peço-te!
O arqueólogo voltou-se, mas teria sido uma alucinação. Vinha a entrar uma fila de jovens atrás de um senhor (do serviço educativo? não, talvez fosse mesmo um guia turístico culto) que sobre cada peça perorava durante o tempo que queria, explicando tudo. No fim as pessoas compravam postais de algumas peças, catálogos, livros à venda na loja, T-shirts.
E o arqueólogo voltou para casa no carro, guardando na mala, não fosse alguém ver, as suas dúvidas.
Aquilo que alguns bons professores lhe tinham dito, e que é próprio do saber (a suspeita, a dúvida, a questão), interrompia o negócio e o ócio dos outros.
A sua inquietação tinha-se tornado obscena.
E ele não queria ser desmancha-prazeres de ninguém.
Como se diz agora: fazer parte da solução, nunca do problema.
E enquanto pensava nisto, cruzava-se com autocarros e autocarros de pessoas, que se dirigiam, máquinas fotográficas em punho, para o património, com a avidez de quem, do lado de lá do vidro das janelas, quer reencontrar o passado.
2 comentários:
Dá que pensar.......
Se os objectos falassem tudo seria mais fácil.Porém ao fazer-se discursos sobre a cultura material exposta em museus, e que tantas vezes não correspondem à sua verdeira essência, adultera todo o sentido daquele que é designado por património!
Creio que o problema é mais complexo.Não vou repetir neste comentário o que tenho escrito tanta vez nos meus livros e artigos. Então, sugiro a leitura atenta de um livro, muito bom, cuja tradução promovi: Marc Guillaume, "A Política do Património", da Campo das Letras, Porto, 2003.
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