Algumas notas exploratórias
de um tema em pano de fundo:
arquitectura e poder difuso - a acção colectiva
como forma de construção de sociabilidades
em “comunidades da oralidade”
por
Vítor Oliveira Jorge
de um tema em pano de fundo:
arquitectura e poder difuso - a acção colectiva
como forma de construção de sociabilidades
em “comunidades da oralidade”
por
Vítor Oliveira Jorge
“ A escrita constitui um arquipélago
na imensidade oceânica da oralidade humana”
George Steiner
“O Silêncio dos Livros”, Lisboa, Gradiva, 2007, p. 8
“O termo religio não deriva, segundo uma etimologia tão insípida quanto inexacta, de religare (aquilo que liga e une o humano e o divino), mas de relegare, que indica a atitude de escrúpulo e atenção que deve marcar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o “reler”) perante as formas - e as fórmulas – a observar para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é aquilo que une os homens e os deuses, mas aquilo que zela por mantê-los distntos.”
Giorgio Agamben
“Profanações”, Lisboa, Cotovia, 2006, pp. 105-106
“As grandes mitologias que têm vindo a ser construídas no Ocidente desde o início do século XIX não são apenas tentativas de preencher o vazio deixado pela decadência da teologia e do dogma cristãos. São, em si, uma espécie de teologia substituta. São sistemas de crença e argumento que poderão ser selvaticamente anti-religiosos, postular um mundo sem Deus e negar uma v ida depois da morte, mas cujas estruturas, aspirações e exigências feitas ao crente são profundamente religiosas na estratégia e nos efeitos.”
George Steiner
“Nostalgia do Absoluto”, Lisboa, Relógio d’ Água, 2003 [or. 1974], pp. 14 e 15
Neste breve texto – um ensaio onde alguma deriva por vezes, se não sempre (no meu modo barroco de ser e de escrever), ocorrerá intencionalmente - tenta-se encarar de novo um velho problema, que aliás sempre me preocupou, mas cuja complexidade é enorme: como é que, em comunidades que não utilizam a escrita enquanto forma principal, centralizada, de regularizar e normalizar a acção colectiva (onde não há códigos formais objectivados e abstractos como regras “exteriores” aos sujeitos), as formas de sociabilidade se podem construir e reforçar naquela própria acção colectiva, explícita ou implicitamente “negociada”, de modo muito subtil e tácito, aliás maioritariamente presente em toda a interacção social até hoje.
Essa questão – articulada, como todas, com a rede geral das nossas (minhas, pelo menos) preocupações, num saber que se procura mais na horizontalidade das conexões rápidas (a superfície do mar pode ser a imagem que exprime esse ambiente) do que na obediência servil às regras do mergulho (profundidade especializada própria da nossa cultura académica, seu mito fundador e, em boa parte, castrador) - é vital para perceber mais de 90% da “história” ou “experiência” humana, que se deu e dá “fora do texto” normativo explícito, fora da regra “universal” e abstracta, através de múltiplos modos e difusas actuações/resistências que são subtilmente ensaiados em contínuos jogos de negociação de “papéis” e portanto também de poder.
Só aliás a mentalidade delirante de um legislador idílico, iluminado, poderia imaginar alguma vez encaixar a vida dentro de um código formal: a vida (a própria energia vital) é de certo modo o que existe apesar desse código, e portanto de certo modo contra ele, resistindo a ele. Freud, Lacan, Heidegger, Foucault, Bourdieu, e tantos outros autores da cultura contemporânea, ajudaram-nos a ver esse lado “sombrio” da realidade, lado que deixa à luz - a que herdámos das velhas crenças do positivismo iluminista, racionalista e de toda uma tradição racionalista anterior - apenas uma frincha pequena por onde entrar. De facto, viu-se muitas vezes, em especial desde os inícios do séc. XX até agora, as atrocidades onde conduziram as vontades de reduzir a vida à regra, de submeter a vivência à “teoria” (de que as modernas investigações de Inteligência Artificial são, apesar do seu interesse, e entre muitos sintomas, bom exemplo).
Mas muitos ainda não quiseram aceitar essa evidência, aprender com os traumas que sofremos no século XX; até porque os seus interesses coincidem com certas ideologias tecnocráticas e tendencialmente totalitárias, que, sob forma de inovações em catadupa, e em nome da modernização e da própria democracia, tentam sempre apertar o laço em torno das liberdades, regularizando tudo, legislando sobre tudo. Um projecto delirante, mas persistente.
As crenças partilhadas, organizadas ou não sob forma de pequenas/grandes organizações religiosas, o plano das afectividades, das emoções, da interaccção quotidiana e fluida, são fundamentais para se perceber “os momentos da verdade”, os modos como realmente funcionam as sociedades nos seus constantes e infinitos “agenciamentos” inter-pessoais, institucionais, colectivos, como campos de tensão, de encontro, de diálogo, de realização de tarefas, de assunção de compromissos, de distribuição de estatutos, de distinções, etc.
Entre milhentos outros aspectos, o ser humano “atribuiu-se”, desde há milénios, a tarefa de organizar certos espaços (tendencialmente todo o espaço terrestre) simbolicamente, fazendo deles redes de circuitos e de lugares (movimento e paragem).
Aos “nós” dessas redes, aos lugares onde se evidenciam sinais de envolvimento especial, chamamos às vezes, “arquitecturas”, realidades mais ou menos sólidas, perduráveis, onde uma série de materiais e suas tensões e forças foram deliberadamente orquestrados para criar diferenciações: interiores e exteriores, acessibilidades e impedimentos, pertenças/intimidades e exterioridades, nós e eles, etc. Quer dizer, ritmos e formas diversificadas de construir tempo/espaço.
Desde o abrigo ao lugar de culto, desde o efémero ao monumental, a construção, manutenção e reformulação de espaços tem sido uma das principais formas de constituição das sociabilidades, de diálogo com os materiais e as forças ao dispor no “meio”, entendido este não como uma realidade externa aos indivíduos, mas como o universo onde eles estão incluídos e onde, colectiva e individualmente, tentam tenazmente dar um sentido habitável às suas vidas, no sentido heideggeriano.
Porém - e esse ponto é crucial - convém lembrar que também são “arquitecturas” os fios da rede, a própria rede (uma paisagem, por exemplo), e não somente os seus eventuais “nós”, e que a forma de se estabelecer um desses “fios” pode ser um trajecto, um caminho, uma vereda mais ou menos continuamente percorridos – algo por vezes de muito contingente na sua “expressão material”. Tudo é arquitectura.
Na verdade, até num campo de refugiados ou num improvisado abrigo de um “homeless” citadino podemos desenvolver uma “arqueologia” das relações dos seres humanos com o espaço/tempo.
A arqueologia, no sentido amplo, é um modo de encarar essas realidades, a partir da experiência específica de lugares e paisagens que muitas vezes são ditas “do passado” (mas, o que não será “passado” em tudo quanto vejo em meu redor?) – e nesse sentido a sua “bagagem”, a sua experiência acumulada tem muito mais a aportar ao nosso conhecimento do que frequentemente se imagina, e do que muitos dos próprios arqueólogos pensam, ou praticam.
Estes por vezes parece não perceberem inteiramente a enorme pregnância explicativa (no sentido mais amplo) da sua própria experiência, e deixam-se assim relegar para posições de marginalidade dentro dos campos de saber actuais (dominados pela ambição das aplicações tecnológicas de rentabilidade imediata ou pelos acontecimentos mediatizados), marginalidade essa proporcional a algum esbracejar inócuo que por vezes ostentam.
Os “arqueólogos” no sentido estrito, profissional, têm de compreender que são invisíveis, ou quase, para as actuais instâncias de poder e de saber dominantes no mundo, e que assim se manterão a não ser em casos excepcionais (onde o “passado” serve a propaganda), ou então e também que mudem de estratégia de actuação, quer dizer, de estatuto epistemológico e de uma postura corrente de “margem messiânica” e iluminada, auto-sustentada, e ineficaz. A nossa eficácia de saber e de poder depende da capacidade de intervir em todos os planos, incluindo, desde logo, o da capacidade de dominar minimamente o pensamento contemporâneo e de não ter receio de abordar as suas grandes questões.
Finalmente, a terminar estas palavras iniciais. As “comunidades da oralidade” (uma expressão, evidentemente, que pode induzir em erro pelo seu esquematismo), quando não são vistas como uma invenção nossa para consumo nosso (os outros), não são resíduos exóticos, “primitivos” ou “pré-históricos” em suma: somos todos nós, na vida prática. Tentarei nestas breves notas aflorar ao de leve apenas algumas das complexíssimas questões que esta postura envolve.
Acção, colectivo, individual... conceitos com longa história e a precisar sempre de aturada reflexão.
É evidentemente um falso problema e uma perda de tempo estarmos
a discutir a “questão da galinha e do ovo”, e do que terá existido primeiro, ou será primordial, se o indivíduo, se a sociedade, se o “agenciamento”, ou se a estrutura. Foi um problema fundador da sociologia e é uma velha questão filosófica: será uma comunidade basicamente um mero aglomerado de indivíduos, que entre si de algum modo “contratam” no sentido de possibilitar a vida em comum, ou tem a sociedade uma existência e dinâmica próprias, propriedades emergentes que estão muito para além dos indivíduos e do seu controlo?
Esta questão liga-se com a discutida problemática de se saber até que ponto o indivíduo é um “produto socialmente construído”, um mero reflexo deste meio artificial por excelência em que vivemos, ou se, pelo contrário, a capacidade dos agentes individuais, ou de pequenos grupos, embora variável de contexto para contexto, é apesar de tudo significativa.
Também tem muito a ver com a velha questionação, sempre recorrente, diante de outros pares de opostos, como o do inato e do adquirido, do natural/biológico e do cultural, daquilo que nos distingue dos animais e das suas “sociedades”, etc., etc. Um mundo onde é difícil entendermo-nos, harmonizando conhecimentos e perspectivas que se vão alimentando mutuamente e (re)construindo em cada um de nós ao longo de uma vida, na mira (ou miragem) de encontrar um ponto de vista próprio e sustentável.
Está bem de ver que estas questões, quando tratadas de forma abstracta e holística, sem atender à imensa variedade e complexidade do real, tendem a tornar-se estéreis, esquemáticas, sem sentido. Mas também é verdade que o conhecimento (pelo menos como nós o entendemos, ocidentais) é sempre um conhecimento do geral, no sentido de que quer distinguir o certo e o errado, tem por pano de fundo (mesmo que utópico) uma vontade de verdade, isto é, de se atingir formulações conceptuais que ultrapassem a circunstância e o descritivo, e que, num “volte face” ao concreto vivido, estabeleçam conclusões, proposições que visem uma certa universalidade, que permitam uma (pelo menos temporária) convicção de que percebemos alguma coisa.
Há um universal óbvio que nós, ocidentais (que obviamente não somos os únicos a pensar sobre este planeta, e a pensar de forma complexa... mas que séculos de colonialismo e de racismo radicaram) inventámos, que é o de “primitivo”, e um seu irmão gémeo, o conceito de tradição, ambos obviamente fazendo parte, como já tenuamente sugeri, da ideologia colonial, evolucionista, e de matriz racista (mais ou menos “disfarçada”) que foi e é ainda maioritariamente a nossa (embora o racismo esteja longe de ser um monopólio europeu, é claro). Temos de distinguir aqui, claramente, entre o que seria um discurso da nossa vitimização e de “angelização” (permita-se-me o termo) do outro, ou o seu oposto. É a desgatada questão do bom e do mau selvagem, da suposta natureza humana, etc, etc.
