sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Sobre o sítio pré-histórico do Castanheiro do Vento


Problemática suscitada pelas escavações do sítio pré-histórico do Castanheiro do Vento (Horta do Douro, Vila Nova de Foz Côa), sobretudo após a campanha de 2005


= prineira parte de um texto elaborado antes da campanha de dois meses de escavações de 2006 (Julho e Agosto) e entregue para publicação em Junho desse ano=

por Vítor Oliveira Jorge (*)
João Muralha Cardoso (**)

Ana Margarida Vale (***)
Gonçalo Leite Velho (****)

Abstract

The authors present a general review of the main results of their excavations (1998-2005) in a prehistoric site called Castanheiro do Vento, situated in the territory of the municipality of Vila Nova de Foz Côa (parish of Horta do Douro), district of Guarda, NE of Portugal. Its chronology is mainly located in the III and in the first half of the II millenia B.C. (Copper and Bronze Ages). Basically, it is a monumentalized hill, implying a concentration of architectonic effort which was certainly crucial for the populations who built it, maintained it, and finally covered it with stones, in a sort of clogging action. This action transformed a complex series of precincts and a labyrinth of paths into an homogeneous lithic “ruin” which was, by itself, also a sort of “monument”.


“(...) o conhecimento que nos traz alegria é aquele que infamiliariza.”
(...)
“Porque só a imprecisão é precisa – na medida em que a realidade é imprecisa, ela necessita de imprecisão para se expor.”
E. P. Coelho
“Mil Folhas” de 10.6.06, p. 18),
a propósito do livro de Gonçalo M. Tavares, “Breves Notas sobre a Ciência”, Lisboa, Relógio d’Água, 2006). “Tu não usas uma metodologia. Tu és a metodologia que usas. (Ou: tu não chegas a um resultado. Tu chegas a uma metodologia. Ou ainda: tu não provas um facto ou uma teoria, tu provas uma metodologia.)
Gonçalo M. Tavares
Op. cit., p. 62


a) Em ciência, a “prova”, quando vem, é sempre a con-firmação de uma intuição informada pela experiência anterior. É a con-firmação da intuição. Nada substitui a inteligência própria da intuição. A observação paciente não é nada em si; só a inquietação interrogante produz intuições, e portanto hipóteses de prova. Sem intuição não há investigação, há mais exactamente registo, acumulação, burocracia. A ciência trabalha sempre sobre o fio da navalha do que ainda só se adivinha, do que ainda se não vê. A capacidade de adivinhar o que há-de ser prova, de se anticipar à prova, é o que distingue o cientista do mero técnico burocrata. Muito do que passa por ciência é apenas rotina, inventariação, hábito preguiçoso, repetição. Trabalho útil, mesmo indispensável, mas apenas se enquadrado por um espírito e uma metodologia de projecto, mas um projecto sem tempo nem término pré-definido. A ciência não tem horas, nem é apenas nem sobretudo uma “profissão”: como tudo o que é mesmo bom, a ciência é uma vocação desmedida. A ciência precisa dos instrumentos, dos funcionários e dos arquivos, da mão-de-obra variada, mas para ter a inteligência de os sobrevoar, de os utilizar para um fim que nunca está inteiramente à vista, vai-se revelando. Uma investigação só acaba por exaustão de meios ou de paciência: a sua vocação é a da ininterrupta questionação. À ciência são chamados todos os espíritos com vontade de aprender, com vocação para o esforço de interrogar. Nada está prescrito, não há uma legislação da ciência; a ciência é da ordem da justeza (da justiça), não do direito (do já legislado). A pesquisa é, ou quer sempre ser, uma reivindicação contra o dito, o escrito, o já estabelecido, o legislado. A arqueologia a que nos dedicamos é uma forma específica de concretizar essa actividade de investigação, tão interessante como qualquer outra. Tudo depende da qualidade de quem a pratica, isto é, das possibilidades / capacidades que tem de trazer à colação, a propósito de um caso, toda a rede de hipóteses de relação com tudo o resto que é susceptível de se elaborar. Um caso de estudo – como o do sítio arqueológico do Castanheiro do Vento, por exemplo - é apenas a forma de exercitar a vocação universal da ciência, que é a mesma da arte ou da filosofia: a ânsia de ultrapassar os limites, de estabelecer redes de relações cada vez mais altas, onde se possam realizar “acrobacias mentais” cada vez mais im-prováveis, antes de virem a provar-se possíveis. Nada há de mais rigoroso do que essa acrobacia, neste sentido obviamente metafórico, porque ela é o cálculo do risco ao mais alto nível. Não pode falhar. Temos de construir uma ciência das pequenas coisas, das pequenas observações, da minúcia dos detalhes, não tabelando-os logo de “indícios de”, mas considerando-os “per se”, pacientemente. Abrindo o mais possível o feixe de relações possíveis entre um detalhe e outro. Isto não é afirmar que os detalhes “falem” por si, despidos de convenções; isto é tentar sempre despi-los de novo, sempre vê-los a nova luz, utilizando a imaginação, por forma a, em filigrana, arredarmos ecrãs que antes nos impediam de os ver nas suas qualidades específicas. Aprender com os que sabem das propriedades antigas dos materiais, com os que mexem no mundo das matérias, arredar falsos problemas que decorrem da nossa infinda ignorância e amnésia em relação a “como se trabalhava dantes”, chamar a nós o estudo dos filósofos e ver em que é que ele nos pode ajudar (ou, pelo contrario, perder, sobretudo quando reproduz, em modalidades diversas, a nossa tradição cultural ocidental desde os gregos)- isso é fundamental. Essa tradição riquíssima, que produziu a arqueologia, a antropologia, etc., no século XIX, pode todavia, e paradoxalmente, ser uma barreira quase inultrapassável para entendermos humanidades outras, que é o propósito do “pré-historiador”. Não pode haver maior ilusão do que julgar que se anda para a frente, que se avança, quando apenas se roda eternamente na mesma arena, glosando constantemente o mesmo, perpetuando os mesmos mitos, neste caso da “pré-história” edénicos, bíblicos, com roupagem científica. O “sistema” (a economia política dos saberes contemporâneos) nem sequer nos agradece, nem é assim bem servido, porque ele precisa de algo de “realmente novo” (invenção de novos nichos dentro do seu espaço vocacionalmente totalizante, totalitário) para corresponder a um anseio do mercado das consciências, que querem ser agradavelmente surpreendidas com algo que tinham sub-conscientemente antecipado, mas nunca mais acontecia. Aconselhamos, neste sentido, e como ponto de partida, apenas dois livros, por uma questão de economia: não há muito tempo a perder. Não para serem consultados, ou simplesmente lidos, mas para serem incorporados (o que exige disponibilidade e concentração), e, claro, a partir daí retrabalhados: Tim Ingold, “The Perception of the Environment” (Londres, Routledge, 2000, ed. Paperback de 2002); Julian Thomas, “Archaeology and Modernity” (Londres, Routledge, 2004). Sempre que se esteja a ler estes livros, e se pense que o que se está a ler não tem directamente a ver com o que procuramos, persista-se mesmo assim: acabamos por encontrar. Não temos de nos queixar das insuficiências dos “dados arqueológicos” para compreender ou “reconstituir o passado”. Não vemos nenhuma outra ciência a queixar-se assim. A queixa interioriza a submissão, desvia a atenção de uma situação real – a nossa pequena capacidade de intervenção social. Temos, sim, de nos lamentar da nossa ignorância do presente e, tantas vezes, da nossa ignorância da bibliografia pertinente (e carência de tantos outros meios) para construirmos, hoje, o passado que nos compete. Por esse é que temos de lutar, na arena pública e nos textos ao alcance da nossa escrita. Bem usada, esta é um instrumento importante de comunicação, mesmo na sociedade dos “media”. Por isso, escrevemos e publicamos. Explicamo-nos escrevendo e lendo, numa tradição antiga, que exige tempo e reflexão. b) Começa já a ser longa a bibliografia sobre este sítio de Castanheiro do Vento, cujas escavações apenas se iniciaram (e por uma campanha bem curta de uma semana!) em 1998. Não vamos por isso cansarmo-nos a nós e aos leitores com repetições do já dito, reportando-os para o apêndice e para as referências bibliográficas que vêm no fim do artigo (assinaladas com asterisco). Economicamente, o que nos importa é irmos directamente à problemática essencial, tal como ela se nos apresenta hoje (Junho de 2006), e que conduzirá, sempre que possível, a objectivos mais amplos, mais ambiciosos: questões/conceitos relacionados com arquitectura, estilo, eventuais “razões de ser” de estruturas monumentais deste tipo, formas de sociabilidade com elas relacionáveis, etc., etc. Estes são problemas de ampla escala e de longo prazo, que possivelmente acompanharão sempre o processo de investigação deste sítio. Mais do que fechá-los numa resposta, interessa formulá-los sob a forma de perguntas, que são sempre modos, já, de induzir respostas, mas respostas múltiplas, plurais. Aos que querem lacar o passado, lacando assim a experiência presente, nós respondemos que o passado não é lacável; é múltiplo e controverso como a própria vida. Os sítios que designamos por convenção arqueológicos (arqueológico é todo o espaço que nos rodeia) não significam nada de definitivo; mas aquilo que hoje nos parecem significar tem de ser argumentado, comprovado, exposto. As razões da nossa indecibilidade e das nossas hipóteses têm se ser patentes aos outros colegas, à comunidade inteira. São nossa preocupação de base, e motivação última, algumas “questões de fundo” capazes de arquitravar trabalhos de longo fôlego (como dissertações de doutoramento, que são tudo menos monografias, ou partes de monografias, de estações) e de contribuir para uma “filosofia de equipa”, isto é, um conjunto de problemáticas partilhadas, sempre em discussão, sempre mutáveis, mas não menos importantes, em cada momento, para nos entendermos todos, por exemplo, sobre o que é que estamos basicamente a fazer em Castanheiro do Vento e sítios similares quando ali “consumimos” os nossos verões, e o que é que passamos o resto do ano a fazer, quando tentamos “digerir” o resultado de tal “investimento”. Qual é o nosso “projecto”, afinal, no seu mais profundo alcance. Que o leitor nos perdoe se alguns aspectos tocados aqui vêm em parte repetidos no “apêndice”, onde no final resumimos as principais tarefas e observações da campanha de 2005; algumas dessas repetições são quase inevitáveis. E a repetição muitas vezes tem o valor próprio de enfatizar, sublinhar. Alguns dos aspectos essenciais que notamos até agora em Castanheiro do Vento, e das ideias que nos permitem equacionar, em forma de mera alusão, são os que a seguir expomos em vários tópicos, de forma extremamente sucinta (com as precauções que a nossa ignorância nos dita), e que podem por ora ser completados com o apêndice final. 