quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Nunca meter o outro (nem se deixar meter a si) numa redoma


A relação de um casal é, como qualquer um sabe, algo de extremamente complexo. Não sou psicólogo, nem psicanalista, para poder abordar o assunto com um mínimo de competência, de distanciação em relação ao vivido.

Vejo quase todos os casais que se constituiram ao longo da minha vida cedo ou tarde desfazerem-se, o que está muito de acordo com a sociedade individualista e de consumo em que vivemos. Aqueles que, como eu, são casados (uma forma de dizer: vivem com a mesma pessoa e partilham com ela uma cumplicidade que não têm com mais ninguém) há décadas (no meu caso, vamos fazer em Setembro 37 anos) talvez devesssem ter direito a qualquer benesse, se o sistema estivesse virado para ai, e não justamente para o contrário, como é óbvio.
Sabemos que aquilo que une um casal está muito para lá da paixão, ou do interesse erótico, ou de qualquer das modalidades de sentimentalização da vida inventadas pela modernidade. Sabemos como a palavra "amor", ou a palavra "amizade", pouco ou nada significam, tantos são os contextos e sentidos em que podem ser utilizadas.
Creio que uma das coisas que mais mina a relação de um casal é a mútua vontade de posse, a necessidade doentia de controlar o outro na sua intimidade, nos seus mais pequenos movimentos ou até fantasias. Trata-se de uma doença, poderíamos dizer, que tem como base uma enorme falta de confiança do sujeito em si próprio: a ideia de que o outro é só seu, um património intocável. Ora, cada um de nós nem sabe quem é (a não ser sob a forma de ficção que lhe permite actuar na primeira pessoa) quanto mais querer saber quem o outro é, o que lhe passa pela cabeça (como costuma dizer-se), o que faz, etc.
Fui educado numa cultura machista, que era tão natural como o ar. Mas sou já um elemento de transição, porque nunca procurei uma companheira para tratar da casa ou dos filhos (que não quis ter, e estou feliz por isso), mas essencialmente uma cúmplice, uma interlocutora, e assim continua a ser.
Estava subjacente à relação que tentei empreender - e continuo - uma liberdade mútua de escolha, em cada momento, e em todas as facetas da vida. Claro que a pessoa vai ganhando sentimentos de posse que são absurdos se encarados racionalmente. Mas é preciso fazer o luto, também, dessa ideia ou desejo de apoderamento do outro. Em muitos momentos terei sido ciumento, e até de forma muito excessiva: hoje em dia julgo ter superado isso, atingindo um patamar de maior serenidade.
Um indivíduo, a partir do momento em que sente que está ligado a outro apenas pelo hábito, pelo conforto, pela rotina, pela dependência de um variado conjunto de circunstâncias, está de facto morto na sua relação. É preciso - para manutenção do casal, se for essa a ideia ou acordo mútuo - cada um ter o seu espaço próprio, os seus amigos, as suas fantasias e, embora doa muito, admitir que cada um possa ter os seus devaneios. Mas estes implicam pessoas terceiras, com toda a complicação que daí pode advir. Por isso há que manter uma tensão criativa na relação com os outros exteriores ao casal (que não exclui, está claro, encantamentos momentâneos), mas que tem de se manter num relativo equilíbrio para não ultrapassar certas fronteiras. Eu não sou proprietário de nenhum outro ser humano (aliás, na minha tradição socialista, desde que pudesse usufruir de certos bens, não precisava de ser proprietário de absolutamente nada - era esse o meu ideal). Mas um poeta, um artista, um indivíduo que incessantemente procura enriquecer a vida, uma pessoa qualquer com alguma sensibilidade precisa de ter um espaço de manobra para a sua fantasia. Isso é muito importante.
Tenho a sorte de viver com uma pessoa que é a mais interessante que conheci. Isso não significa que não tenha defeitos, ou que a nossa vida seja um paraíso: tal não existe. Também não significa que eu não goste de estabelecer relações afectivas com outras pessoas, e ai não acredito nas distinções clássicas, corriqueiras, de amizade, amor, amizade amorosa, etc. Apenas desejo que outras pessoas sejam inteligentes, que nelas brilhe um mínimo de desejo de me verem, de se encontrarem comigo, de se confrontarem (no bom sentido) comigo, sem tensão nem intenções pré-fixadas. Sou demasiado velho para me armar ridiculamente em D. Juan que nunca fui. Mas não estou ainda morto. That is all.
Não precisava de escrever isto aqui. Nem sequer me estou a confessar, mas sempre a encenar. Mas quem me conhece ou deseja conhecer talvez possa olhar por detrás do cenário, se é que esse lugar existe, e perceber o que quero dizer.
Porém, se tudo o que um indivíduo diz de si próprio, se todo o auto-retrato é uma ficção, e se a consciência disso nos paralisa, nem sei como deixei aqui exaradas estas banalidades, que ainda por cima pretendem que tenha sido eu a escrevê-las.




10 comentários:

Gonçalo Leite Velho disse...

Bem sabe que por detrás da cortina mora o vazio e as cartas são endereçadas. Aliás é engraçado que se chamem as estas mensagens no blog de "postagens". Há algo de postal no que aqui se escreve. Mais ou menos curto por uma questão de economia, exposto ao olhar do Outro...

Vitor Oliveira Jorge disse...

Está claríssimo.É precisamente a questão da economia postal. Mas preciso de ler o Derrida e o Paul de Man com mais atenção. Malvada ignorância e falta de tempo que nos arrasta dia a dia para a banalidade...

Anónimo disse...

Olá Gonçalo! Diga-me lá: segundo o zizek.... quantos destinatários terá esta postagem inicial...a tal...a banal?

maria josé quintela disse...

"Não precisava de escrever isto aqui"...


mas ainda bem que escreveu. porque eu gostei muito de ler!



um abraço.

Gonçalo Leite Velho disse...

Olá sjsVls!

Hmm... não sei segundo o Zizek... mas diria que tal postagem teria definitivamente como alvo o Outro (o grande Outro). Ora como todos sabemos o Outro não existe, o que explica talvez o sentimento de banalidade... não sei...

Anónimo disse...

O grande Outro................? Eu definitivamente preciso de me entender com esse tal Outro!

Vitor Oliveira Jorge disse...

Pelos vistos as postagens banais são as que despertam mais comentários...

Gonçalo Leite Velho disse...

Precisamos todos sjsVls, precisamos todos...

Anónimo disse...

Gonçalo: fico à espera dumas dicas.

Anónimo disse...

Entretanto, recomendo a todos compararem Magdalena Kozena e Christine Schafer a cantarem
AH! MIO COR! da Alcina do HANDEL. Ouçam e digam qual preferem. A melhor resposta leva um cd! Oferta da casa.