Todavia, em geral, o “ocidental” (passe a extrema simplicação) pensa (ou tem pensado assim, porque as coisas estão a mudar muito): os outros, em relação a mim, são imperfeitos, incompletos, situam-se de algum modo do lado da natureza, colocam-se sob a lupa do meu entendimento; eu, que me situo na cultura, nomeadamente na cultura científica e argumentativa, faço deles objecto de estudo e tiro as minhas conclusões, quer dizer ganho sobre eles um conhecimento (e um poder) que eles sobre si mesmos supostamente não têm.
Quer dizer, torno consciente (palavra mágica), e verbalizo, o que eles fazem e sabem mas não dizem; ou se dizem, não escrevem, não têm necessidade de elaborar sobre o herdado. Pois, se não escrevem, não inscrevem duravelmente uma tradição, não têm de facto, em última análise, uma história. Esse é o desígnio da antropologia, mas em geral também o de toda a cultura ocidental (contra a qual era inevitável a rebelião das outras culturas e civilizações, a que estamos de facto a assistir, como Toynbee e tantos outros autores previram).
O que é mais curioso é que muitos povos “sem escrita”, “primitivos” portanto segundo essa inventiva mitologia, tem de nós a visão deprimente de seres que não sabem nada, e que portanto, afanosamente, têm de estar sempre a tomar notas, a escrever textos, a passar a escrito aquilo que é para eles ma evidência: um “habitus”, um saber incorporado que se aprende pela experiência e que se desenvolve todos os dias, respondendo aos desígnios da acção, àquilo que se apresenta para fazer em ordem à continuidade da vida. Ou seja, afinal tal como acontece connosco mesmos, todas as pessoas improvisam continuamente, e é a essa capacidade de improvisação, que envolve sofisticada intuição, que dão maior valor. Com razão, evidentemente.
Mas a admissão pela nossa parte desta visão que os outros têm sobre nós (ou que nós supomos que têm) pode também justificar ainda um certo “racismo” nosso, sofisticado embora. Aos outros pertenceria a acção, a nós o saber, a relexão distanciada e comparativa, sobre essa acção; os outros, como não emanciparam uma “teoria”, um conhecimento escrito, relativamente à acção, também não são capazes da inovação tecnológica, ficando assim presos às rotinas herdadas, à moral vigente, ao “status quo” local, quer dizer, à tradição, à crença (no sentido pejorativo de crendice). Não abstraindo, não formalizando, ficam impossibilitados de comparar, de se descentrarem; e nesse aspecto não só estão fora da história como estão numa espécie de atopia, de local não cartografado, presos à sua razão que se não mede com a razão dos outros. Presos à crença que não “evolui” para formas superiores de elaboração.
Por causa desta ideologia, que nos é congénita, é que pensamos que os “primitivos actuais” são resíduos de formas “ancestrais” de vida (de certo modo fósseis parados no tempo, ou representando “estádios da evolução económico-social e cognitiva”), e não seres contemporâneos, modernos, como nós, como é evidente que são.
Nós de facto temos de esquecer muita coisa, de contestar muita coisa, para poder inovar, isto é, abrirmo-nos à modernidade e à história. Este complexo de ideias, que nos é intrínseco, é um operador fundamental do nosso pensamento. Não foi apenas desde o Iluminismo, ou desde a Renascença, que “inventámos” o Outro, que tivemos absoluta necessidade do outro para saber quem somos. Foi desde os antigos gregos pelo menos, como sabemos, que discutiram todas estas questões em profundidade, desde os tempos de Platão e de Aristóteles, e certamente antes. A atitude de um Heródoto, por exemplo, é sintomática.
Viajante, explorador, o europeu aventura-se longe de casa, junto do bárbaro (o que fala uma língua para ele, “emigrante”, ininteligível) para de certo modo saber quem, ou o que ele próprio, viajante, é, ou poderá ser: a deslocação é sempre uma procura de distância, de perspectiva, de constituição de identidade por comparação, de desejo de universalismo.
Por isso, também, o turismo de massas é hoje a outra face de um ocidente em crise, de onde fugiu o horizonte de sacralidade em que vivemos durante séculos, impondo-se a tecnologia “per se” e o modelo da máquina (comunicação e cálculo) com uma espécie de nova religião, a da eficiência, cuja face complementar é o exotismo.
Resta saber se essa suposta “crise” (para nós inquietante porque a sofremos na pele) não é algo de muito mais antigo e constitucional ao ocidente. Um ocidente cristão em que o Deus criador se desdobrou em três, e para completar a sua obra teve de passar da transcendência à imanência, de entrar na história e de criar um filho que “enviou à Terra” para redimir os homens e concluir o trabalho iniciado na Génese. Estamos imersos numa cultura da inquietação e do “pathos”, como é óbvio, da insatisfação e da procura.
Sei que ao escrever tudo isto (todas estas generalidades evidentes) passo a correr sobre problemas teológicos e filosóficos que são extremamente complexos e têm muitos ângulos sob os quais se podem perspectivar. Porque, por exemplo, é óbvio que o não ter “feito” o mundo “perfeito” pode ter sido um desígnio superior de Deus para nos deixar espaço de manobra e de acção, para permitir a história, isto é, para nos deixar descolar da tradição e da sua tutela (que subjuga o primitivo, o pagão) e nos permitir experimentar, inovar, mesmo à custa do erro (do pecado). Para passar do local ao geral, do múltiplo ao uno, da busca à unidade, da diluição da vida à salvação, à redenção da verdade. A verdade como objectivo é sempre uma pretensão de poder, uma esperança de domínio. Mas qualquer atitude de dúvida e de diluição é, na nossa cultura, logo interpretada como uma “concessão ao inimigo” (que pode ser o “sistema capitalista”, ou o outro determinado em destruir-nos porque está convicto de que só ele possui a verdade, de que nós não passamos de pagãos ávidos de prazer).
A nossa cultura está intimamente ligada à ideia de história e de tempo como criador de novidade, como radicalmente imprevisível (apenas, como excepção, para os crentes na – para mim duvidosa - tranquilização escatológica de um Juízo Final em que tudo se resolverá), mas aberto ao arbítrio do ser humano, capaz de se libertar da satisfação das supostas “necessidades básicas e universais” (reificação da “biologia”), da necessidade “instintiva” a que os animais (e, de certo modo, todos os que estão próximos deles, os que têm “pouca cultura”) estão irremediavelmente sujeitos. Ou seja, os animais “sabem”, os “primitivos” sabem, mas muitas vezes, para não dizer sempre, não sabem que sabem, não elaboram conceitos e argumentações sobre isso, pois ou ou estão desprovidos de linguagem (animais), ou estão desprovidos de escrita (seres humanos). Quando muito, os humanos sabem que sabem mas de uma forma sub-consciente, não oralizada, mesclada com a acção, e portanto é um saber fraco, porque não se pode autonomizar e comunicar de modo formal, a distância, a grande escala. O “europeu” (com as suas extensões no novo mundo que colonizou) está em geral convicto de que ao nível local só acontecem rotinas e o cumprimento de normas implícitas, ou seja, não há reflexão e inovação, que tem de vir de fora: era a ideologia do histórico-culturalismo.
A acção colectiva, nas comunidades orais (“pré-históricas”, “selvagens” ou “bárbaras”, anteriores ao Estado e à civilização, que é o que para nós, ocidentais, tradicionalmente caracteriza e permite a pessoa humana, o verdadeiro “homem “culto” e polido) teria pois de ser concertada (e constantemente renegociada, se não fosse a tradição, as normas passadas de geração em geração, factor de estabilidade) segundo regras diferentes da nossas.
Se bem que ainda até há pouco tempo a maior parte das pessoas, mesmo no ocidente, não soubesse ler nem escrever, e que a superação de tal situação fosse essencialmente um desígnio dos estados-nação modernos (preocupação que hoje prosseguimos), a escrita, a partir do momento em que se desenvolveu, foi um instrumento capital na constituição do poder político, da divisão da sociedade em governantes e governados; e certas formas históricas pré-modernas desse poder emergente do Estado e do Império (hoje à escala global, pela primeira vez) não precisavam (antes bem ao contrário) da inserção da maior parte dos indivíduos nessa ordem discursiva.
Bastava que tal estivesse controlado por elites para tudo mudar em relação aos tempos em que ninguém possuía tal “tecnologia”. O “saber ler, escrever e contar” da escola básica, extensível a todos os cidadãos (os antigos súbditos), é a outra face de uma política (e de uma polícia, no sentido mais geral, seu braço armado) que tudo integra, que traz à superfície a totalidade dos seres humanos (aliada desde o séc. XIX à fotografia, à identificação, ao cadastro, ao encarceramento, à estatística, etc.) dividindo e classificando de uma forma nova, estabelecendo sociabilidades até então insuspeitadas. Para muitos criando, de facto, as primeiras autênticas sociedades, abrindo a história ao insuspeitado poder do ser humano, que atingiu um dos seus ápices “científicos” no nazismo.
Mas os problemas, tal como foram inicialmente elaborados no ocidente, seriam evidentemente insolúveis, porque mal postos, aos nossos olhos actuais: como todos bem sabemos não existe essa dicotomia entre “The west and the rest”, entre uma “cultura superior” e outras inferiores, ou entre uma cultura realmente eficaz mas “espartana” (a nossa) e outras paradas no tempo mas “felizes” (pelo menos nas suas elites - é aqui que entram todas as mistificações românticas do “orientalismo”, etc, bem conhecidas).
Há e houve, claro, inúmeras, infinitas, formas de habitar em sociedade (e de conceptualizar o “meio”) entre os seres humanos, sendo tarefa do arqueólogo, do antropólogo, do historiador, entre outros, precisamente a de estar atento a essa diversidade, tanto mais que estas disciplinas não são hoje apenas praticadas por ocidentais, mas por uma grande variedade de “pensadores contemporâneos”.
E não só: porque falar apenas de “pensadores” (palavra que acarreta o seu quê de ridículo, convenhamos) é muito redutor. Há muitas formas de racionalidade, de acção intencional, de comportamento sofisticado e inteligente, de “know how” que não apenas a europeia ou as das “grandes culturas” que passaram parte do seu saber a escrito.
Aliás, num certo sentido, de facto, passar a escrito é reduzir, é submeter as coisas e a vida à ordem da textualidade, e esta a uma discursividade que depois fica presa do texto, depende dele, da sua linearidade (desconhecida por exemplo nas “artes rupestres”, onde os motivos vogam, em geral, numa espécie de vazio, como se dançassem sobre o suporte ou emergissem do seu interior). A textualidade está evidentemente ligada à história, à narração/narratividade, a uma certa forma de conceber o tempo em que fomos educados.
A pessoa “letrada” de certo modo já fala no dia a dia de forma diferente, porque, de tanto texto que leu, já diz “textos” quando se exprime no quotidiano, já não fala como os outros, não tem a mesma postura, a mesma gestualidade. Aliás, é muito interessante ver como, no quotidiano, as pessoas menos letradas (e agora os jovens, anunciando uma nova cultura da “oralidade”) comunicam entre si reproduzindo discursos directos (e vai daí eu disse, e ele respondeu, etc., etc., tudo acompanhado de uma gestualidade específica para cada caso e indivíduo), sem fazerem a síntese, a redução da situação vivida no abstracto e no modo da terceira pessoa, ultrapassando a narração da relação a dois, a performance tal como ela supostamente se deu no teatro quotidiano.