1- Multiplicidade de visões do sítio a partir do território exterior envolvente Trata-de de uma colina que, vista de NNW, de uma zona próxima (estrada asfaltada para S. João da Pesqueira, ou pequeno estradão que dela arranca e dá acesso a umas elevações directamente sobranceiras ao sítio) apresenta uma forma sub-cónica, bem circunscrita (tendo a quinta do Campelo no sopé), com o topo aplanado. Essa forma, que se “lê” também directamente na Carta Militar de 1:25.000, é muito diferente a partir de outros “pontos de mira” sobre o sítio (por exemplo, da localidade de Sequeira, na ribeira da Teja; da zona da barragem do Catapereiro, onde o vale da mesma ribeira estreita; do alto da Senhora do Viso, a norte; ou do Castro de Ranhados, a sul, etc.). De cada um destes locais vê-se um “Castanheiro do Vento” diferente; essa variedade de imagens, de enquadramentos, é certamente intencional. Permite observar, ou simplesmente vislumbrar o sítio, de diversificadas formas: como um todo, apenas parte (ou um lado) dele, ou até mesmo quase que “apagá-lo” na paisagem. De outros pontos, ficará mesmo “tapado” por diferentes elevações. Ou seja, mesmo considerando apenas o sentido da visão comum, de quem circula no terreno, e não da visão “cartográfica” ou aérea (obviamente fora do quadro dos possíveis das pessoas da pré-história) o Castanheiro do Vento, num “momento” dado (tal como hoje), não seria “único” como imagem vista a distância: seria visível ou invisível, poder-se-ia encarar de lado (de leste, por exemplo) ou de frente (de norte?), poderia ter uma maior ou menor “monumentalidade”. Seria um sítio múltiplo. Poder-se-á argumentar que esta é uma constatação tão óbvia (verdade de “La Palisse”) que nem valeria a pena ser mencionada (mas não cremos; precisamente o não expresso é muitas vezes o mais importante como plano de partida). Realmente, ela não vale para todos os sítios, bastando dar como exemplos dois casos extremos: na região há abrigos, cujo enchimento revelou materiais pré-históricos, na zona granítica (vale da ribeira de Murça, por exemplo) de que só muito perto nos apercebemos; as cristas quartzíticas (por vezes associadas a achados arqueológicos, esporádicos ou não), pelo contrário, balizam o território a distância, pelo menos o “território de visibilidade”. Quando vamos do Porto pela Estrada de S. João da Pesqueira, de oeste para leste portanto, e tendo à nossa esquerda o vale do Douro, há um momento em que começamos a ver no horizonte a “crista” em que se insere o alto da Senhora do Viso. Sabemos então que nos estamos a aproximar de uma área que esse “alto” domina visualmente (e onde se insere Castanheiro do Vento), área essa tão vasta que até de Espanha, ou de zonas do concelho de Moncorvo junto ao Douro, se observa nitidamente o seu limite, como uma barreira, física e em termos de visão, neste caso situada a ocidente do observador. O mesmo poderíamos dizer de outros acidentes (relevos de resistência) que pontuam a paisagem do Alto Douro português e suas imediações, e/ou desta zona em particular. Por exemplo, o Monte de S. Gabriel, sobranceiro ao rio Côa, e cuja imagem se impõe ao visitante de Castelo Velho (Freixo de Numão); ou a serra de Almofala (Figueira de Castelo Rodrigo), que se vê tanto desse sítio arqueológico como do próprio Castanheiro do Vento, etc, etc. A maior ou menor densidade de vegetação, como argumento pertinente para a realidade que acabamos de descrever, ou seja, para a visibilidade dos locais, ou mesmo para a sua sua inter-visibilidade, etc., é de certo modo irrelevante. Porque quem construía sítios como Castanheiro do Vento teoricamente podia manipular, se o desejasse, uma vasta área de território, incluindo o coberto vegetal e arbustivo. A acção sobre ele era, também, “arquitectura”, ressalvadas as acepções desta palavra, a que voltaremos. Quem esculpia pedra, esculpia o coberto vegetal, se o pretendesse. A multiplicidade de perspectivas acima esboçadas (a multiplicação das imagens de Castanheiro do Vento para aquele que percorre o terreno em redor) é importante porque de certo modo desvaloriza a pretensa unicidade do sítio – a concentração da nossa atenção numa imagem fixa dele, e nas suas supostas características – e dá relevo à importância de caminhos, de veredas, de rotas no território, que deveriam constituir a experiência mais frequente. E cada um desses trilhos “multiplicava” as diferentes visões do local, permitia dele uma “leitura diferente”, mesmo admitindo, claro, que a visão está sempre ligada a outros sentidos e à memória (consciência, ou crença, no invisível e no temporariamente ausente, trabalhado pela capacidade - pessoal e comunitária - de ficção). Há muito a fazer neste registo das paisagens percorridas e vividas, e da maior ou menor “emergência” dos sítios nelas. Mas é um trabalho de equipa, tal como a escavação, e não produto das reflexões de um “passeante solitário”. O arqueólogo tem de habitar (“to dwell”) a paisagem arqueológica, senti-la a sua casa. Ou seja, a paisagem actual tem de ser vista pelos seus olhos atentos aos sinais de temporalidades diferentes, que só a longa permanência permite. Em rigor, cada arqueólogo não deveria, na sua vida, investigar mais do que uma área. É um embuste andarmo-nos a dispersar, além de que o estudo cuidado dos locais e das regiões levaria à necessidade de maior número de investigadores e de técnicos (é por isso que temos de lutar, sempre). E tem de se estabelecer uma metodologia partilhável para esta abordagem “fenomenológica” do terreno, para que o trabalho possa ser de equipa, e criticável por outros. E um dia, quando tivermos muitas informações deste tipo, ajudadas pelos “media” actuais (video, simulações 3D, etc.), poderemos talvez começar a elaborar um “quadro dos possíveis observáveis” relativamente a cada local, a cada zona do território. Tarefa que vai a par das escavações e das simulações do(s) sítio(s) que elas nos permitem ir fazendo, num trabalho que nunca – enfatizamos isto - estará pronto. Congelar um trabalho é congelar a própria vida em que esse trabalho, para ser produtivo, tem de estar embutido. Relativamente a Castanheiro do Vento, quando estamos num ponto de visão situado nas colinas próximas, a NNW, vemos uma realidade física bem delimitada, arredondada, ladeada de outras elevações mais baixas, numa sugestão de simetria. Quem “estivesse aí no passado” podia observar algumas das actividades que se processariam no local, sobretudo se envolvessem muitas pessoas, cores, sons, fumos, mesmo que esse local fosse, como imaginamos, quase um labirinto de muros, circuitos, recintos. Quando vamos ao alto da Senhora da Guia, a norte, já vemos a colina arredondada mais longínqua, como que mais aplanada, e até certo diluída na paisagem da ribeira da Teja. Seria daí impossível monitorizar fosse o que fosse do interior do sítio, mas poder-se-ia ter uma ideia de que algo acontecia ao longe, sobretudo se as arquitecturas tivessem alguma imponência, cromatismo contrastante com o meio envolvente, ou se houvesse actividade(s) que envolvesse(m) fogo, mesmo de pequena escala. Quanto olhamos a partir do Castro de Ranhados, a sul, ou quando entramos por esse lado na área em que a bacia da ribeira se alarga, só “damos” por Castanheiro do Vento quando estamos relativamente perto. Mas da sua base, a leste (por exemplo, da Quinta do Valado), não vemos o topo, tapado por elevações secundárias; porém, se formos até à Sequeira, da zona da “Residencial Quinita”, ou da ponte que atravessa a ribeira, vemos a “fachada lateral” do sítio (onde se poderiam ter instalado várias plataformas) em toda a sua magnificência, como um barco alongado voltado com a proa a norte. Se aí, nessas encostas laterais, tivesse havido as tais plataformas e muros, como é muito verosímil (por exemplo, encontram-se blocos – tombados pelas máquinas de plantio de eucaliptos - de grandes dimensões, um deles com covinhas, na encosta virada à ribeira, logo nas imediações da area escavada) o efeito sobre o vale teria sido espectacular, absolutamente impositivo, sobretudo se as estruturas de argila fossem decoradas ou simplesmente tivessem um cromatismo que contrastasse com os verdes em volta. São situações deste tipo que temos de registar, cartografando os pontos de onde fotografamos, e se possível ensaiar sobre essas fotos (idealmente, tratadas, para lhes retirarmos acidentes actuais) ensaios de modelização em 3D, não tanto, primeiro, para vermos o sítio em movimento, o que até por vezes confunde, mas para “fazermos uma série de instantâneos”, de pontos de mira, como base para uma “tipologia” de tais “pontos de paragem do olhar”. A publicação destes resultados em mapas, fotografias e comentários pode ser de enorme utilidade para irmos interiorizando uma experiência do sítio em termos visuais, a partir de multiplicados ângulos de observação. Estes sítios, como Castanheiro do Vento, ou Castelo Velho na mesma zona, ou Crasto de Paleiros, em Murça, etc., etc., eram “ímans”, locais de captação da