quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Variedades


Há os que se colocam mais do lado do puro conceito - os filósofos, os matemáticos - e os que se colocam mais do lado da vida vivida, recriada - os artistas. Uns e outros perseguem o mesmo, a satisfação de fazer algo apresentável aos outros, objectos externos que engendram. E o primeiro desses outros que desejam ardentemente fascinar, são evidentemente eles próprios.
E há a maior parte: os que, por falta de capacidade, motivação, ou mesmo opção, se colocam inteiramente dentro do puro vivido: estão imersos no mundo sensível
da experiência, de que não querem destacar-se de forma alguma. Vivem no puro fruir, que para eles não é submissão, antes o experienciam como liberdade. Não querem deixar nada de externo a si, uma herança que se repercuta no tempo.



Claro que na vida de todos os dias estas dicotomias são muito relativas. Todos nós seremos um patchwork de
ambas as coisas. Para muitos a vida é a maior "obra de arte". Para muitas mulheres dar vida a um ser á a maior obra que podem fazer - é para elas um problema de realização pessoal básica (curiosamente hoje cada vez mais desvinculada do tradicional laço conjugal). Para outras pessoas, que procuram imitar os orientais (mas também há muito disso na nossa ontologia e tradição religiosa), desproverem-se de tudo é o ideal a que aspiram: a escassez é uma forma de aumentar enormemente as pequenas coisas, tornar gigante aquilo que nos passa despercebido no dia a dia. A escassez é uma das figuras da abundância.
Por mim, nunca fui um intelectual. Irrequieto, voguei mais à superfície das coisas, estabelecendo conexões e experiências na horizontal. Se aprofundei e me viciei no estudo, foi por necessidade d
e uma carreira que - muita gente não sabe - é das mais exigentes que existem, a universitária. Não há tempos mortos, é uma constante fuga em frente para tentar investigar, produzir. Não há relógio de ponto: ele está dentro das nossas "cabeças", sempre a chamar-nos ao trabalho. Mas este pode ser um grande prazer. E se não fossem essas obrigações interiorizadas, muitas coisas não chegavam a ver a luz do dia.
Sem a moldura, sem a tela, sem sentir uma certa "obrigação" de se experimentar se se é ou não capaz, nunca o milagre do quadro acontecia.

Por isso talvez os párias modernos por excelência sejam os co
nsumidores que, tendo muitas vezes possibilidades de fazer coisas, de contribuir para o colectivo com algo de muito válido, se instalam no conforto do consumo de tudo quanto há de melhor.
Com frequência de refinado gosto, provocam-me o desgosto mais absoluto: são os que abdicaram de ser, porque abdicaram de fazer. Diluem-se na espuma dos dias.
Nunca sentirão stress? Talvez. Mas
não sentirão nunca aqueles momentos de glória em que, após intenso e prolongado esforço, subimos a uma altura e dali vemos a paisagem percorrida. E compreendemos quão pequenina e banal é a vida lá em baixo, o quotidiano, os afazeres.




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