Claro que até certo ponto está implícita na textualidade, na narratividade, uma ilusão de poder (resta saber se todo o poder não é, em última análise, a sua ilusão, a sua encenação), pois linearizar é reduzir o real imensamente, uma vez que na acção diária ninguém, desde o camponês até à pessoa que escreve um artigo, faz um trabalho puramente “intelectual” – a mente, como entidade isolada, é uma abstracção enganadora, e o texto, pelo simpes razão de existir, de cero modo “mata” o que diz, como os poetas sabem bem. Ou os actores de teatro. Ou os artistas que procuram recuperar, pela performance, algo de supostamente “perdido”, uma realidade que fazia sentido na e pela acção, com o envolvimento total e sempre imprevisível do ser (a improvisação), sem o texto a mediá-lo. Tentando ultrapassar aquela consciência que temos desde Foucault e outros, claro, de que quando falamos, ou actuamos, quer dizer, quando produzimos sentido, ele nunca sai de um vácuo, mas antes se inscreve numa ordem que evidentemente nos ltrapassa, a que os psicanalistas chamam simbólica, e articulam com a linguagem, o veículo mesmo da ambiguidade, “para bem e para mal.”.
Enunciar algo, sobretudo sobre um suporte e com a intenção de isso ser uma “mensagem” perdurável, é sem dúvida imensamente empobrecedor, num certo sentido. Por isso a comunicação entre as pessoas se não reduz a falarem umas com as outras ou a escreverem umas às outras, passando a maior parte dos sentidos e das transmissões por outras vias que qualquer um de nós conhece “intuitivamente”, e a que parcialmente aludi acima.
As afectividades passam pelas “pequenas sensações” subtis, e as afectividades são o lubrificante da comunicação, do saber, da incorporação, do sentido de pertença, da sensação de nos sentirmos a habitar um mundo com um mínimo de conforto, quer dizer, de adequação entre expectativa e concretização, a todos os níveis. Escusado será lembrar que essa “intimidade” varia de pessoa para pessoa, de tradição cultural para tradição cultural, e que o ser humano, cada ser humano, em última análise, na sua radical individualidade, resta um mistério (para si próprio e para os outros). Esse mistério, ou desfasamento ou desadequação entre o aparente e o supostamente verdadeiro, é o motor da própria vida.
A arte, a ciência, a filosofia, são expressões maravilhosas porque nos permitem uma certa criatividade individual ou de equipa, uma diversificação e um registo, mas estão muito aquém, ou, se quisermos, são indissociáveis, da vida de todos os dias. A própria comunicação desses saberes passa por práticas variadas onde o que nos marca, o que se nos inculca, é sempre imprevisível, e variável de sujeito para sujeito, de momento para momento.
Tradição, comunidade, identidade colectiva são temas muito debatidos, muito discutíveis, e traduzem preocupações que estão mais do lado dos que querem administrar (por exemplo, legislar e governar dentro dos estados-nação) do que da maioria das pessoas. É evidente que quando se debate muito esses temas, é porque estamos num momento de alguma “crise”, perante sinais de uma transição paradigmática, perante a emergência de um grande número de novas formas de sociabilidade, perante um mundo em mudança acelerada – um mundo, no momento actual, fortemente globalizado, onde cada localidade, cada “povo”, deixou de ter uma identidade por isolamento, digamos assim, e tem necessidade de se identificar e de defender a sua identidade, a sua especificidade, precisamente por estar conectado com a realidade global.
A preocupação com a identidade (individual ou colectiva) é sempre um sintoma de quem está à defesa, na procura de manutenção de uma diferença (real ou construída, ou ambas as coisas ao mesmo tempo... entramos aqui num domínio onde as utopias tem forte poder mobilizador), de um desejo de “autoridade” assertiva que traduz (ou desvela) o seu contrário, a fragilidade da própria afirmação.
Alguma vez houve alguma acção humana que não fosse em última análise também radicalmente colectiva? Penso que não. Estas dicotomias entre o todo e as partes, e qual era a origem, ou matriz, se o todo, se as partes que o compõem, não têm evidentemente sentido.
Nós não nascemos no vácuo, e muito antes de podermos ter domínio sobre nós, estamos, num processo que a psicanálise mostrou bem, a incorporar, como nossas, muitas coisas que vêm do “meio”, mas um meio de princípio para nós fragmentado e incompreensível. Um universo do qual também fazemos parte, disso tomando consciência progressiva, à medida que a nossa “identidade” se concreciona e que os vários “traumas” por que vamos passando nos vão constituindo como sujeitos mais ou menos “autónomos” . O que cada um acrescenta à realidade, mesmo os grandes inventores, é minúsculo em relação ao enorme património da história da nossa espécie, sem dúvida singular neste aspecto incontornável.
Por isso haveria que erradicar (se a própria linguagem que usamos no-lo permitisse) tal dicotomia de indivíduo - sociedade, fundindo a sociologia e a psicologia (ou as questões que sob elas historica e convencionalmente se albergam) sob a égide, não se um saber ambicioso e envolvente, mas de conhecimentos transversais capazes de darem, antes do mais, conta do particular.
Ideias gerais interessantes, sugestivas, qualquer um pode eventualmente ter, desde que possua uma certa preparação, alguma competência; essa competência, ou vontade de se basear em suportes sólidos (dominar bem os protocolos da sua disciplina antes de se aventurar em terra incógnita) é compreensível e indispensável, e em certas pessoas é uma verdadeira obsessão.
Mas nunca nenhuma pessoa excessivamente prudente (com a cabeça bem arrumada, como se costuma dizer, e valorizar muito a nível académico) deixou obra que de facto perdure. Aportou algumas informações sólidas, c’ est tout.
O que é importante, crucial mesmo, é conjugar isso com a maleabilidade de aplicar o geral ao particular e vice-versa, alterando um e outro constantemente em função da experiência de interacção, como aliás toda a gente faz todos os dias na vida prática: saber improvisar.
O que é vital é trazer para o campo do saber a própria indecidibilidade, fluidez, e “abertura” da vida real – o que nunca vi que se pudesse fazer melhor do que através do ensaio, com toda a liberdade que comporta (para além da prática artística, está claro; estou-me a lembrar por exemplo do “capricho” musical barroco). Não se trata de “humanizar” o conhecimento com umas decorações “humanísticas”: trata-se de subverter hábitos e práticas, se é que essa utopia, essa autêntica revolução, pelo menos a (longo) prazo, tem ainda sentido. Creio que sim, senão abandonava-me ao fluxo da vida corrente, ou seja, à gestão do que me foi imposto ou por mim incorporado (quando muito sofisticando-o), e abdicando de uma voz própria. Sujeito passivo, como se diz na linguagem fiscal.
No fundo, trata-se de criar sensos comuns, não tecnocráticos, onde toda a tecnologia (mesmo a filosófica, em toda a sua sofisticação e beleza) não esteja independentizada como um conjunto de funções ou tarefas que se cumprem mais ou menos bem.
Sim, a matematização do mundo, a sua formalização sofisticada pela ciência, pela arte, pelo maior apuramento conceptual possível, é fundamental para o destino da humanidade.
Mas sobretudo temos de criar e aprender (duas faces da mesma moeda) decisivamente novas formas de acção colectiva, não para sacrificarem ainda mais os indivíduos (como fazem as nossas sociedades altamente burocratizadas), mas para permitirem a sua emancipação de modelos hedonistas e individualistas que fecham o ser, não o abrem. Distinguir a desejável liberdade, autonomia, individuação (um pensamento e uma acção da felicidade, que é sempre uma experiência onde quem conhece e o que conhece estão implicados indissoluvelmente, diria amorosamente), do individualismo egoísta e tacanho na sua aparente sofisticação: porque querer construir-se sem os outros, sem a relação com os demais, objectivando práticas eficazes ou autisticamente perfeitas, é sempre uma forma de violência, de autoritarismo. Mesmo de brutalidade, desde logo contra os outros que há em mim, contra a liberdade fundamental que é a de eu me saber alguém que não sei bem quem é – e de poder viver assim pacificamente, não como marginal, mas como elemento quiçá imprescindível. Escusado será dizer que este “eu” que aqui se enuncia é um colectivo, é aplicável a qualquer um de nós, pelo menos na perspectiva daquele que escreve (o que assina este texto, ou junta o seu nome ao mesmo).
Dito tudo isto, é preferível estar aqui, em qualquer ponto do mundo onde se usufrua de condições de paz, segurança, informação, isto é, na dita “civilização” – do que na situação da maioria dos meus contemporâneos. A questão é que eu próprio (falo de um eu colectivo, refiro-me a qualquer um de nós) quero ir mais longe na compreensão (não meramente conceptual, mas incorporada, sentida) do que são formas diferentes de estar no mundo contemporâneo; como o quer também o “índio” amazónico ocidentalizado, aculturado, que já compreendeu, após séculos de destruição, que ou se defende ou é liquidado, já que formas de vida que lhe eram constitutivas irão inexoravelmente desaparecer.
Toda a gente já compreendeu: a “falta de escrúpulos” – algo que faz parte intrínseca do espaço público quando chega à dimensão que hoje atingiu, e não é produto de qualquer “maldade” intrínseca a essa gente - dos principais actores ou mediadores do mundo contemporâneo (políticos, representantes de grupos económicos, estrelas do “entertainment”, etc.) vê-se na televisão, lê-se nas expressões deles em toda a parte. Já ninguém, senão os fundamentalistas, se deixa assim tanto mobilizar por um cartaz de propaganda: ou melhor, é mobilizado, e percebe isso, mas deixa-se ir de forma irónica, como uma criança que não só aceita, mas procura o jogo. Um efeito de cansaço, apenas?... Não. Um melhor conhecimento, mesmo intuitivo, por parte das pessoas, do que é a economia simbólica da política – um jogo puro e um espectáculo para os tele-receptores.
O que mobiliza mais profundamente as pessoas, então?
O que as mobilizaria há quatro ou cinco mil anos, nas “colectividades” que estariam por detrás dos espaços que, como arqueólogo, eu interrogo? Que contributo posso eu dar, nessa qualidade (a de arqueólogo, de poeta, de ensaísta se quisermos – nunca de especialista de outras ciências, ou de filósofo, que não sou)? Qual a “mais-valia” com que posso contribuir para o diálogo desta mesa-redonda, justificar a minha própria presença aqui, pedir ao leitor que c ontinue a debruçar a sua atenção sobre estas notas?
A assunção, desde logo, de que fui educado no verbo, na palavra, no saber escrito, mas que não quero ficar por aí, preso nessa armadilha. E a certeza de que, por mim só, nunca chegarei a lado nenhum. A partilha – sempre de algo que, por mais que nos esforcemos, não passa de um esboço do que tínhamos imaginado fazer - é uma forma absolutamente essencial não só de transmitir, de informar, mas de aprender e de se constituir como ser humano em todas as dimensões, procurando sempre a harmonia e a “maîtrise” de si mesmo que constantemente (e ainda bem que assim é...) nos foge.