atenção colectiva, quaisquer que fossem as estruturas neles implantadas, e a sua maior ou menor magnificência. Não é tanto esta magnificência em si que está em causa, são as “transformações” da imagem que importam, a sucessão de pontos de observação que, ao longo de percursos, permitiam vislumbrar diferentes “Castanheiros do Vento”. É essa experiência, essa metodologia, e sua teorização e sistematização que estão ainda por fazer; ou melhor, estão en curso de realização. A palavra transformação é vital para o entendimento desta realidade arqueológica, de uma forma dinâmica. Como iremos ver, neste e em trabalhos futuros, a várias escalas e em vários sentidos podemos falar destes locais como nódulos de sistemas de transformações, perpretados pela acção humana, numa rede imensa de caminhos, trajectos, destinos. Transformações no sentido mais global, materiais e de sentido (lamentavelmente, a nossa linguagem arrasta-nos para dicotomias que não exprimem o que pretendemos, mesmo quando tentamos complementar realidades diversas; não se trata de facto de complementar, trata-se de re-achar a unidade que a nossa linguagem decompôs), tanto no que diz respeito a coisas, como a seres vivos, como a pessoas. Estes locais eram como que “teatros”, lugares onde a realidade comezinha (em que nenhuma “sociedade” alguma vez se esgotou) era transmutada para outro plano, sobrecarregada de simbolismos e de intencionalidades, que estavam subjacentes à acção quotidiana, mas aqui podiam ser encenados de uma maneira mais explícita, suportando, reactivando, e criando mitos, contos, tradições, laços sociais indispensáveis á produção e reprodução social das identidades e das alteridades. Nesse sentido, metaforicamente, poderíamos falar de “povoados fortificados” – passe a ironia - : estes eram sítios onde morava, concentrada, a vontade, por parte da comunidade, de o ser e de o reafirmar, frente a estranhos ou a elementos de outras comunidades. Estes eram “povoados da identidade fortificada contra a alteridade”. Mas uma identidade e uma alteridade muito fluidas, mutáveis, complexas, ainda por nós mal conhecidas (insuficientemente imagináveis). 2- Multiplicidade de visões da paisagem a partir do sítio A ideia de paisagem, e em particular de paisagem panóptica, própria do nosso “modo de ver” actual, apoiado em toda uma instrumentação óptica e até digital, não teria, evidentemente, qualquer sentido há cinco mil anos. Se Castanheiro do Vento é ainda hoje múltiplo, porque apresenta de si mesmo uma imagem variada consoante os pontos de onde é observado, também a(s) paisagem(ns) que o rodeia(m) seria(m) múltipla(s), consoante o ponto do sítio de onde se mirava. E o sítio podia ser um dispositivo de distinção social, na medida em que talvez nem todos tivessem acesso a todos os pontos de mira, nomeadamente os mais centrais e elevados. Assim como num monumento megalítico o acesso à câmara funerária era espacialmente restrito (como que a sugerir uma restrição social – jamais uma comunidade, por exemplo de construtores, se poderia reunir ali dentro), assim também aqui a certas platafomas, estruturas, recintos, micro-espaços, talvez só pudessem aceder alguns… mas segundo regras e constrangimentos que parecem mais complexos. Algumas hipóteses, apenas, de posicionamento do(s) sujeito(s) poder-se-iam enunciar assim: mais alto, mais baixo; mais perto dos muros, ou mais longe deles; mais junto das periferias ou encostas da colina, ou das passagens; alçando-se a uma eventual “torre”, ou colocando-se no interior de uma espécie de “cabana”, ou estrutura circular; situando-se num espaço fechado (com telhado), ou aberto, destapado; localizando-se na proximidade de outras pessoas ou estando só; convivendo com grupos vizinhos, ou contracenando apenas com pessoas do seu grupo, etc., etc. Como ainda hoje, o estado psíquico e comportamental dos indivíduos e dos grupos seria variadíssimo; e o local, um dispositivo para induzir, reforçar, concentrar no espaço / tempo essa multiplicidade de experiências. Eis, pois, toda uma série de possibilidades de visão (aliadas à movimentação do corpo, à deslocação ao longo de percursos no interior de recintos e espaços inter-muros) e portanto de experiência e de transformação da paisagem, que se oferecia a cada um dos membros, ou grupos, componentes da comunidade ou comunidades que fizeram, vivenciaram, alteraram por certo constantemente, ou quase, um ou outro aspecto “físico” do local. Ou foram “autorizados”, como “grupos visitantes”, a “entrar” na colina e nos recintos, cruzando sucessivos limiares. Toda uma “simbólica das fronteiras”, em relação com uma negociação social de status (e portanto implicando a compreensão do funcionamento global destas comunidades) estaria aqui, evidentemente, em jogo. Só que não temos ainda uma “solução de bolso”, e muito menos universal, para responder a essa questão basilar, como julgam ter aqueles que partem de uma doutrina (não confundir com um conjunto de hipóteses, que são indispensáveis) para a realidade. Uma doutrina é aquilo que é apresntado como indiscutível, ao arrepio da ciência. Se estes sítios parecem terem sído sistemas de espaços e sub-espaços embutidos, dispositivos de um complexo “exibitório”, essa “exibição” incluiria a paisagem, quer sob a possível forma de “janelas” (isto é, ângulos de visão curtos circunscrevendo pontos específicos desta), quer sob a forma de “miradouros”, ou seja, ângulos de visão amplos, quase panópticos (sem os sobrepor aos nossos, como já dissemos), sobre a paisagem em redor. É possível, mesmo provável, na sequência do que se escreveu acima, que diferenças de status estivessem ligadas a prescrições sobre quem tinha, ou não tinha, acesso a determinados circuitos e pontos de mira sobre a paisagem. Essa “paisagem” não seria – sublinhamos uma vez mais - um quadro de contemplação como o de um artista romântico ou de um turista contemporâneo, não seria um território de captação preferencial de recursos, como o veria o funcionalismo mais chão, não seria ainda um espaço apenas de tarefas (“taskscape”), ou de lugarejos, aldeias, casas dispersas, campos e zonas de pasto ou de caça e pesca, etc. Essa paisagem seria sempre mutável (desde logo pela própria dinâmica do tempo e das estações do ano, obviamente), mas sobretudo relacional, porque vista com os olhos da experiência das comunidades, dos grupos, dos indivíduos. Apesar de todos os constrangimentos da “arquitectura”, e também por causa deles, a paisagem seria sempre múltipla, variável de época para época, de estação do ano para estação do ano, e, em última análise, de pessoa para pessoa, conforme o seu status dentro do(s) grupo(s). Seria, como ainda o é hoje, uma paisagem de subjectividades, projectadas de acordo com dispositivos conscientes, sub-conscientes, inconcientes. Estudarmos arqueologicamente (pela escavação) essa diversidade é apenas aflorarmos uma questão imensa, lançarmos um vasto quadro de possibilidades que temos de manter sempre, e por definição, em aberto. Como em qualquer saber: o que se não sabe ainda é sempre o mais interessante. Agora, podemos e devemos cartografar, registar as coincidências e os desfasamentos, tentar perceber o que teria podido ser genericamente “contemporâneo” e estar articulado, pelo menos em termos espaciais. Determinada “porta” alinhava com outra fronteira, noutro muro? Que conjunto de estruturas e de objectos estariam relacionados num contexto (quer dizer, associados numa mesma sequência de acções, ou em sequências diferentes, mas em que a ulterior respeitava a integridade da interior, de certo modo integrando-a na nova) ? São questões destas que é preciso pôr, inventariar para cada sub-área, sistematicamente, fugindo da mera tipologia formal e descritiva de “listas”, numa lógica aditiva, enumerativa, burocrática, e passando a elencar as teias de relações entre coisas visíveis, desenháveis, fotografáveis, registáveis, por contextos, numa lógica inteligente de estabelecimento de redes, de criação de novos objectos (objectivos) e de novas metodologias. O entendimento da dinâmica do sítio é obviamente também o entendimento da dinâmica da paisagem. Dinâmica essa que não obedeceria a fases, horizontes, ou mesmo “campanhas de obras” no sentido actual, como somos tentados a imaginar hoje, na nossa lógica evolucionista ou mentalista, mas seria muito mais complexa do que isso. Nem sítio nem paisagem eram objectos de contemplação, mas modos variadíssimos de uma experiência global, regida, como em todas as formas de sociabilidade, por aquilo que é o mais importante, o não dito, o subentendido, o não verbalizado. Isto não significa fazer dos “pré-históricos” uns “brutos colados à acção”, incapazes de reflectir ou de “parar para pensar”; nada disso, bem ao contrário. A atenção teria era outros regimes, diferentes do nosso, muito intelectualizado, e mediado pela escrita (sobretudo daqueles que tradicionalmente eram considerados “intelectuais” - palavra, significativamente, em desuso). Sítio e paisagem são, aliás, duas polaridades nossas, porque seriam porosas, inter-relacionáveis, inter-mutáveis. O sítio era uma micro-paisagem, aquilo que chamamos paisagem um macro-sítio. O local era “fabricado” com materiais trazidos do território, e este até podia estar (estava com certeza, quase!) para além da paisagem visível. Ao serem trazidos, transformados, incorporados no espaço/tempo circunscrito de Castanheiro do Vento, os materiais, as pessoas, os comportamentos inseriam-se numa espécie de lógica de concentração de sentidos que de certo modo se opunha (trata-se, é certo, de um esquema simplificador, redutor) ao que poderíamos designar uma lógica de dispersão (multiplicação) de sentidos do mundo envolvente. Todas as “sociedades” que conhecemos conhecem ritmos diferentes, “tempos” diversos, ao longo do ano, ao longo da vida dos indivíduos, etc. Um outro aspecto que tem sido muito tratado por autores que estudam sítios monumentais