Se todo o indivíduo é um ser activo, se confunde com a sua acção desde que nasce até que morre, se ele é até certo ponto “um produto” óbvio de um colectivo onde é gerado e se desenvolve, ele nunca se limita, em nenhum caso que eu conheça, a reproduzi-lo.
O ser humano não é um autómato, uma mente pensante sobreposta a uma fisiologia de necessidades ditas básicas, e para sobreviver necessita de aprender, em qualquer sociedade. Tal processo de aprendizagem é complexíssimo, também nas sociedades ditas “da oralidade”, podendo ou não passar por limiares, por ritos de iniciação, por fases ou momentos formalizados de ruptura com a situação anterior (“morte”, limbo, renascimento) que existem na biografia de qualquer indivíduo, quaisquer que sejam as formas de sociabilidade vigentes.
Por isso, desde que diluamos (tanto quanto nos permite a “gramaticalidade” da nossa linguagem, coisa dificílima se não impossível) a dicotomia individual-colectivo, tanto podemos partir do indivíduo, como da comunidade, porque os dois são indissociáveis, e não apenas realidades justapostas. O discurso, desde logo, é que nos obriga a separá-los.
Como desligar a mente da acção, o projecto da execução, também isso não tem na verdade sentido: eu não aplico na minha experiência diária, conscientemente ou não, programas aprendidos, como se fosse um computador (mesmo de última geração). Faço esboços, ensaios, mobilizando a experiência anterior tanto quanto me é viável, até que me decido por uma solução, enquadrado por todo m contexto, pressionado pelo tempo, e orientado pela intuição. É assim que, na prática, e salvo erro, basicamente “funcionamos”. Só no momento da execução muitas questões são resolvidas, pelo que não há uma independência da “teoria” em relação à “prática”, mas uma imbricação constante das duas e uma mobilização do indivíduo e da memória social ao mesmo tempo. Só conceptualmente são distinguíveis. Estas distinções são fundamentais para pensar (senão ficávamos num sincretismo primário), mas podem ser armadilhas temíveis sempre que queremos partir dos esquemas para a realidade, da “perfeição” da “teoria” para a incompletude da “prática”, da vida real.
Por isso é que o nosso ensino, às vezes até muito tecnocratizado (suprema utopia, ingenuidade, ou perversidade, a de pensar que a informática, por exemplo, é o nosso agente salvador...), funciona genericamente mal, porque não há interacção entre as pessoas envolvidas, com se supõe existir em comunidades tradicionais, de mais pequena escala, ou como se queira chamar-lhes. É esta vivência (em que saber e saber-fazer se confundiam) que hoje, na medida do possível, queremos (a partir de outro patamar conceptual, naturalmente) recuperar. Voltar aos “materiais” de todo o tipo e trabalhá-los em múltiplas combinatórias, numa liberdade a-disciplinar antes insuspeitada. Por isso é que as crenças nos interessam, por isso é que procuramos “recuperar” a intuição como um valor de conhecimento, e não como algo recalcado e a evitar.
Tudo está de facto, e como sabemos, espartilhado no nosso ensino (mesmo o dos países mais “desenvolvidos”) em “disciplinas” que não correspondem muitas vezes aos problemas reais, à sua complexa combinatória, à contemporaneidade dos modos de estar e agir, que se caracteriza pela liquefacção, pela fluidez, pela interacção. O pensamento de hoje é nómada, abomina a escolástica, no sentido vulgar deste termo.
Assim, aqueles sistemas de aprendizagem já não servem inclusivamente as elites (económicas, as verdadeiras), e por isso é que estas os querem reformar a todo o custo e provavelmente ainda para formas mais tecnocratizadas, mas que aparecem como racionalmente irrefutáveis. Vão no caminho certo, ou no caminho errado? Claro que isso depende do ponto de vista, de uma política. Como escrever estas palavras, por muito inócuo que pareça, é também uma forma de intervenção política, inerente a toda a acção humana (o que não significa que mude qualquer coisa por causa disso – pode até servir muito bem o “status quo”).
Mas, como era a acção política antes da pólis, antes da escrita, antes do Estado? Esse é que é o meu problema, eu que me recuso a ver a história como um processo que conduziu dos gregos (ou dos pré-socráticos, ou até, para dar um grande salto para trás, dos primitivos símios) até nós. De facto, tento evitar qualquer messianismo, mitologia, ou visão abrangente e totalizante (totalitária) que “explique tudo”, como é evidente que – sob a forma de nostalgia e sob a roupagem de ciência - está por detrás de grandes autores incontornáveis como Marx, Freud, ou Lévi-Strauss) (ver Steiner, op. cit, 2003).
Ser um “pré-historiador” (permita-se-me a académica classificação), um antropólogo, um poeta (tudo isso está a fundir-se; cada vez mais, no futuro, as pessoas vão poder ser “coisas novas”, entidades fluidas e mescladas - sabendo-se que “o futuro” é sinónimo de presente), é (tentar) voltar a juntar o que está separado no discurso corrente e apreendido no ensino escolástico tradicional, que foi o nosso, o da geração actual de formadores, de professores. Estamos provavelmente nos antípodas das formas de transmissão dos conhecimentos que a maioria das sociedades humanas “adoptou”, apesar da sua infinda diversidade.
É ser contra-intuitivo, não tanto fugindo à nossa lógica de ocidentais (isso é impossível, partimos sempre de um ponto de vista), mas, seguindo a própria lógica dela – abrindo-a, tentando transformar o incompreensível em algo de compreensível, e em última análise o confronto violento em simples “confronto” (naturalmente, “pacificar” o debate, dirão os críticos, é sempre fazê-lo a partir de uma posição de poder... mas os críticos são indispensáveis!). Porém, com a certeza de que estamos hoje em diálogo com pessoas de todo o mundo, as quais, obviamente, não pararam na história, mas, a juntar à sua tradição local, aprenderam a nossa maneira de pensar (globalizada) para poderem lidar connosco no mundo contemporâneo – isso é crucial.
Somos todos multi-culturais, se quisermos aceitar a palavra, desde o aborígene australiano ao sofisticado professor de filosofia do MIT. Fazemos experiências de vida diferentes do passado. Cruzamos a nossa preparação - num domínio específico para que a investigação nos encaminhou (e muitos “híbridos” estão a surgir, não necessariamente maus) - com outros, às vezes inesperadamente para nós, pelo menos aqueles que temos acesso à escolaridade e a formas minimamente dignas de vida. Mas sabemos que tudo está permanentemente em desequilíbrio, em miscigenação... e que isso sempre terá acontecido (a história “lacada” só aparece na mente doentia do pseudo-historiador), só que hoje está a acontecer no espaço de tempo da minha geração, a uma rapidez fulgurante.
Qualquer ser humano, qualquer forma de sociabilidade, qualquer comunidade procura um sentido para a vida, para a acção individual e colectiva. Consciente ou inconsciente, esse desejo de sentido (de se sentir “at home”) está sempre no nosso horizonte. E esse sentido não é abstracto, ele ancora-se numa experiência sensível, subtil, sempre em mutação e a responder a desafios. O novo e o inesperado são de sempre, não apenas de hoje. O passado não é uma coutada para domesticar com meia dúzia de sítios expostos e de histórias inventadas por forma a entreter visitantes. O passado (a arqueologia, ou genealogia das coisas), tal como o presente e o futuro (são todos modalidades da consciência presente) são felizmente realidades sempre em aberto, onde evidentemente se exercitam um conjunto de práticas interrogativas contemporâneas.
A verdade e o desejo estão muito associadas: sabemos quanto o seu atingir é utópico, mas precisamos desse horizonte e completude (“fulfillment”, “jouissance”) para avançar, precisamos do impossível, do sonho, da ficção, da fantasia que nos convença, que nos apanhe, com a qual nos confundamos na nossa crença profunda, sem o que perderemos a alegria de viver, a esperança do prazer.
Quando em história ou arqueologia falamos de “reconstruir” tal passado estamos apenas a usar uma metáfora cómoda, como eu poderia reconstruir a minha história pessoal, a minha biografia, sabendo que isso é sempre e necessariamente (e afortunadamente) uma ficção, mas uma ficção com aspectos verificáveis por outros (não posso dizer que me chamo Maria ou que nasci em 1970, porque algo que contradiz isso está consignado no meu bilhete de identidade e noutros documentos, está escrito e fotografado, quer dizer, passou para o lado do que é aceite como irrefutável). Uma convenção também, em última análise, é claro. Sei que há autênticos sósias meus (aspecto físico semelhante) e pessoas com o meu nome. De forma que ainda a melhor maneira de me identificar á capaz de ser o cartão de contribuinte, ou (nos EU, creio) a carta de condução...
É isso que distingue a ficção “científica” (a ciência, o conhecimento cumulativo, verificável – aliás, um problema também mito interessante para o direito moderno, em que a confissão ainda é a melhor forma de prova... mas quem e por que é que confessa, e o quê?...) de outras: é que ela visa uma forma de verdade que está do lado do verificável por terceiros, enquanto que a arte visa uma forma de verdade que deve ressaltar da interacção imprevisível entre o objecto produzido e o fruidor ou receptor. A confirmação aqui é da ordem da comunhão de algo que não é definível ou formalizável como na ciência, mas não deixa de apelar a um fortíssimo sentimento de verdade.
Algumas pessoas deviam perceber uma realidade tão evidente como esta, em vez de andar sempre a dizer banalidades contra o que entendem ser o desconstrucionismo pós-moderno. Heidegger ou Derrida desconstruiram, sim, numa profundo sentido de ultrapassar as contingências do “déjà vu” ou “déjà dit”, isto é, para de facto construir algo de “novo” (mau grado o esgotamento da palavra). Lacan ou Freud ainda incomodam hoje (apesar da domesticação a que a psicanálise foi em muitos lados sujeita) porque a sua filosofia é perturbante para a ordem estabelecida - subverte a moral tradicional tendencialmente até ao seu âmago. Ora, essa moral tradicional convive bem, em muitos casos, com a mais moderna tecnologia...como é evidente. E isto apesar de podermos sempre perspectivar as “grandes narrativas” modernas, e as suas contemporâneas “desconstruções”, como manifestações de uma velha aspiração ao absoluto, deixada com a “morte de Deus”, expressão nietzschiana que, como refere Steiner, muitos interpretaram apressadamente.
Como se pode tentar orquestrar uma acção colectiva (e qual o interesse ou motivação que pode ter isso), sem recorrer a uma lei escrita ou a métodos coercivos legalizados, como acontece nas sociedades estatais-burocarizadas dos últimos cinco mil anos (que, todavia, só agora se estão a estender a todo o planeta)? Como é possível o próprio sentimento de “comunitas” a unir um determinado grupo de população? O que faz de cada ser humano alguém que, de um modo ou outro, procura equilíbrio com os seres humanos do seu grupo, mas também com os de grupos alheios (cvizinhos ou longínquos)? Quais são os esquemas de constituição de identidades, de sociabilidades, de crenças em algo que ultrapassa cada ser? Entramos num mundo extremamente subtil.
Dizia-me uma vez um colega antropólogo que, estando no estrangeiro com uma bolsa, e sentindo saudades de Portugal, tendo ido lá jogar a selecção nacional se sentiu estranhamente surpreendido consigo próprio ao virem-lhe as lágrimas aos olhos de comoção – ele que nem gostava propriamente de futebol.
Esta questão da identidade, da necessidade intrínseca que temos de nos identificar com “mitos” – quando não facilmente explicada pelos chavões da tradição cultural, ou do estruturalismo, etc. - é que é um dos nossos principais problemas de arqueólogos. Mais uma vez, a questão tem a ver com o leque de possibilidades que somos capazes de imaginar (a nossa “cultura antropológica” incorporada) em conexão com os materiais de que dispomos, e que reportamos a um determinado espaço/tempo.
Não se tem dado a devida importância à imaginação na “construção científica” – conota-se a imaginação com a literatura, de que os cientistas, auto-proclamados tal, têm horror (enquanto cientistas, como e óbvio – há muitas pessoas que se exprimem e realizam numa multiplicidade de planos, e isso só tende a ampliar-se). O que é um disparate, uma vez que, com sabe todo autêntico bom cientista, as grandes descobertas paradigmáticas partiram de intuições, da “genialidade” do seu autor, sem descurar evidentemente o facto de que não há descobertas a partir do nada (pressupõem sempre uma herança e uma comunidade, uma equipa muitas vezes). O indivíduo só, como hoje a ideologia mercantil generalizada propugna, não existe nem nunca existiu. Nós nascemos obviamente inscritos num sistema que nos é muito anterior, e que procuramos adaptar a nós, à medida que nos adaptamos a ele.
Não devemos dividir, como realidade universal, a acção colectiva “produtiva”, e a acção colectiva ritual, o sagrado e profano, como fazem autores como Mircea Eliade e outros (embora tendo sempre a prudência de advertir que os dois aspectos estão continuamente imbricados na vida humana).
Isso – essa dicotomia que pensamos, mas não praticamos - é um produto (simplista) do pensamento utilitarista corrente contemporâneo. No mundo humano, mundo do simbólico se quisermos (apesar de toda a prodência que também e preciso ter com tal conceito), tudo é simultaneamente funcional e ritual, quer dizer, as coisas só funcionam, os “recursos” (palavra aliás tão redutora quanto usada até à exaustão: tudo é recurso, tudo é património, tudo está colonizado pela mercadoria: como diz Agamben, o capitalismo ocupou até a nossa capacidade de profanar) só se utilizam, as pessoas só praticam acções cuja “eficácia”, cujo “sentido”, estejam integrados numa ordem geral, mesmo que seja para a contestar ou tentar criar uma nova ordem, ou mesmo que tal eficácia seja vista de uma forma diferente da da ciência actual, ou nos pareça utópica ou imaginária.
Isto é óbvio, não é preciso ter lido as obras de Victor Turner ou inúmeros outros autores sobre o ritual e assuntos conexos. Mas, por exemplo, o livrinho “Profanações” daquele filósofo italiano (Lisboa, Cotovia, 2006) é mesmo vital para esta problemática... como aliás toda a sua perturbante e acutilante obra.
Os seres humanos precisam de viver não apenas num universo de imagens (no sentido mais amplo, fenomenológico e psicanalítico do termo – estou a lembrar-me por exemplo de Jacques Lacan, onde entra toda a nossa experiência de seres mergulhados no mundo), mas também de o organizar dentro de um quadro explicativo, dentro de uma “ordem”, que por convenção designo simbólica (inspirando-me de novo em Lacan). Essa ordem está povoada de desejos e de fantasias (“pelo sonho é que vamos”, dizia Sebastião da Gama), sempre numa recusa da morte e da nossa radical finitude. Mas essa recusa e esse ostracismo dos “mortos” é tipicamente ocidental, e não se pode generalizar facilmente, como nos ensina a antropologia.
De facto, a morte só se apresenta como algo que afasta o indivíduo da sociedade, que o faz desaparecer, que não tem, por assim dizer, remédio, na nossa sociedade ocidental laicizada. O morto, mesmo que adstrito a um lugar físico, a um sítio onde se possa ter a ilusão de estar perto dele, parte para sempre. Quer dizer, a nossa morte, no ocidente, é dupla, porque temos a consciência de que só na nossa memória a pessoa sobrevive, como aliás já em vida só na nossa imaginação muitos seres existem, e apenas episodicamente (nomeadamente em ambiente urbanomoderno, mediatizado e anónimo).
Partimos então de uma experiência original na história - vivermos sem crença num “post mortem”, e quando refiro essa ausência de crença incluo os seguidores ou “fiéis” da religião cristã. De facto, por exemplo, achamos fundamentalista a frase de alguns extremistas islâmicos que dizem que “nós gostamos da morte como vocês gostam da vida”, mas, com essa frase (e por isso é que ela, como propaganda, é eficaz), em todo o delírio e desespero que revela, eles estão a “acertar na mouche”, a tocar num ponto sensível do ser humano laicizado ocidental.
Porquê? Porque estão a dizer que para eles esta vida nada vale em comparação com a vida do além. Certamente há ainda muitos fundamentalistas cristãos que subscreveriam isso (bolsas de resistência que apenas são reflexo do universo mais geral), mas a tendência geral não parece essa, na sociedade que há séculos se laicizou, e desembocou finalmente na fase hedonista de consumo como modo estrutural de existência.
Os indivíduos aproximam-se da religião, no ocidente, cada vez mais por razões muito individuais, muito íntimas, homólogas das que as levam ao consumo generalizado da vida (pessoas, bens, serviços, experiências), dentro da tal sociedade hedonista, obcecada pelo prazer (ou por ter – e se possível mostrar - o prazer em ter prazer; o olhar do outro, mesmo que invejoso, comprova e certifica o nosso prazer) em que vivemos.
A experiência religiosa é tendencialmente de justificação individual, aqui. Trata-se de um “diálogo sem intermediários”, e tanto mais exigente quanto a cultura da pessoa e o seu grau de “refinamento” (estilização, distanciação em relação ao vulgo, etc.) pessoal. Não se trata, segundo uma antiga tradição, e como acentua Agamben (op. cit., v. cit. inicial) de nos ligarmos a algo (em última análise, Deus), mas de o pormos à distância, atitude só eventualmente superável pelo que ele chama “negligência” (não é bem indiferença), que parece ser efectivamente tomado posse, cada vez mais, do mundo contemporâneo ocidental, obviamente com a religião do capitalismo.
É em função de uma vida feliz aqui (em que os indivíduos procuram o gozo, no sentido psicanalítico) que as pessoas cada vez mais querem viver, e não têm grande “confiança” em reportar esses prazeres, ou satisfações, ao paraíso, futuro incerto e discutível, numa escatologia para místicos que faz sorrir o cidadão comum - a não ser que seja extremamente ingénuo. Seja como for, pelo sim, pelo não, há que gozar o mais possível na terra, nem que seja mergulhando num convento e na sua disciplina, ou devotando-se inteiramente aos outros.
Pois mesmo não querer nada, despojar-se de tudo, ou votar-se à disciplina total, tornou-se uma idiossincrasia muito particular, que sabemos (basta ler um bocadinho de psicanálise) motivada pelo desejo, de facto, de ter tudo. É uma ambição desmedida do ego, na sua fantasia de autonomia completa: mesmo sem nada, sobreviverei; mesmo apesar de todos os sacrifícios, atingirei o êxtase (místico?) nessa privação.
O amor dito livre, “hippy”, dos anos 60 (a utopia da minha geração) tinha, sob a sua face de “libertação de tabus”, muito disso: os homens passaram a usar cabelo comprido como Cristo (como a imagem que dele se generalizou), as mulheres seriam uma espécie de Marias Madalenas, tudo isto num cenário idílico de “imersão na natureza” (imagens frequentes de nudez perto de água, êxtase em grandes festivais ao ar livre) e de regresso ao éden que faz lembrar os rituais do baptismo primitivo. Claro que foi tudo absorvido pelo consumo e pelo mercado, multiplicando-se como hidra em produtos para todos os gostos, modos de vida/acção/contemplação, exotismos, orientalismos, músicas alternativas, rituais diversos, enfim, a parafernália conhecida, que não pára de crescer e de se ramificar.
Aliás, o ser humano parece ser feito de uma multidão de paradoxos e contradições (permita-se-me o deslize para uma certa generalização talvez abusiva), e isso aparece de uma forma muito desvelada no ocidente, em que as pessoas cada vez vivem mais no ciclo infernal da alternância: o tédio (trabalho, rotina, frustrações particulares e familiares, até as férias se tornam para muitas pessoas um ritual obrigatório onde pressentimos o seu “desencanto do mundo” sob a euforia encenada) e a procura de consolo sob formas que tendem a ser extremas, ou pelo menos a conheceram momentos de paroxismo.
Há uma falta essencial, e esse é o preço que pagamos pela negligência do “afastamento de Deus” – o qual, de um modo que pode parecer paradoxal, nos permitia contactar intimamente com ele - ou seja, pela nossa consciência de pequenez, pela ferida narcísica que decorre de sabermos que nos encontramos num universo onde podem existir milhões de planetas como o nosso a distâncias inatingíveis, e que estamos aqui porque, por razões em parte fortuitas, descendemos de outros símios por sinal muito parecidos connosco.
Esse modelo longínquo que nos alimentava apagou-se na poeira do espaço sideral: ficámos sós no ciclo infernal das suas imagens, condenados à nostalgia de dizer a sua falta, de perguntar por que nos deixou o que nunca esteve connosco, nem podia estar, mas apesar de tudo tinha um nome e, sendo irrepresentável, se desdobrou em milhões e milhões de imagens (Cristo, símbolo por excelência da nossa cultura) (ver J.-M. Schaeffer, “La Chair est Image”, Qu’ est-ce qu’ un Corps?, Paris, Flammarion/Musée du Quai Branly, 2006, pp. 59-80 – texto absolutamente iluminado).
Temos de evitar a tentação de pensar, de forma simples, que no passado (ou noutras tradições culturais) tudo seria mais ou menos igual ou diferente em relação a nós, pondo-nos a nós próprios na situação privilegiada de observadores centrais, de medida-padrão. Começar a dizer que as sociedades “primitivas” ou “pré-históricas” (que de facto inventámos como um recurso explicativo da nossa, com matriz última de onde derivamos) não punham em causa a existência de realidades transcendentes, ou que tinham relações de proximidade com os seres transcendentais, ou que viviam confundidas com a acção e com o sagrado, ou que precisamente usufruíam de uma distância em relação a ele que lhes permitia senti-lo por toda a parte, etc., etc – é dizer um conjunto de banalidades a partir de dicotomias modernas ocidentais como sagrado-profano, por exemplo.
Toda essa narrativa pseudo-antropológica (nas suas infinitas variações) é uma liturgia nostálgica (além de conceptualmente muito pobre), porque de facto não tem sentido pensar como sentiriam realidades globais que foram inventadas, imaginadas, por nós, outros que nós próprios inventámos; porque cada um dos milhões de “sistemas explicativos do mundo” que já existiu e se extinguiu foi provavelmente (suspeito eu, e estou bem acompanhado) único na sua especificidade, e não apenas diferente em relação a nós. Ao contrário dos fósseis, essas coisas não se fossilizaram: não é possível, felizmente, reduzir todo o passado a um fóssil.
Com certeza que há quatro ou cinco mil anos (apenas para me referir à minha época de estudo, convencional) existiram pessoas, comunidades, grupos que concertadamente realizaram no território alterações mais ou menos profundas, e eu posso dizer sobre isso muitas coisas. Umas factualmente observadas segundo um protocolo aceite, outras a título de interpretação ou hipótese. Mas seria uma ingenuidade muito grande querer separar demasiado factos e teorias, ou fazer certezas do que, como em todas as ciências, são construções intelectuais de que necessito para dar um sentido possível à realidade em que estou mergulhado.