pré-históricos, é, como sabemos, o da arqueo-astronomia. Primeiro aplicada a sítios famosos como Stonehenge, ou em geral aos círculos líticos das Ilhas Britânicas, ou aos alinhamentos de Carnac, na Bretanha (ou até a simples dolmens, que são monoaxiais), passou a ser hábito ver-se a possível orientação astronómica das mais diversas estruturas (em muitos sítios do mundo a própria “casa” tem uma orientação definida segundo pontos azimutais, como é bem sabido pela etnologia - toda a questão está nesse pretenso universal que é a “casa”…, pois não há nada de mais enganador do que isso, o que torna as especulações de Bachelard, Rapoport e outros, muito discutíveis, se bem que interessantes), nomeadamente a orientação astronómica de portas ou passagens para recintos. E também, de forma mais comezinha, digamos, passou a estar-se atento à questão de se a “simbologia das passagens” estaria articulada com a visibilidade de outros acidentes da paisagem (“monumentos naturais” ou construídos, etc.). É um domínio em aberto, que deve ser explorado, e que para Castelo Velho um de nós (GLV) irá tratar noutro contexto. Dado o carácter incipiente das pesquisas de Castanheiro do Vento parece-nos que, devendo referir este aspecto aqui, não é agora ainda a ocasião de dele tentarmos tirar algum proveito para o entendimento do sítio. Ou seja, a observação do espaço celeste e do movimento dos astros e estrelas era uma das formas mais seguras que o ser humano tinha de estabelecer regularidades no fluxo do tempo e das vivências; mas não a única, obviamente, porque todo o meio ambiente é histórico, no sentido de ter uma historicidade, uma temporalidade múltipla, a que as pessoas estiveram desde sempre muito atentas, muito mais do que nós, hoje, que vivemos amparados aos relógios, aos mapas, e aos GPS. 3 – Multiplicidade dos materiais de que um sítio como estes era “feito”, suas substâncias, texturas, formas, cores, conotações: a pedra, a terra (argila), os materiais vegetais, etc.; multiplicidade de “espaços” que integravam o sítio “Ciência” própria do arqueólogo é estar atento aos pequenos indícios, para, a partir do que vê, e independentemente da sua expressão actual, tentar adivinhar a importância relativa que isto ou aquilo terá tido no passado. O processo da arqueologia não é tanto um trabalho relativo ao tempo (repor um tempo já decorrido), como ao espaço: exumar o que está escondido sob a terra acumulada, perceber o que cada elemento esconde à nossa vontade (para não dizer avidez) de observação compreensiva. Essa compreensão não se estende tanto em profundidade (obsessão estratigráfica, lida de cima para baixo, ligada à narrativa histórica, contada depois de baixo - do começo – para cima – para o fim) como em amplitude. Claro que em última análise há que conjugar as duas. Só a amplitude (trabalho em area) permite o relacionamento de elementos, a possível conexão que teriam diferentes pontos do sítio, numa determinada época. Mas que época, se justamente temos dificuldade (ou renitência) em estabelecer “fases” do sítio, e, a não ser em casos óbvios, pretensas contemporaneidades entre os seus elementos? Aqui a paciência e a persistência é a “mãe de todas as virtudes”. Quem diz agora que algo é impossível, está a criar uma barreira inútil ao seu próprio desenvolvimento. Só há ciência do possível, claro, e o possível está sempre a advir do impossível. Cada época tem a sua temporalidade. A nossa está marcada pelo relógio, pela precisão da medida. Vivemos dia a dia. Noutras, nem relógios existiam, e os ciclos do tempo eram marcados pelos trabalhos do campo, pelo ritmo das estações, pelas tarefas distribuídas ao longo do ano, ou por acontecimentos fastos ou nefastos que afectavam esta ou aquela família ou comunidade. Era uma temporalidade mais lenta (feita, é claro, e como sempre, de vários tempos embutidos uns nos outros). Mas, qualquer que fosse a temporalidade da pré-história recente, na “vida vivida” a alternância do dia e da noite existia, e a existência das pessoas balizava-se por tarefas e por tradições, mas decorria numa temporalidade que, no limite, seria, com probabilidade, muito radicalmente diferente da nossa. Dado que mesmo os metabolismos corporais ou os condicionalismos ambientais são relativos, porque dialógicos (relação e construção mútua), porque articulados com o modo de vida e com os sistemas de valores e de representações. Não estamos a repor o velho discurso da relatividade e variabilidade das culturas, nem a falar de construções sociais da realidade: discutir tudo isso daria outros trabalhos. Na verdade, estratigrafica e tipologicamente eu posso dizer que duas estruturas são (ou parecem ser) contemporâneas uma da outra (podiam ser postas na mesma “prateleira” teórica do “museu histórico-cultural”), mas na realidade vivida, quando uma delas foi erigida, a outra podia ainda não estar lá, ou ter entretanto já caído em ruína. Há que ver muito bem as imbricações de muros a nível arquitectónico, e também a sua relação com as camadas (dos mais diferentes tipos), porque aí evidentemente existem possibilidades de estabelecer diacronias e sincronias. Há que estar muito atento às “técnicas” de trabalho utilizadas e nunca esquecer que aquilo que é hoje algo posto à superfície por nós, pode ter estado coberto no passado (basamentos, estruturas internas de taludes, etc.) e não ter sido visível sequer. Quando se passa de uma “pré-história estratigráfica”, de “espólios”, “artefactos” e “horizontes”, para uma pré-história mais rica e problematizante, é muito importante analisarmos o mais finamente possível o sítio, com minúcia, para contornar o mais possível as dificuldades interpretativas. E isso, às vezes, só se pode fazer em profundidade depois de o “descascarmos” à superfície, depois de termos uma ideia do ordenamento das estruturas mais proeminentes hoje, depois de todas as alterações que afectaram o local. É o que estamos a efectuar (ver apêndice). Já se sabe que em arqueologia estamos condicionados, mas como em qualquer outro saber (cada campo disciplinar tem os seus condicionamentos próprios), pelo tipo de elementos de que partimos, pela informação de que dispomos (ou julgamos dispor); mas, se virmos bem, a realidade arqueológica é essa, dialógica, produto de uma co-presença de nós e dos sítios, e nós ao escavar é que muitas vezes verdadeiramente a truncamos. O que há que lamentar é a perda evitável; da outra, há que “fazer o luto” “a priori”, no momento de nos consagrarmos à pesquisa. De facto, pode haver uma situação excepcional de experiência de perda, que é apenas quando constatamos “de visu”, e impotentes, a destruição de valores arqueológicos mesmo à nossa frente. De resto, a dificuldade de estabelecermos co-presenças no “tempo vivido” do passado (sobretudo entre espaços, áreas ou sítios não conectados espacialmente ou estruturalmente, de algum modo) pode não ser tão drástica ou impeditiva de estabelecermos modelos de explicação de um sitio quanto antes da escavação cuidada e da análise minuciosa nos parece. Aqui, temos de ser pragmáticos: os melhores problemas são aqueles para que encontramos solução rápida, nunca deixando de olhar de soslaio aqueles outros que, por persistência e descarte de hipóteses sem sentido, poderemos, até “por exclusão de partes”, vir a resolver. A arqueologia tem muito de manobra de barco: é fulcral escolher bem a rota e corrigi-la a cada passo. Tem de se ter um tipo de inteligência muito ligado à acção directa sobre as materialidades, e que nunca caia na rotina, como certos (pseudo) “bons escavadores” fazem, aplicando o mesmo ritmo em todo o lado, como se escavar fossem “lavores” ou “trabalhos domésticos”. A escavação é um processo intelectual exigentíssimo, porque altamente adaptativo, negociado entre intervenientes (alguns dos quais pouco ou nada motivados, ou não habituados ao trabalho duro), e realizado em condições de desconforto físico, em pleno campo. A maior parte dos nossos colegas, mesmo de outros ramos do “património”, só fica a fazer uma ideia quando nos visita, e mesmo assim muito ténue. Valorizar o espaço é valorizar o movimento, a dinâmica, sobre a fixação fossilizada, das imagens “típicas”, numa escala de tempo, como nas vitrinas de um museu que enfadonhamente nos recontassem as eras, as épocas, os períodos. Sem nunca nos falar de qualquer experiência em particular. É por essa experiência do lugar, do concreto (para tentar ver na nossa imaginação os vultos das pessoas circulando como objectos entre objectos, e para tentar tirar disso indícios de significado) que aspiramos, que trabalhamos, que privilegiamos a análise em área, antes de fazer mais “buracos no tecido” da estação arqueológica. Queremos primeiro entender o padrão de cima, com o “pano estendido”, para depois, se possível, descer ao que este cobre, àquela realidade subjacente a que este serve de véu. E assim sucessivamente. Um sítio cujo soco era o xisto e o grauvaque (complexo xistoso-grauváquico), que por sua vez se decompõem em solos argilosos, continha parte das “matérias-primas”, como diríamos hoje, para a sua própria “fabricação”. Assim, Castelo Velho de Freixo de Numão, escavado por S. O. Jorge, era uma autêntica “pedreira” de si próprio, trabalhada em todas as épocas até ao soco. Mas as placas, lajes ou blocos de xisto daí retirados foram-no, não tanto por causa de serem um recurso mais próximo, mais à mão, mas porque a “moldagem” do afloramento cimeiro do Castelo Velho implicava essa extracção. A dita “frente de pedreira”, que as escavações revelaram, ficou a fazer parte da arquitectura. Que tinha muitos traços que se não destinavam a ser vistos, ou pelo menos a ser vistos como hoje nós, arqueólogos, os observamos após a escavação sistemática do local. No Castanheiro do Vento – pois é nesta estação que nos queremos concentrar, evidentemente – água e arvoredo haveria perto, pelo que os principais elementos da construção estavam, em princípio, também mesmo