Posso falar de imensos conhecimentos da arqueologia, a título de especialista de um dos seus ramos, como um médico pode falar sobre as pesquisas do cancro ou um astrónomo sobre as “suas” estrelas e galáxias. Mas a maior parte dos conceitos científicos, como sabemos, repousam sobre axiomas, e não conseguem esconder o óbvio: é de que o mundo em que vivemos é um imenso mistério, e que é insensato querermos recuperar o irrecuperável isto é, saber tudo, explicar tudo, substituirmo-nos à omnipotência e omnisciência divinas(à entidade que inventámos para nela projectar o nosso horizonte de absoluto).
Talvez seja isso o que distingue a obra de arte – que deve falar por si, ter uma pregnância própria, ou então não é arte, é “artesanato”, decoração, entretenimento, embora não se deva “sacralizar” demais o que já há muito foi desmitificado... tanto mais que as fronteiras entre o que é e não é arte se dissolveram – da de ciência, que deve sempre ser objecto de emendas, comentários, críticas, contra-provas, e finalmente da de filosofia, que se baseia numa argumentação por definição sempre aberta ao contraditório, ou seja, forja conceitos que se estruturam numa arquitectura de equilíbrio frágil sempre prestes a desmoronar, a ser rebatida, e a voltar a erguer-se...
Cada filósofo, se o é, não tem um único e estático sistema teórico seu, mas vai desenvolvendo, ao longo da existência, toda uma teia conceptual que é como um ser vivo. Por isso os manuais de filosofia, ao “introduzirem” à teoria deste ou daquele, estão a fossilizar um saber que só até certo ponto se pode delinear. O mesmo acontece na vida real e, certamente, no âmago de qualquer pessoa ou comunidade humana.
Se a vida de todos os dias se estrutura em tarefas balizadas pelo espaço/tempo socializados, ela repousa fundamentalmente num complexo de não-ditos, se subentendidos, que corresponde à vontade que as pessoas sentem de continuar a (sobre)viver dentro de um determinado contexto grupal, mesmo como marginais (as margens delimitam o sistema e, nesse sentido, fazem parte dele, como a moldura do quadro) ou “excluídos”. A continuidade de um “status quo” global é mantida pela confluência tacitamente aceite de um conjunto de realidades, apesar de todas as conflitualidades existentes.
Mas não vamos fazer do conflito, ou de qualquer outra causa primária, a ingénua “origem” da sociabilidade e da “comunitas” (não estamos nos tempos de Rousseau ou de Hobbes - aliás, a filosofia política está longe de ser a minha especialidade). E muito menos explicar a sociedade à base da teoria dos sistemas, ou de outra visão holística. A época dessas grandes narrativas interpretativas passou, e tal evanescência deve ver-se como um “progresso” dos nossos conhecimentos, no sentido de que já não acreditamos naquilo que eram as explicações da nossa infância, apesar delas constituírem o soco sobre o qual pensamos hoje.
É mais difícil viver sem tanta ingenuidade, sem tais crenças, sem as explicações globais que deram os pais fundadores das ciências, mas não temos outra hipótese. Não pedimos para estar no mundo e temos o desejo de compreender o que “aqui” se passa, sabendo que tudo o que conceptualizamos está dentro de um certo discurso, é mediado em grande parte pela linguagem (no sentido mais geral e não apenas estritamente linguístico), ou seja, dá continuidade a um meio que tem uma historicidade própria, sem que possamos, a partir deste ponto de vista tão microscópico, alguma vez vislumbrar um “todo” mítico que seria impensável.
O que nos vamos é entretanto entretendo a ler e a pensar e a viajar, a acumular conhecimentos e experiências, a refinar o gosto, e, a partir disso tudo, basicamente procuramos ir constituindo uma “opinião” – uma crença, se quisermos - mais ou menos respeitável ou partilhável por pelo menos alguns dos nossos concidadãos. Sendo que o conhecimento se distingue da mera opinião porque se baseia em estudos e análises, é uma síntese pós analítica, e não uma síncrese espontânea, como já nos ensinaram no secundário. Nisto, neste exercício modesto, e no facto de se deixar a um conjunto de pessoas que partilhem o mesmo itinerário, objectivando-o num discurso, consiste o percurso de um sujeito que teve a sorte de ser investigador/professor.
A acção colectiva pode ser encaminhada para objectivos localizados em pontos particulares do tempo e do espaço humanos, dentro de um território, quaisquer que sejam as conotações mútuas (a existirem) das várias escalas dessas espacialidades/temporalidades. E essa acção, ao galvanizar um conjunto de pessoas, une-as entre si, mesmo que momentaneamente, em torno de um “objectivo”.
Nada há de mais fluido do que um “espaço” e um “tempo”. São convenções que cada comunidade cria e recria em relação com as suas circunstâncias específicas. Ao abordar um sítio arqueológico com os meus olhos de “moderno”, estou necessariamente (e deliberadamente) sempre dentro do meu tempo e do meu ponto de vista, situado. Sabendo-me situado, como observador circunstancial, procuro oferecer resistência às interpretações sobre “o que ali aconteceu antes de mim” que seriam facilmente dedutíveis (como supostos universais) a partir do pensamento espontâneo. Não tenho referências universais nem bitolas para meter tudo em caixas e em taxinomias, podendo “comparar à vontade” coisas heterogéneas (também a comparação tem, evidentemente, as suas regras).
Não. Tenho apenas a minha capacidade de actuar sobre o sítio, examinando-o, reanimando-o (de certo modo, ao mesmo título que “reanimo” um livro ao lê-lo; mesmo na contemplação nunca há passividade, mas engajamento), e de chamar ao plano da memória antigas leituras e vivências, que tive, de tipo mais ou menos “antropológico”, e que me deram alguma (insuficientísssima) bagagem de conhecimentos sobre o ser humano ao nível das suas multímodas formas de relação com o mundo e no mundo, de expressão e de realização. E, desse modo, vou escrever uma narrativa sobre o sítio que lhe dê um sentido possível, ou – decerto - vários sentidos possíveis, desmunido de muitos conceitos que hoje já fazem parte do “arquivo morto” das ciências sociais.
Neste aspecto, a arqueologia repercute a extrema fluidez do conhecimento contemporâneo: perdemos (ou tentamos desprender-nos d’) o evolucionismo, o histórico-culturalismo, o processualismo. E, neste momento de crise paradidmática, tentamos experienciar os sítios, os objectos, os territórios com os ollhos do presente, os únicos que temos, e viver dentro a da des-ilusão dessas explicações ingénuas. Nem o espaço, nem o corpo, nem o tempo, nem o inconsciente, nem a tecnologia, nem muitas outras vias que se têm procurado explorar são âncoras firmes no mar revolto em que nos interrogamos sobre qual a melhor rota a seguir.
Não há primacialidade dos indivíduos sobre as sociedades, ou vice-versa. Sempre houve uns e outros, em interacção e em fluxo constante. Aquilo que hoje nos parecem períodos estáveis, provavelmente não o foram. A “cultura material”, em si, nunca existiu; os objectos não reflectem intenções ou normas, mas jogaram sempre como mediadores, como actores. Ora, termos consciência disso causa-nos embaraço, mas saber que não tem sentido certo tipo de saber é já saber muito.
Aquilo a que chamamos convencionalmente comunidades, sociedades, é algo de performativo, que se vai criando na improvisação dos dias e das relações, na interacção dos seres humanos. Essa interacção assenta numa distribuição de papéis e de tarefas, que se vão negociando, cristalizando ou desfazendo, que se manifestam em normas, padrões, mas também em rupturas, raramente globais, mas pequenas rupturas, confrontos, desequilíbrios. E em tudo isto o factor “emocional” é muito forte.
A crença de se pertencer a um “sistema”, a uma continuidade de sentidos e de “projectos”, o laço sentimental, extremamente subtil e subliminar, que une/desune as pessoas, a relação que se estabelece entre os “de dentro”, o grupo de pertença, e os “de fora”, com que se estabelecem eventualmente alianças, e a criação desses sincopagens do espaço/tempo, são muito importantes. A sincronização de tarefas une, e une tanto mais quanto essas tarefas têm uma escala relativamente ampla, e formalizada, quer dizer, de alguma maneira “ritualizada” no sentido de que a sua repetição de certo modo implica uma “calendarização” que envolve um grupo maior ou menor de indivíduos em interacção. Esta interacção, apesar de sempre contingente e mutável, é susceptível de se inscrever nos corpos, nas memórias, na intimidade de cada ser reflexivo, nas narrativas aprendidas (expressas ou apenas alvo de alusões) constituindo a “identidade” (sempre precária) de cada “território”, de cada grupo, de cada indivíduo. No jogo social, a confiança/desconfiança mútuas e a negociação das hierarquias das prioridades (quem faz/fala em primeiro lugar, quem imita ou escuta, etc.) estão em permanente estado de construção/desconstrução.
A maior ou menor formalização dos lugares em que as pessoas e os grupos se encontram é um elemento muito importante. Claro que essa formalização não tem, nem podia ter, uma relação directa com o construído: um cenário contingente, como por exemplo um “ajuntamento” em roda de centenas de pessoas em torno de uma performance, pode deixar marcas muito profundas, revelações de sentido que vão actuar sobre a memória de cada indivíduo, levando-o a reformular, pôr em causa ou consolidar, crenças e sentimentos. A maior parte da vida humana é feita destas “pequenas sensações”, nuas, despidas de roupagem discursiva formal, mas apesar de tudo constituindo um discurso, exigindo uma semiótica da contingência, do fluxo, de uma rede ou teia que, longe de ser hirta, é antes um “caldo” em constante “rotação”. Mas essa contingencialidade não elimina a realidade de molduras que, podendo ser voláteis, funcionam enquanto duram. O ritual é sem dúvida uma fixação de molduras, de sequências de acções, mas, como qualquer performance, passa-se “fora do texto”, e, pedindo a repetição, exige sempre uma ou outra mudança: a sua exequibilidade e eficiência, a sua capacidade de mobilização ou de focalização da atenção, a sua espectacularidade que convoca os seres e os grupos depende de algo de imprevisto, que despoleta sentimentos e sensações, por vezes passagens súbitas de um “estado passional” a outro. O “drama social” é feito de mil pequenos “teatros” em reequilíbrio constante.
Neste sentido, por ser uma ciência sem “informadores”, ou sem a possibilidade de observar de fora (até onde tal é possível) um jogo social a acontecer connosco, em torno (por assim dizer) de nós, a arqueologia não é uma “ciência social” como as outras. E, não possuindo textos (excepto obviamente nas “sociedades estatais” e mesmo assim tendo em conta que esses textos são sempre apanágio de uma minoria e, em si próprios, realidades sobrecarregadas de ambiguidade) que lhe dêem a ilusão de “compreender o outro”, ela está posta perante a mais total perplexidade. Tanto mais que sabe que, se fosse uma “ciência social” tal como hoje a encaramos, atenta sobretudo à fluidez, a arqueologia estaria em contra-mão, porque claramente nos surge, à partida, muito mais vocacionada para a fixidez, para o padrão, para o sistema ou modelo relativamente rígido, do que para o fluxo.