ali. No entanto, esta visão do “menor esforço”, projectando o calculismo económico contemporâneo mais chão no passado (tanto mais que hoje, como sempre, as pessoas fazem os maiores esforços precisamente pelo “gratuito”, e especificamente pelos lazeres e pelo “cultural”…), seria de um simplismo atroz. Desconheceria que nada ali é arbitrário ou casual; passaria ao lado do carácter transformador do local sobre os elementos que nele eram incorporados. Que pretendemos dizer com tal “carácter transformador”, a que já atrás aludimos? É que uma cabana, ou o que parece ser o seu resto, não seria necessariamente uma cabana, se é que esta palavra define alguma coisa. Ou um moinho manual de granito, fosse ele movente ou dormente, não se encontrava ali, provavelmente, em “posição primária” (um mito muito perseguido poelos arqueólogos), mas teria vindo de outro local, fazendo parte de um sistema de significação novo, que não só implicava transformações de sentido em relação aos objectos que ali “davam entrada”, mas iniciava toda uma nova vida social dos objectos, adentro de uma possível sequência de deposições. De que estamos, nestes sítios, perante um sistema de deposições, não temos dúvida; de que tudo quanto ali era feito ou acontecia pertencia a uma esfera especial, também não. Só a questão da sequência de deposições é uma mera hipótese, inpirada no que acontecia e acontece em muitos contextos estudados por etnólogos e arqueólogos. Definidos os recintos, as diversas periferias do sítio (as quais, por ora, só muito parcialmente são conhecidas em Castanheiro do Vento), aquilo que “entrava” no seu interior sofria um processo de transmutação. Que trasmutação? Dá-nos por vezes a sensação – e isto não passa ainda de uma intuição – de que todo o sítio é uma espécie de microcosmos, ou representação ideal da ordem, que não só servia como tal, mas como quadro de cerimónias que podiam repetir cenas ancestrais, por exemplo. Nesse quadro, o quotidiano e os seus “suportes materiais” eram transfigurados. Estamos perante o que parece ser simultaneamente um processo metonímico (uma parte valer pelo todo, ou seja, o sítio simbolizar o mundo para um grupo social de certa amplitude) e metafórico (em que as várias áreas do edifício, os espaços de deposição definitiva ou temporária de coisas, etc., faziam alusão a outras realidades, ou à própria actividade transformadora dos seres humanos). Então, os vários tipos de “coisas” que eram incorporadas na contrução – fragmentos de rocha de cor, textura, densidade diferente, argila, troncos, ramos, etc., lajes com superfícies insculpidas, ou mesmo objectos “fora de uso” (moinhos manuais partidos, objectos de pedra polida com as lâminas embotadas por percussões, fragmentos de vasos cerâmicos, milhares de percutores em quartzo, etc.) podiam ser símbolos do mundo externo, tanto dos seres vivos como das actividades humanas, mas transmutados para outros espaços de significação. Tratar-se-ia, por exemplo, de simbolizar uma certa permanência, ou perenidade, por oposição à precaridade ou contingência da vida quotidiana? Se assim fosse, quase todos os elementos móveis encontrados poderiam ser interpretados como alusões, referências, “citações” de realidades que tinham passado de um estado de precaridade (em termos modernos, “função”) a um estado de perenidade (elementos fracturados, metonímicos, como se fossem, em termos históricos, relíquias ou oferendas depostas em certos locais). Se esta realidade, a que acabamos de aludir como hipótese, é produto da nossa imaginação, não temos porém dúvida de que qualquer “ideologia” de grande escala presidia a construções deste tipo, ideologia de que apenas quisemos dar uma ideia possível. Os vários materiais – argila, madeira, rochas de diferentes tipos, água, arbustos, ramagens e folhas, fibras, etc., etc. –utilizados em Castanheiro do Vento (tanto para os artefactos de grande porte, ou fixos, como para os pequenos, transportáveis), e os espaços e movimentos com eles (e neles) feitos, seriam integrados numa cosmovisão decerto diferente da nossa. Cosmovisão provavelmente não funcionalista (funcionalista no sentido em que em geral se diz que a nossa o é, mas de facto, para sermos rigorosos, não é, porque subjectivamente investimos todos os objectos que usamos de “qualidades” que são propriamente imaginárias) e com conotações que até poderiam traduzir homologias, analogias, correspondências. O estruturalismo procurou explorar muito esse aspecto, na esperança de encontrar, sob o empírico visível, regularidades inconscientes que apenas poderiam ressaltar após uma análise comparativa, tão exaustiva quanto possível. Já não acreditamos nessas regularidades, pelo menos de grande escala; mas isso não significa que elidamos a possibilidade das comunidades que estudamos, na sua cosmovisão incorporada, articularem “qualidades” de diferentes contextos através de conotações e associações, por exemplo, do tipo das que esboçamos a seguir. Trata-se, repetimos, de meras hipóteses (possibilidades com alguma sustentação no já observado) ou mesmo especulações (possibilidades puras), que têm por objectivo “abrir” a imaginação, e ajudar a ver o sítio de um modo mais interessante, à medida que o trabalho de pesquisa prossiga, nunca confundindo hipótese com probabilidade ou certeza. Sem a ousadia de avançarmos por aqui caímos com facilidade na repetição e no “déjà vu”. Vejamos então algumas, apenas, dessas eventuais e hipotéticas correspondências, e outras implicações possíveis destas “arquitecturas”, partindo do geral para o particular. Território – mundo da comunidade (sem fronteiras físicas definidas), entendida como uma comunidade (conjunto de elementos em interacção mutual) de seres humanos (sedentarizados), animais, vegetais, e minerais. Seria este a área preferencial de vivência (a “taskscape”) de tal comunidade, entendida agora como um conjunto organizado de seres humanos, permanentemente sulcado por trajectos, e ocupado por pontos de paragem mais ou mneos variáveis (lugares para o desempenho de tarefas / captação e criação de recursos, lugares de habitação, etc., etc.). Colina monumentalizada – micro-mundo (cosmos, realidade organizada segundo certos padrões gerados e alterados pela própria acção) construído como uma metonímia e, ao mesmo tempo, metáfora do primeiro, mas sob uma forma “controlada” pelos seres humanos, e portanto correspondendo a uma concentração enorme de sentidos, de energia, de transformações (transmutações) de elementos do primeiro em elementos do segundo. É a este nível que podemos dizer que estamos perante um “espaço de transformações” em que a(s) comunidade(s) manipulava(m) uma série de elementos provenientes do local e de fora do local, por forma a integrá-los num todo novo e ordenado. Embasamentos pétreos de arquitecturas de argila – esqueleto do sítio, conotado com a própria definição/redifinição no terreno da sua estrutura complexa e labiríntica, e com a durabilidade; transição entre a durabilidade do afloramento xistoso e a vulnerabilidade, fragilidade, das superestruturas em argila, ramos, etc. Não seria de excluir, claro, uma homologia, ou analogia, entre estruturas de pedra e o esqueleto (=ossos), entre argila e carne (o que é mole e se renova ou consome, e tem uma temporalidade mais breve), e entre água e sangue (água, o que confere “vida” e, em particular, plasticidade à argila, avermelhando-a enquanto está fresca). Por exemplo, as cores beges, azuladas, esverdeadas, etc., muito variadas da rocha, contrastariam com a textura homogénea (embora mesclada com outros materiais) e a cor alaranjada da argila, quando seca. O peso das primeiras com a leveza da segunda, sobretudo depois desta secar, etc. Claro que nada nos indica que no passado estas polaridades, ou pares de opostos, fossem concebidos ou inconscientemente vividos; enfatizamos esse ponto para não sermos mal entendidos (mal lidos). Quanto às estruturas ou components de origem vegetal (entrançados de ramos / canas, postes de sustentação, eventuais cofragens para a taipa (se esta fosse utilizada), vigas para a sustentação de tectos / telhados (se fosse caso disso), fibras para atar ou fazer cestos, ramos para coberturas, troncos maiores ou menores, artefactos de pequeno porte muito diversos talhados em madeira ou feitos com ramos, etc.), elas poderiam, pela sua variada textura, resistência, volume, cor, etc, nem sequer ser conceptualizadas como uma unidade, ao contrário do que nós fazemos, quando falamos de um “reino vegetal” (concepção muito abstracta, nossa). Muitas deles, por terem caracteres simultaneamente moldáveis (como a argila) e sólidos (como a pedra) podiam funcionar como uma espécie de mundo de transição. De qualquer modo, haveria futuramente que desenvolver, noutro trabalho, o tema por excelência destes sítios, e do que neles se passava: o tema da transformação: trasmutação de contextos e de significados a muitos níveis e escalas, de que já daremos uma primeira ideia na próxima alínea. Espaços de circulação do local – tanto para a aproximação do sítio, a partir da sua imediata periferia, como para movimentação de pessoas (e de coisas transportáveis) durante a “fabricação” do mesmo sítio, a sua restante “vida social” (o espaço de tempo em que o sítio foi alvo de atenção, nomeadamente de esforço construtivo) e sua última fase, a “morte” ou abandono, simples metáfora ou “força de expressão”, pois que, longe de significar uma perda de importância do sítio, podia ser apenas mais uma fase de uma cadeia de transformações. Este ponto é muito importante. Um sítio monumental, uma vez erguido (e salvo qualquer catástrofe que o soterre inteiramente) passa a ser uma marca da paisagem e uma referência qualquer, mais ou menos importante conforme as comunidades e as épocas. No momento em que o sítio estaria no seu auge de complexidade “arquitectónica”, estes espaços de circulação podiam ser muito variados, dada a quase labiríntica situação em