Mas, e de forma paradoxal, é precisamente esse facto de estar desmunida de explicações “fáceis” sobre como cada sociedade se constitui e reproduz que constitui a enorme força “subversiva” da arqueologia, se a soubermos utilizar para criar qualquer coisa que nos permita abrir novos entendimentos do ser social, e de cada um de nós em particular. Esses entendimentos não são formalizáveis facilmente como no pensamento dito racional corrente; não são argumentos, proposições cristalizadas. São pressentimentos, prenúncios de uma “ciência nova”, que terá de fazer o seu caminho.
O “drama social” em todas as suas dimensões - crenças, religiões, poderes, grandes “obras” como a “monumentalização das paisagens” a que assistimos em boa parte da Europa em torno do III milénio a. C. - pode receber contributos importantes da “atitude arqueológica”, mas, para já, eles não são formalizáveis: situam-se num espaço incómodo de limbo, antes do conceito, antes do argumento, antes evidentemente da prova. Situam-se um pouco como a palavra poética – indecisa, inesperada, fulgurante e perturbadora. Estão “out”; e estão muito bem, porque é essa condição de indecidibilidade que nos impele para tornar a arqueologia uma das atitudes mais interessantes na relação com o saber frágil em construção em todos os campos.
Como paixão pela tarefa de dar sentido ao tempo dos territórios, de conferir uma temporalidade à experiência humana não registada em parte alguma (incluindo a mítica “realidade material” que, como coisa autónoma, é abstracta e sem sentido), a arqueologia desperta não para uma imaginação gratuita, desprovida de bases, mas para a minuciosa análise tanto dos micro-locais como de toda a superfície terrestre, que mais nenhum outro pensador/investigador/cientista faz. Tem a minúcia do bisturi e a problemática da filosofia; tem sobretudo a capacidade de ter de se deslocar a alta velocidade entre múltiplas escalas. Nesse sentido, a arqueologia é hoje um instrumento típico da pós-modernidade, ou modernidade tardia: algo que nos puxa como observadores para “dentro do ecrã”, e que con-funde, no sentido pregnante do termo, “conhecimento racional” e conhecimento intuitivo.
Da aparente fraqueza que o senso comum lhe encontra, faz a sua força no contexto da sociedade actual, onde o que importa não é a fixidez, o esfriamento da energia, mas a turbulência, o aquecimento dos sistemas de comportamento e de comunicação. A arqueologia encontra-se num limiar, como todos os saberes em constituição, ou, se quisermos, como todas as frentes dos saberes e das formas de arte inquietas, jovens, extremamente energéticas, que nos comunicam perplexidade, espanto, surpresa, incapacidade de solução imediata. Não pacificam como um manual estável, não dão uma sensação de tranquilidade como uma arquitectura monumental, mas desinquietam como um corpo vivo, palpitante.
A arqueologia não trata de ruínas senão quando tem de mostrar qualquer coisa aos turistas (que somos todos) ou aos “sponsors” económico-políticos (sem cuja benevolência lá se vai a pesquisa). A arqueologia só trata de “reconstituição do passado” quando tem de montar cenas para a “animação cultural” (do tipo “venha passar um dia em tal parte no neolítico final”), carnavalizando-se.
A arqueologia trata dos múltiplos “tempos” das coisas e dos seus contextos, dos materiais e do seu comportamento na interacção connosco, da sua textura, e em última análise da sua radical mudez. Ms não é essa radical mudez a que nos fascina no estudo, na ciência, na filosofia, na arte? E, pela sua recusa à explicação fácil, à palavra descabelada, a arqueologia tem um enorme poder e pode ser mesmo muito forte, uma experiência violenta de incomunicablidade, por nos conseguir levar à exasperação. Ou seja: por abrir os nossos sentimentos
Claro que um cada vez maior número de pessoas educadas se não contentará com “cortejos históricos” ou “reconstituições” de pacotilha, ou quaisquer demonstrações fáceis de “volta ao passado”, exigindo elo contrário o debate e contentando-se plenamente com a observação e a participação no próprio “processo de produção do conhecimento”.
O “teatro de operações” da arqueologia não é, em princípio, vedado, como o é o de uma operação cirúrgica ou de um pintor em plena laboração no seu atelier. Antes, é um teatro aberto, de enorme potencial no que diz respeito à participação, nomeadamente emotiva, dos seus actores.
E é essa, afinal, a questão mais importante: a nossa performance no sítio, a sensação de que repetimos (mesmo que em sentido inverso) acções que já ali se passaram, que recuperamos (miticamente) sentimentos de pertença que ali se geraram, na nossa cumplicidade de arqueólogos com o local e com um objectivo comum. Através dos nossos gestos e dos nossos sentidos implícitos, das breves trocas de impressões, das disputas e negociações, algo parece um “déjà vu”... e, ao construirmos, hoje, a arquitectura do local, através da escavação, estamos de facto também a construir-nos a nós, como grupo, como equipa, com um mínimo de pressupostos e de não ditos que partilhamos. Ou seja, o que dantes reportávamos ao passado, aplicamo-lo agora ao presente. Só hoje, ao ser estudado, o sítio está a tornar-se um monumento arquitectónico, está a constituir uma comunidade, a contribuir para ma certa identidade colectiva, que se impregna nos corpos, na nossa memoria, no que vamos fazer daqui para a frente. E antes, há milhares de anos, não foi também assim? É muito provável. Não estávamos cá para saber. Et c’est tout.
Ao longo da elaboração deste texto, fui-me apercebendo como a questão da “arquitectura”, vista em geral, não tem sentido (ou então tem todos os sentidos já ditos, já repisados); que o “poder difuso” é algo de muito complexo, contextual, que só pode ser analisado caso a caso; que não sei muito bem o que é “acção colectiva” nem o que são “comunidades da oralidade”, desconfiando fortemente do carácter enganador de expressões tão gerais; e que as “sociabilidades” são também algo de tão contingente e diversificado, que é sobre elas difícil elaborar uma teroria que não seja redutora. Enfim, ao longo do texto fui ficando sem tema (como se durante a noite voltassem a ser fios os tecidos que durante o dia urdia, ou vice-versa), percebendo o muito que devo estudar para poder abordar questões como estas. Caminho árduo, num deserto de referências, num cemitério de conceitos, cujas lápides,semi-enterradas, não se lêem; mas caminho não inútil, pelo menos para mim, porque não chego ao fim dele tal como parti.
Quem contempla uma extensão de areia longa fica para sempre com algo na retina: um grão que entrou, a inflamação do deserto, da sua ardência, da sua luz, num vórtice que o compele a voltar.
Essa questão – articulada, como todas, com a rede geral das nossas (minhas, pelo menos) preocupações, num saber que se procura mais na horizontalidade das conexões rápidas (a superfície do mar pode ser a imagem que exprime esse ambiente) do que na obediência servil às regras do mergulho (profundidade especializada própria da nossa cultura académica, seu mito fundador e, em boa parte, castrador) - é vital para perceber mais de 90% da “história” ou “experiência” humana, que se deu e dá “fora do texto” normativo explícito, fora da regra “universal” e abstracta, através de múltiplos modos e difusas actuações/resistências que são subtilmente ensaiados em contínuos jogos de negociação de “papéis” e portanto também de poder.
Só aliás a mentalidade delirante de um legislador idílico, iluminado, poderia imaginar alguma vez encaixar a vida dentro de um código formal: a vida (a própria energia vital) é de certo modo o que existe apesar desse código, e portanto de certo modo contra ele, resistindo a ele. Freud, Lacan, Heidegger, Foucault, Bourdieu, e tantos outros autores da cultura contemporânea, ajudaram-nos a ver esse lado “sombrio” da realidade, lado que deixa à luz - a que herdámos das velhas crenças do positivismo iluminista, racionalista e de toda uma tradição racionalista anterior - apenas uma frincha pequena por onde entrar. De facto, viu-se muitas vezes, em especial desde os inícios do séc. XX até agora, as atrocidades onde conduziram as vontades de reduzir a vida à regra, de submeter a vivência à “teoria” (de que as modernas investigações de Inteligência Artificial são, apesar do seu interesse, e entre muitos sintomas, bom exemplo).
Mas muitos ainda não quiseram aceitar essa evidência, aprender com os traumas que sofremos no século XX; até porque os seus interesses coincidem com certas ideologias tecnocráticas e tendencialmente totalitárias, que, sob forma de inovações em catadupa, e em nome da modernização e da própria democracia, tentam sempre apertar o laço em torno das liberdades, regularizando tudo, legislando sobre tudo. Um projecto delirante, mas persistente.
As crenças partilhadas, organizadas ou não sob forma de pequenas/grandes organizações religiosas, o plano das afectividades, das emoções, da interaccção quotidiana e fluida, são fundamentais para se perceber “os momentos da verdade”, os modos como realmente funcionam as sociedades nos seus constantes e infinitos “agenciamentos” inter-pessoais, institucionais, colectivos, como campos de tensão, de encontro, de diálogo, de realização de tarefas, de assunção de compromissos, de distribuição de estatutos, de distinções, etc.
Entre milhentos outros aspectos, o ser humano “atribuiu-se”, desde há milénios, a tarefa de organizar certos espaços (tendencialmente todo o espaço terrestre) simbolicamente, fazendo deles redes de circuitos e de lugares (movimento e paragem).
Aos “nós” dessas redes, aos lugares onde se evidenciam sinais de envolvimento especial, chamamos às vezes, “arquitecturas”, realidades mais ou menos sólidas, perduráveis, onde uma série de materiais e suas tensões e forças foram deliberadamente orquestrados para criar diferenciações: interiores e exteriores, acessibilidades e impedimentos, pertenças/intimidades e exterioridades, nós e eles, etc. Quer dizer, ritmos e formas diversificadas de construir tempo/espaço.
Desde o abrigo ao lugar de culto, desde o efémero ao monumental, a construção, manutenção e reformulação de espaços tem sido uma das principais formas de constituição das sociabilidades, de diálogo com os materiais e as forças ao dispor no “meio”, entendido este não como uma realidade externa aos indivíduos, mas como o universo onde eles estão incluídos e onde, colectiva e individualmente, tentam tenazmente dar um sentido habitável às suas vidas, no sentido heideggeriano.
Porém - e esse ponto é crucial - convém lembrar que também são “arquitecturas” os fios da rede, a própria rede (uma paisagem, por exemplo), e não somente os seus eventuais “nós”, e que a forma de se estabelecer um desses “fios” pode ser um trajecto, um caminho, uma vereda mais ou menos continuamente percorridos – algo por vezes de muito contingente na sua “expressão material”. Tudo é arquitectura.
Na verdade, até num campo de refugiados ou num improvisado abrigo de um “homeless” citadino podemos desenvolver uma “arqueologia” das relações dos seres humanos com o espaço/tempo.
A arqueologia, no sentido amplo, é um modo de encarar essas realidades, a partir da experiência específica de lugares e paisagens que muitas vezes são ditas “do passado” (mas, o que não será “passado” em tudo quanto vejo em meu redor?) – e nesse sentido a sua “bagagem”, a sua experiência acumulada tem muito mais a aportar ao nosso conhecimento do que frequentemente se imagina, e do que muitos dos próprios arqueólogos pensam, ou praticam.