que se veria o “iniciado” que no seu interior deambulasse. É nesse sentido que os contrapomos aos dólmens de corredor (monoaxiais, isto é, com um foco especial de atenção / circulação indo do átrio até à câmara), por serem multiaxiais, ou seja, implicarem direcções muito variadas na movimentação das pessoas no seu interior. Aqui, caminhar em linha recta seria só possível em áreas delimitadas, senso antes a descrição de linhas curvas aquela que o corpo predominantemente faria, entre os espaços dos muros, “cabanas”, e outras estruturas. Tratava-se de contornar volumes diversificados, e não apenas de dar a volta a uma mamoa, num movimento muito mais simples; e os circuitos, ou trajectos, podiam ser aqui muito diversificados também, consoante o ponto de partida e o de chegada, e quais os “estádios de paragem” intermédios. Espaços de paragem do local – qualquer barreira física poderia determinar um espaço de paragem, temporária ou permanente (se eventualmente a certas pessoas fossem interditos os espaços assim delimitados, ou se a esses pontos correspondessem interrupções rotineiras – descanso - ou ritualizadas. Sem dúvida que se existisse um recinto principal, superior e mais inacessível, delimitado por vários arcos concêntricos, esse seria o espaço por excelência de paragem de ritos, de localização de elites, de intensificação de acções colectivas, que aí poderiam chegar ao auge, ou a um “ponto alto” das cerimónias, eventualmente só acessível a alguns. Se existisse uma “torre” na parte mais elevada e nuclear do monumento, pois é possível que ela estivesse conotada com uma maior elevação, e com uma restrição extrema daqueles que tinham a capacidade de subir (pelo menos de cada vez) ao seu topo, e assim observar uma mais ampla área, que poderia mesmo sobrepujar os muros, e permitir a observação da paisagem. Também do alto dessas “torres”, a confirmarem-se, se poderiam emitir “sinais”, como fazer fogo, etc. Os locais de paragem poderiam estar também relacionados com o aspecto focado a seguir, o dos espaços de deposição. Espaços de deposição do local – são diversos os tipos de estruturas em que se deporiam matérias várias, orgânicas e inorgânicas, para ulterior “acesso” (incluindo remoção e redeposição noutro lugar), ou não (materiais que eram colocados para ficarem invisíveis, ou soterrados). Claro que ossos animais ocorrem, mas em Castelo Velho apareceu mesmo uma estrura com ossos humanos. Há numerosos “contentores” (palavra não muito desejável, dada a sua conotação utilitarista) que nos parece terem tido a “função” (passe o termo) de “guardar” coisas que precisavam de ficar acauteladas, pelo menos temporariamente, em espaços delimitados, em geral cobertos (estruturas circulares, estruturas geminadas, “bastiões”, etc.). No caso dos “bastiões”, situados nos muros, e portanto nem fronteiras, o seu conteúdo podia fazer referência a realidades particularmente densas de sentido identitário, como a “avisar” quem passava para lá de um muro, que entrava numa nova “esfera de intimidade” do sítio. Mas podemos e devemos também considerar micro-espaços, quer se situem fora, quer dentro destas estruturas maiores, como por exemplo certos sub-espaços: nicho rodeado de elementos de moinho manual- dormentes – no “bastião” A; ou estruturas circulares dentro de “bastiões” como no caso do “bastião” K; ou até eventuais sub-unidades que existirão no interior de estruturas circulares. Outro exemplo são pequenas estruturas sub-quadrangulares em forma de “lareira”, ou “caixa” (é difícil encontrar termos adequados para realidades novas) que temos encontrado no interior de alguns “bastiões”, formadas por dormentes de moinhos manuais. Seriam mesmo lareiras, locais onde se reteve fogo, fosse o que fosse que lá se queimasse? Até agora não achámos grandes sinais de combustão. Tratar-se-ia de sítios de deposição de matérias que se não conservaram, mas seriam decerto de grande importância simbólica, dada a posição destacada que estas micro-estruturas ocupavam, por exemplo no interior do “bastião” D, ou F? Talvez que a atribuição de um “objectivo”, ou “função” única, ou primordial, a estes micro-espaços, seja em si mesma enganadora. Aqui, como no resto do nosso trabalho, temos de fazer um enorme esforço para não cair na tentação fácil de fossilizar uma realidade arqueológica. Abrindo a nossa imaginação, ampliando a informação disponível, iremos por certo, pouco a pouco, percebendo pelo menos melhor por que é que certas estruturas estão em certos sítios, e não noutros, e, a partir daí, descartando hipóteses inverosímeis, chegar a circunscrever as que nos pareçam prováveis. Há dois aspectos gerais de que nunca nos podemos esquecer. Primeiro, estes locais não eram construídos para depois serem “utilizados”, mas a própria construção (como, simetricamente, o abandono ou cobertura de bases de estruturas) fazia parte da “activação” do local pelos seres humanos, num processo, provavelmente, visto como contínuo, ou quando muito com algumas descontinuidades (fases de maior intensidade transformadora) inseridas num processo de continuidade. É pelo menos essa a impressão que ressalta da nossa experiência. Segundo, nós estamos agora a ver aquilo que alguns chamariam um “resquício conservado” de toda uma variedade de objectos, de substâncias, de movimentos e de cores (panos, objectos em madeira, objectos em couro, etc., etc) que ali devem ter sido parte integrante dos “cenários” (para usarmos um termo convencional e pouco rigoroso, uma vez que as pessoas e os seus movimentos fariam parte desse tal cenário, seriam até talvez a sua parte mais importante). Na verdade, menos do que a nostalgia do que não podemos ver, devemos ser movidos, na nossa pesquisa, pelo júbilo do que naquele local podemos, cada vez mais acertadamente imaginar, enriquecendo a sua temporalidade. 4 – Multiplicidade das escalas em que o sítio em si deve ser considerado Um sítio é uma abstracção, uma construção nossa, nós que temos a necessidade, para simplificar o nosso trabalho, de o delimitar em termos práticos, para nele intervir. Naturalmente que um local excepcional, pela dimensão, pela posição, e pelas estruturas que contém, como Castanheiro do Vento, só se pode entender se integrado num território mais ou menos vasto, que disponibiliza muitos outros dados arqueológicos, embora estes estejam a ser constantemente degradados pelas utilizações actuais do solo, à medida mesmo em que nós tentamos, “remando contra a maré”, colher informações em Castanheiro do Vento. Porém, as escalas de análise / interpretação não são só geográficas, mas também temporais. Até onde vai, pois, a nossa maior escala, neste momento - e segundo os dois eixos, espacial e temporal - e onde acaba a mais curta, a mais pequena? Eis uma opção convencional de fundo que é preciso explicitar, e quais as suas razões – mesmo que brevemente. Eixo geográfico – a nossa referência maior é o Mediterrâneo occidental, mas, para já, e para evitar dispersão, apenas a costa mediterrânica francesa (limitada ao Languedoque) e a Península Ibérica. Porquê? Porque em todas estas zonas ocorrem sítios que nos parecem ter características construtivas semelhantes às do Castanheiro do Vento, e que pertencem à mesma cronologia geral (simplificadamente, em torno do IIIº milénio a. C.). Depois, descendo de escala, temos a zona meridional da península – incluindo a Andaluzia, o Alentejo / Algarve, parte da Estremadura espanhola, a Estremadura portuguesa e este “enclave” de clima tipicamente mediterrânico, que é a região de Foz Côa, já nas imediações da Meseta Norte ibérica. De facto, uma percentagem avultada dos sítios de tipo Castanheiro do Vento, mau grado a sua enorme diversidade, ainda por esclarecer (colinas calcolíticas muradas, com linhas de “bastiões”, de tipo Los Millares – Almeria, Espanha / Zambujal / Leceia – os dois últimos, ambos na Estremadura portuguesa) ocorrem nesta vasta zona peninsular. A uma escala mais local, e adentro do Norte da Península, temos para já de nos balizar pelos sítios de Castelo Velho e de Castanheiro do Vento, distantes entre si cerca de 11 km, em linha recta. Trata-se de uma zona entre o Côa e o Torto, afluentes da margem esquerda do Douro, e muito próxima deste grande rio, ligada maioritariamente ao complexo xisto-grauváquico. Mas obviamente esta referência de limites é puramente convencional, porque é um princípio geral o de que os rios não separam, mas unem territórios. Mesmo no caso dos relevos de resistência, que, esses sim, definem horizontes visuais, não podemos facilmente saber se eles marcaram periferias ou, pelo contrário, pontos centrais de referência. Pelo que, por enquanto, e com certas teses de doutoramento em curso – e outras que esperamos venham a ser encetadas – não podemos ir muito longe na definição de limites da região de estudo, tanto mais que a região limítrofe da actual Espanha está por estudar sistematicamente. Indícios, por toda a zona envolvente dos dois sítios mencionados, temos muitos, até devido às prospecções de António Sá Coixão (ACDR de Freixo de Numão), e do Parque Arqueológico do Vale do Côa, mas toda essa informação está novamente a precisar de uma sistematização e aprofundamento. Seria muito importante realizar escavações em vários sítios, com graus diferentes de preservação, no aro de Castanheiro do Vento, e não só só para nascente (ribeira da Teja), mas em várias direcções. Sabemos que trabalhando apenas nos locais maiores, mais monumentais, estamos a produzir uma informação muito parcelar, truncada, excepcional. Mas é a possível – e se não fosse o nosso esforço, a situação seria bem pior, na pré-história recente desta área específica em que nos encontramos (com a excepção do Castelo Velho de Freixo de Numão, obviamente), correndo-se o risco de se perder e acabar por dispersar todo o “know how” ganho naquele sítio, “know how” que é já, também ele, um património. Naturalmente que, como já ficou expresso em alíneas anteriores, o sítio se situa ele próprio a uma multiplicidade de escalas, e ainda mal começou a ser escavado. De forma que desde a península toda (pelo menos), até à mais pequena micro-estrutura do local, temos de estar a fazer permanentemente “zooms”, com aproximações e afastamentos a uma realidade, consequentemente, sempre em mudança. Eixo temporal – (ver lista completa de datas de C14 disponíveis para este sítio em Jorge et al, 2006b) - independentemente da obrigação que temos, ao estudar um local, de considerar a sua temporalidade profunda (desde os primeiros indícios datáveis, até hoje), é óbvio que é no III milénio e na primeira metade do II milénio a. C. que concentramos, em termos de problemática, a nossa atenção. De facto, é dessa longa fase (que para já constitui para nós uma unidade; as descontinuidades que certamente existem são, evidentemente, as de “momentos” que poderão corresponder a intensificações do esforço construtivo, necessariamente ainda mal definidos) que data a parte mais importante, em termos de estruturas e artefactos mais pequenos, do local (para outros detalhes, ver bibliografia mais recente publicada). Antigamente, a pré-história organizava-se por períodos que tinham, na sua designação, uma conotação técnica, mas também arrastavam (e arrastam) implicações mais vastas: assim, Calcolítico (fins do IV, III milénios a. C.), como época em que já se fazia e/ou utilizava o cobre, metalurgia cuja importância é apenas (o que não é tão pouco como parece) a de diagnosticar uma atitude diferente perante certos materiais como os minerais de cobre, e se liga sobretudo, em geral (mesmo que se não produzissem localmente, eram usados) à emergência de objectos de prestígio, raros, que parecem distinguir elites nestas “sociedades”. Estamos portanto perante comunidades onde pode ter ocorrido, em certas das suas unidades, linhagens, ou famílias alargadas, a posse exclusiva (aí é que reside a nossa dúvida – qual seria esse grau de exclusividade ou de partilha) da produção do metal e/ou da sua utilização, neste ultimo caso após obtenção dos objectos prontos através do regime da troca. As antigamente chamadas idades do Bronze antigo e médio (convencionalmente, e em termos gerais, até ao último quartel do II milénio a. C. exclusive) não têm hoje grande pertinência como conceitos para áreas como a nossa, onde se não pode estabelecer por ora cronologias finas. Mudança de alguns artefactos, sem dúvida, mas permanência das mesmas estruturas (e provavelmente do mesmo “modo de vida”), construídas em Castanheiro talvez por meados do III milénio, como em Castelo Velho, aliás. Mas a diacronia detalhada das fases construtivas de Castanheiro do Vento é ainda um problema situado muito a longo prazo. 5 – Multiplicidade possível de “sentidos” em que se pode pensar um sítio como este Nós não podemos entender um sítio, um território, uma comunidade isoladamente; nunca ninguém (nenhuma realidade social ou ser) viveu (ou sobreviveu) em “ilhas” desprovidas de qualquer contacto exterior. A autarcia plena é um mito romântico. Mais do que se concentrar em sítios, a acção humana exerce-se em espaços, através de circulações, segundo rimos. Só Deus está parado. Também não conseguimos obviamente conceber uma comunidade sem uma pertença mais vasta, sem um conceito mais abrangente, de que ela será um exemplo, apenas. Porém, temos de ter cuidado extremo na delimitação e “classificação” de “comunidades” (realidades fluidas, sempre em mutação, mais imaginadas que reais, como sabemos), agora que estamos desprovidos (agora que muitos de nós já não acreditam nisso...) dos “modelos” ou modos de abordagem das generalidades que o neo-evolucionismo, o estruturalismo, ou o “marxismo” nos proporcionavam. Referirmo-nos a “comunidades pré-históricas” implica logo uma ideologia, ou seja, por palavras simples, a perpetuação de um engano. Também ninguém se lembraria de falar de primitivos, de etnias, de sociedades simples, naturais, igualitárias, domésticas, etc., etc. Já “demos demais” para todos esses “peditórios” da simplificação cómoda, só útil porque dá a ilusão de resolver o problema. De facto, nada há de mais facilitador e enganoso do que tratar “os outros” “não civilizados” como sociedades do mito, ou sociedades do simbólico, ou sociedades pré-capitalistas, pré-modernas, não complexas, etc. ... tudo formas de reduzirmos a variedade “dos outros” a um “outro”, que é uma espécie de operador, ou embraiagem, da reflexividade sobre nós próprios. A invenção do primitivo, mito por excelência das sociedades modernas, e hidra de mil cabeças que se restaura sempre por detrás de novas metáforas, é ultrapassável pelo nosso pensamento de ocidentais? E os não-ocidentais, quando pensam de forma a dialogarem connosco, não estão já a falar a nossa linguagem, aprendida nas nossas escolas, ou então a traduzir (ou a serem traduzidos), e portanto traídos na sua especificidade? Mas, toda a vida é tradução constante, transmutação. É possível pensar o diferente (alteridade) sem ser por oposição, por contraste, com o igual (identidade)? Tem sentido tal questão, que parece traduzir uma ambiciosa nostalgia do conhecimento puro, total, não situado, não pre-conceituoso, ou seja, omnisciente, fora do tempo e do espaço? Claro que tudo o que dissermos aqui e agora é um produto histórico como qualquer outro, situado, visando criar efeitos retórico-argumentativos que “levem a água ao nosso moinho”. Os “outros em si” não existem, nunca existiram, qualquer que seja quem os pense. Como sair desta obsessão das essências, das verdades últimas, e operacionalizar um campo de trabalho, que é necessariamente o de ocidentais? Sem não-provados não é possível iniciar nada, chegar à prova. Trata-se pois de decidir de que “não provados” vamos partir. Partimos assim de um princípio, de um axioma, ou, se quisermos, simples hipótese. As comunidades do “tipo” daquelas que podem ter “construído” Castanheiro do Vento (entendendo-se por “construir” todas as actividades de transformação – Castanheiro seria essencialmente um espaço de transformações, como dissemos - ali decorridas) eram “sociedades da oralidade”, e portanto onde toda a aquisição / manutenção / incorporação de conhecimentos era prática, e a memória tinha uma importância fundamental. A memória não dizia respeito apenas a mitos, histórias, lendas, ouvidas ou aprendidas desde o nascimento, logo que a “socialização” do indivíduo se iniciava; dizia respeito a tarefas, a acções. Esse conjunto não precisava nem de ser excessivamente estável, nem de ser totalmente coerente (formado por exemplo por sistemas de homologias, como o estruturalismo buscava), mas estaria sempre em negociação (teria uma história, não se encontraria nunca estabilizado). As tarefas, as actividades, seriam provavelmente distribuídas por categorias de idade e de género, e seriam aprendidas constantemente através da participação de cada um(a) no que seria (no que estaria acordado como sendo) preciso fazer, em cada momento do dia, do ano, da vida. A experiência global, no contacto directo com as “matérias”, formava os indivíduos, no seio de unidades mais ou menos nucleares ou alargadas. Mas não devemos estabelecer uma diferença entre as matérias, inanimadas, os seres vivos, e os seres humanos, estes últimos seres intencionais, naquilo que podiam ser as “representações”, implícitas ou explícitas, destas populações. O que designamos as matérias, as substâncias, nas suas diversas propriedades, como realidades para nós inertes, objectuais, materiais, não precisavam de ser assim para estas populações. Pelo contrário: Castanheiro do Vento denuncia uma escolha de materiais e de formas, a diferentes escalas, que aponta para um modo de “classificação” (implícita ou explícita) das coisas que não teria nada a ver com aquele que nos é familiar. Momentos particulares do ciclo anual deveriam ser marcados por encontros de populações que poderiam viver mais ou menos dispersas no território. Que poderia pontuar esses ritmos, criar as condições desses períodos de excepção, de concentração de pessoas em certas actividades “especiais”, como seria a construção de locais como Castanheiro do Vento (entendida essa “construção” como um “work in progress”)? Os trabalhos agrícolas, sem dúvida, a utilização dos animais domésticos, mas em geral todas as tarefas marcadas pela caça e pesca, pela recolecção, pela obtenção/captação, transporte e transformação de materiais (pedra, argila, água, elementos vegetais, troncos de árvores, etc, etc.), implicando uma profunda incorporação do meio e suas “propriedades” (“disponibilidades”) e uma imersão completa num ambiente familiar, “habitado” desde a tenra infância. Estas comunidades do III e II milénios (com exclusão do que designamos Bronze Final) viviam essencialmente do que o mundo mineral, vegetal e animal lhes dava, e era muito, segundo um conhecimento teórico-prático (queremos evitar a palavra “tecnologia”, que exprime uma realidade histórica, uma reificação do conhecimento implícito nas tarefas e na manipulação dos instrumentos / “aparelhos”) que se ajustaria perfeitamente às propriedades conhecidas de cada uma dessas realidades, desses mundos. Conhecimento ancestral, longamente transmitido pela tradição, pela imitação, pela experimentação, desde o “berço”, certamente; mas também conhecimento aberto à inovação, aos contactos mais ou menos longínquos, a uma circulação que não temos apenas de ver circunscrita às elites (cujo estatuto desconhecemos) ou a objectos de excepção (prestígio). Acima aludimos a “unidades” mais amplas do que o simples “indivíduo”. Quais? É comum (até nos estudos de parentesco em antropologia social), partir-se de um raciocínio baseado no “eu”, no indivíduo, e daí ir “subindo” para unidades cada vez mais amplas, constituindo “associações” de indivíduos (projecção no passado, ou no “outro etnológico”, de evidências etnocêntricas): família nuclear, família alargada, comunidade, outras formas de associação de indivíduos, etc. Unidade doméstica, lugarejo, aldeia, território, etc.- são realidades sucessivamente mais amplas que por vezes também nos servem para pensar “o social”. Partem sempre de conceitos vagos, ou discutíveis, como o de indivíduo, pessoa(s), se(res) humano(s), etc. Não nos entendemos mesmo sobre as categorias mais elementares do nosso raciocínio. Como nos haveremos de entender se queremos aplicar à “pré-história” conceitos pertinentes, sim, mas para explicar o capitalismo, como modos de produção, relações de produção, forças produtivas, etc.? Mesmo a própria teoria de Marx, apropriada ao séc. XIX, não se pode estender sem trabalho e discussão ao capitalismo tardio que estamos a viver, um século e pouco depois... por isso, deixemo-nos de simplificações abusivas, apresentadas com uma certeza inversamente proporcional à plausibilidade em que assentam. Falar de um “modo de produção calcolítico” ? Falar do “Estado” no IIIº milénio na Península Ibérica, como se fosse um dado adquirido? Não! Nem referimos outras invenções terminológicas, embora respeitemos os colegas sérios de todos os matizes. Castanheiro do Vento (como tantos outros sítios do seu género) representa, obviamente, uma concentração num espaço determinado, restrito, de uma grande quantidade de energia. Sem dúvida que a construção, a manutenção, a “gestão” e vigilância do local, como diríamos hoje, implicaria um grande número de pessoas, mais ou menos conforme os tempos e as tarefas. Por mais “embrionárias” que fossem as formas de liderança, elas tinham de estar presentes na condução da acção para tal “investimento”, na nossa linguagem economicista actual. Duvidar sobre uma forte motivação, partilhada por todos, em tal “investimento”, está fora de causa. A questão é saber quais as causas, ou os circunstancialismos, consciencializados ou não pelos seus “actores”, de tal partilha. Não havendo formas de coacção (de tipo corveia, ou “trabalho escravo”) em causa, só podemos conceber essa concertação colectiva como uma forma de ideologia particularmente eficaz, tão eficaz quanto precisa para garantir a coesão social, ou seja, a ordem das distinções (no sentido de Bourdieu), naturalizando-as, ou seja, tornando-as inquestionáveis (inquestionável é obviamente aquilo que nem aparece ao campo da consciência como tendo alternativas). Qualquer “formação social”, para utilizar outro chavão, é um campo de tensões e de forças, de “interesses” divergentes ou até opostos (como com o capital e o trabalho no século XIX e certamente ainda hoje, embora de formas inovadoras...) e portanto consequentemente de potenciais conflitos. Não porque exista uma essência, ou natureza humana, particularmente propensa ao conflito; mas porque as organizações sociais heterogéneas, com um número de tarefas diversificado, e com uma dimensão de efectivos já considerável, são propensas ao aparecimento (à produção) de diferenças, incluindo-se nelas a tensão e o conflito. Aliás, sem tensão não há forças (não há acção), não há fluxo de energia, se nos é permitida uma metáfora algo criticável pelo seu aspecto sistêmico, maquinico, ou cibernético. Aquilo que provavelmente fizeram muitas das organizações colectivas tradicionalmente designadas “primitivas” ou “pré-históricas” (dois conceitos gémeos) foi dirimir muitos conflitos a montante das suas condições de ocorrência, por exemplo, através da troca, da reciprocidade, fazendo com que a disputa pelo poder se tornasse, ela própria, uma ordem. Claro que nenhuma ordem é estável, nem se mantém muito tempo., nem a “reciprocidade pura” existe. Uma das formas de uma “ordem”, de uma “identidade colectiva” se tentar perpetuar, em sociedades sem escrita (ou mesmo onde até a escrita, a existir – o que não é obviamente aqui o caso – é apanágio de uma minoria de letrados) é inscrevendo-se: nas paisagens, no corpo, na realidade do que por vezes se chama (quanto a nós erroneamente) a “cultura material” e a “vida quotidiana”. Ou seja, trazendo a realidade vivida para o lado dos signos em que todos se reconhecem, ou julgam reconhecer-se (o que vai dar ao mesmo em termo de efeito). Uma das formas de inscrição mais potente é a arquitectura, como souberam desde sempre todos os que queriam impor um poder emergente ou (aos nossos olhos de hoje) ilícito, porque ditatorial. Mas a arquitectura não é ela própria um universal, uma entidade separada, historiável (como as histórias da arquitectura no-la apresentam) que viesse desde a “cabana de Adão” até aos pós-modernos. A construção é um modo de criar mundos que sejam habitáveis, é certo, por determinadas ideologias, por pessoas que comunguem delas; e é ao mesmo tempo um poderoso instrumento ideológico. A ideologia está ligada à noção de falsa consciência, ou seja, à ideia de que o verdadeiro poder é aquele que se não tem de impor constantemente pela força: é legítimo porque as pessoas acreditam nele. A crença partilhada é, obviamente, uma das componentes mais fortes do poder, porque assim ele não precisa de ser coercivo, está a montante da possibilidade sequer de ser contestado, é natural. A “naturalização das diferenças dos status através da arquitectura” é um (para não dizer “o”) ponto fulcral do nosso trabalho. Toda a paisagem, com as suas arquitecturas, quer dizer, com os seus acidentes, herdados ou construídos (eliminando a distinção sem sentido entre natural e artificial), é uma enorme mnemónica (sistema de informação) do poder em que as pessoas estão imersas, e para cuja manutenção se sentem inclusivamente no dever de contribuir, através da internalização inconsciente de regras, da incorporação de modos de fazer e de estar, do sistema do “habitus” no sentido de Bourdieu. As pessoas tecem a teia do seu próprio enredamento, autopoieticamente o poder cresce, como se fosse um organismo, passe a metáfora. Para nós, os sítios como Castanheiro do Vento são exemplos de uma forma de fixação do poder em sociedades orais de há cerca de 5.000 anos. Todo o poder, mesmo legitimado por regras, poder-se-ia ao modo anarquista (caro a P. Clastres, por exemplo) considerar como um abuso, no sentido em que estabelece uma diferença de status que tende sempre a extravasar de si mesma – das regras informalmente “acordadas” dentro das quais se exerceria, como elemento protector da comunidade - para deslizar para formas de auto-reforço; porque o poder, no seu processo inicial, carismático, pessoal, informal, é um poder frágil. Ora, parece ser vocação do poder reforçar-se a si mesmo em sistema autoipoiético, de “bola de neve”. Assim, nas “sociedades” sem Estado, mas não totalmente “planas”, isto é, já com formas de organização minimamente centralizada (sítios principais impondo-se à “visualidade” do território) o poder político, a elite, digamos, estaria ainda entre uma situação de protector(a) (redistribuidor de excedentes, organizador / promotor de encontros e festas, etc.) e uma de explorador(a), na medida em que uma parte da população tendencialmente jamais teria possibilidade de aceder às regalias dos “guardiãos do bem comum”. Mas esta, sendo uma questão central, levar-nos-ia longe demais no presente texto, e talvez fosse precoce aplica-la aos nossos conhecimentos ainda tão incipientes. Um sítio como Castanheiro não foi construído para ser utilizado, à maneira histórica. Ele foi sendo “afeiçoado”, provavelmente antes, durante as construções, e mesmo na fase final delas, quando parece ter sido tranformado numa base pétrea uniforme. Um sistema de “ocos”, um labirinto de percursos, balizado por diferentes muros e micro-espaços de deposição, nomeadamente nas zonas de limite, de fronteira, de limiar (“bastiões”, estruturas sub-circulares, estruturas geminadas), pode ter sido finalmente metamorfoseado num sistema “cheio” de pedras, colmatando vazios. Esta questão levanta um problema muito interessante, que é o seguinte. Se admitirmos, com Ingold, inspirado em Heidegger, que construir (“to build”) é uma forma de habitar (“to dwell”) um espaço; se pensarmos que estas comunidades estariam num processo constante de remodelação, de manutenção, destes locais excepcionais, em que não haveria, como hoje, um projecto mental, um design teórico, ou modelo prévio completo, que depois se ia concretizar através da construção, então como podemos conciliar isso com o facto de, durante a escavação, o “layout” do sítio nos parecer desenhar, digamos, um plano até certo ponto coerente? Sabemos que é um palimpsesto, temos muitos indícios de remodelações locais (num processo de investigação que está ainda nos seus inícios), mas à escala geral como conciliamos a ideia de um processo paulatino, progressivo, com a própria lógica de conjunto que as estruturas parecem desenhar no espaço? Houve ou não “campanhas de obras”, afinal, de certo modo com alguma grande envergadura, e relativamente circunscritas no tempo? Como sempre, as datas radiocarbónicas ajudam-nos, mas não nos resolvem por si próprias este problema. Terá de ser o prosseguimento dos trabalhos, na medida do possível, a apurar as temporalidades detectáveis no sítio: micro-locais, locais, ou gerais. Seria evidentemente muito importante, mesmo fulcral, perceber qual a dinâmica do local, isto é, qual a extensão temporal de cada intervenção que terá sofrido, sem querer com isso reduzir Castanheiro a um esquema de uma sucessão de “fases construtivas” articuladas com “fases de ocupação”, como alguns colegas costumam fazer (incluvamente utilizando cores diferentes, nas plantas dos sítios, uma para cada fase). Que estas reflexões, que representam mais um passo – esperamos – na maturação da nossa experiência do sitio, suscitem criticas e comentários que nos enriqueçam a todos, os que temos a responsabilidade de servir de porta-vozes daqueles cuja voz ficou presa para sempre no interior das pedras e da argila, sob as ervas, na solidão dos sítios.

Porto, Junho de 2006


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