Estes por vezes parece não perceberem inteiramente a enorme pregnância explicativa (no sentido mais amplo) da sua própria experiência, e deixam-se assim relegar para posições de marginalidade dentro dos campos de saber actuais (dominados pela ambição das aplicações tecnológicas de rentabilidade imediata ou pelos acontecimentos mediatizados), marginalidade essa proporcional a algum esbracejar inócuo que por vezes ostentam.
Os “arqueólogos” no sentido estrito, profissional, têm de compreender que são invisíveis, ou quase, para as actuais instâncias de poder e de saber dominantes no mundo, e que assim se manterão a não ser em casos excepcionais (onde o “passado” serve a propaganda), ou então e também que mudem de estratégia de actuação, quer dizer, de estatuto epistemológico e de uma postura corrente de “margem messiânica” e iluminada, auto-sustentada, e ineficaz. A nossa eficácia de saber e de poder depende da capacidade de intervir em todos os planos, incluindo, desde logo, o da capacidade de dominar minimamente o pensamento contemporâneo e de não ter receio de abordar as suas grandes questões.
Finalmente, a terminar estas palavras iniciais. As “comunidades da oralidade” (uma expressão, evidentemente, que pode induzir em erro pelo seu esquematismo), quando não são vistas como uma invenção nossa para consumo nosso (os outros), não são resíduos exóticos, “primitivos” ou “pré-históricos” em suma: somos todos nós, na vida prática. Tentarei nestas breves notas aflorar ao de leve apenas algumas das complexíssimas questões que esta postura envolve.
Acção, colectivo, individual... conceitos com longa história e a precisar sempre de aturada reflexão.
É evidentemente um falso problema e uma perda de tempo estarmos
a discutir a “questão da galinha e do ovo”, e do que terá existido primeiro, ou será primordial, se o indivíduo, se a sociedade, se o “agenciamento”, ou se a estrutura. Foi um problema fundador da sociologia e é uma velha questão filosófica: será uma comunidade basicamente um mero aglomerado de indivíduos, que entre si de algum modo “contratam” no sentido de possibilitar a vida em comum, ou tem a sociedade uma existência e dinâmica próprias, propriedades emergentes que estão muito para além dos indivíduos e do seu controlo?
Esta questão liga-se com a discutida problemática de se saber até que ponto o indivíduo é um “produto socialmente construído”, um mero reflexo deste meio artificial por excelência em que vivemos, ou se, pelo contrário, a capacidade dos agentes individuais, ou de pequenos grupos, embora variável de contexto para contexto, é apesar de tudo significativa.
Também tem muito a ver com a velha questionação, sempre recorrente, diante de outros pares de opostos, como o do inato e do adquirido, do natural/biológico e do cultural, daquilo que nos distingue dos animais e das suas “sociedades”, etc., etc. Um mundo onde é difícil entendermo-nos, harmonizando conhecimentos e perspectivas que se vão alimentando mutuamente e (re)construindo em cada um de nós ao longo de uma vida, na mira (ou miragem) de encontrar um ponto de vista próprio e sustentável.
Está bem de ver que estas questões, quando tratadas de forma abstracta e holística, sem atender à imensa variedade e complexidade do real, tendem a tornar-se estéreis, esquemáticas, sem sentido. Mas também é verdade que o conhecimento (pelo menos como nós o entendemos, ocidentais) é sempre um conhecimento do geral, no sentido de que quer distinguir o certo e o errado, tem por pano de fundo (mesmo que utópico) uma vontade de verdade, isto é, de se atingir formulações conceptuais que ultrapassem a circunstância e o descritivo, e que, num “volte face” ao concreto vivido, estabeleçam conclusões, proposições que visem uma certa universalidade, que permitam uma (pelo menos temporária) convicção de que percebemos alguma coisa.
Há um universal óbvio que nós, ocidentais (que obviamente não somos os únicos a pensar sobre este planeta, e a pensar de forma complexa... mas que séculos de colonialismo e de racismo radicaram) inventámos, que é o de “primitivo”, e um seu irmão gémeo, o conceito de tradição, ambos obviamente fazendo parte, como já tenuamente sugeri, da ideologia colonial, evolucionista, e de matriz racista (mais ou menos “disfarçada”) que foi e é ainda maioritariamente a nossa (embora o racismo esteja longe de ser um monopólio europeu, é claro). Temos de distinguir aqui, claramente, entre o que seria um discurso da nossa vitimização e de “angelização” (permita-se-me o termo) do outro, ou o seu oposto. É a desgatada questão do bom e do mau selvagem, da suposta natureza humana, etc, etc.
Todavia, em geral, o “ocidental” (passe a extrema simplicação) pensa (ou tem pensado assim, porque as coisas estão a mudar muito): os outros, em relação a mim, são imperfeitos, incompletos, situam-se de algum modo do lado da natureza, colocam-se sob a lupa do meu entendimento; eu, que me situo na cultura, nomeadamente na cultura científica e argumentativa, faço deles objecto de estudo e tiro as minhas conclusões, quer dizer ganho sobre eles um conhecimento (e um poder) que eles sobre si mesmos supostamente não têm.
Quer dizer, torno consciente (palavra mágica), e verbalizo, o que eles fazem e sabem mas não dizem; ou se dizem, não escrevem, não têm necessidade de elaborar sobre o herdado. Pois, se não escrevem, não inscrevem duravelmente uma tradição, não têm de facto, em última análise, uma história. Esse é o desígnio da antropologia, mas em geral também o de toda a cultura ocidental (contra a qual era inevitável a rebelião das outras culturas e civilizações, a que estamos de facto a assistir, como Toynbee e tantos outros autores previram).
O que é mais curioso é que muitos povos “sem escrita”, “primitivos” portanto segundo essa inventiva mitologia, tem de nós a visão deprimente de seres que não sabem nada, e que portanto, afanosamente, têm de estar sempre a tomar notas, a escrever textos, a passar a escrito aquilo que é para eles ma evidência: um “habitus”, um saber incorporado que se aprende pela experiência e que se desenvolve todos os dias, respondendo aos desígnios da acção, àquilo que se apresenta para fazer em ordem à continuidade da vida. Ou seja, afinal tal como acontece connosco mesmos, todas as pessoas improvisam continuamente, e é a essa capacidade de improvisação, que envolve sofisticada intuição, que dão maior valor. Com razão, evidentemente.
Mas a admissão pela nossa parte desta visão que os outros têm sobre nós (ou que nós supomos que têm) pode também justificar ainda um certo “racismo” nosso, sofisticado embora. Aos outros pertenceria a acção, a nós o saber, a relexão distanciada e comparativa, sobre essa acção; os outros, como não emanciparam uma “teoria”, um conhecimento escrito, relativamente à acção, também não são capazes da inovação tecnológica, ficando assim presos às rotinas herdadas, à moral vigente, ao “status quo” local, quer dizer, à tradição, à crença (no sentido pejorativo de crendice). Não abstraindo, não formalizando, ficam impossibilitados de comparar, de se descentrarem; e nesse aspecto não só estão fora da história como estão numa espécie de atopia, de local não cartografado, presos à sua razão que se não mede com a razão dos outros. Presos à crença que não “evolui” para formas superiores de elaboração.
Por causa desta ideologia, que nos é congénita, é que pensamos que os “primitivos actuais” são resíduos de formas “ancestrais” de vida (de certo modo fósseis parados no tempo, ou representando “estádios da evolução económico-social e cognitiva”), e não seres contemporâneos, modernos, como nós, como é evidente que são.
Nós de facto temos de esquecer muita coisa, de contestar muita coisa, para poder inovar, isto é, abrirmo-nos à modernidade e à história. Este complexo de ideias, que nos é intrínseco, é um operador fundamental do nosso pensamento. Não foi apenas desde o Iluminismo, ou desde a Renascença, que “inventámos” o Outro, que tivemos absoluta necessidade do outro para saber quem somos. Foi desde os antigos gregos pelo menos, como sabemos, que discutiram todas estas questões em profundidade, desde os tempos de Platão e de Aristóteles, e certamente antes. A atitude de um Heródoto, por exemplo, é sintomática.
Viajante, explorador, o europeu aventura-se longe de casa, junto do bárbaro (o que fala uma língua para ele, “emigrante”, ininteligível) para de certo modo saber quem, ou o que ele próprio, viajante, é, ou poderá ser: a deslocação é sempre uma procura de distância, de perspectiva, de constituição de identidade por comparação, de desejo de universalismo.
Por isso, também, o turismo de massas é hoje a outra face de um ocidente em crise, de onde fugiu o horizonte de sacralidade em que vivemos durante séculos, impondo-se a tecnologia “per se” e o modelo da máquina (comunicação e cálculo) com uma espécie de nova religião, a da eficiência, cuja face complementar é o exotismo.
Resta saber se essa suposta “crise” (para nós inquietante porque a sofremos na pele) não é algo de muito mais antigo e constitucional ao ocidente. Um ocidente cristão em que o Deus criador se desdobrou em três, e para completar a sua obra teve de passar da transcendência à imanência, de entrar na história e de criar um filho que “enviou à Terra” para redimir os homens e concluir o trabalho iniciado na Génese. Estamos imersos numa cultura da inquietação e do “pathos”, como é óbvio, da insatisfação e da procura.
Sei que ao escrever tudo isto (todas estas generalidades evidentes) passo a correr sobre problemas teológicos e filosóficos que são extremamente complexos e têm muitos ângulos sob os quais se podem perspectivar. Porque, por exemplo, é óbvio que o não ter “feito” o mundo “perfeito” pode ter sido um desígnio superior de Deus para nos deixar espaço de manobra e de acção, para permitir a história, isto é, para nos deixar descolar da tradição e da sua tutela (que subjuga o primitivo, o pagão) e nos permitir experimentar, inovar, mesmo à custa do erro (do pecado). Para passar do local ao geral, do múltiplo ao uno, da busca à unidade, da diluição da vida à salvação, à redenção da verdade. A verdade como objectivo é sempre uma pretensão de poder, uma esperança de domínio. Mas qualquer atitude de dúvida e de diluição é, na nossa cultura, logo interpretada como uma “concessão ao inimigo” (que pode ser o “sistema capitalista”, ou o outro determinado em destruir-nos porque está convicto de que só ele possui a verdade, de que nós não passamos de pagãos ávidos de prazer).
A nossa cultura está intimamente ligada à ideia de história e de tempo como criador de novidade, como radicalmente imprevisível (apenas, como excepção, para os crentes na – para mim duvidosa - tranquilização escatológica de um Juízo Final em que tudo se resolverá), mas aberto ao arbítrio do ser humano, capaz de se libertar da satisfação das supostas “necessidades básicas e universais” (reificação da “biologia”), da necessidade “instintiva” a que os animais (e, de certo modo, todos os que estão próximos deles, os que têm “pouca cultura”) estão irremediavelmente sujeitos. Ou seja, os animais “sabem”, os “primitivos” sabem, mas muitas vezes, para não dizer sempre, não sabem que sabem, não elaboram conceitos e argumentações sobre isso, pois ou ou estão desprovidos de linguagem (animais), ou estão desprovidos de escrita (seres humanos). Quando muito, os humanos sabem que sabem mas de uma forma sub-consciente, não oralizada, mesclada com a acção, e portanto é um saber fraco, porque não se pode autonomizar e comunicar de modo formal, a distância, a grande escala. O “europeu” (com as suas extensões no novo mundo que colonizou) está em geral convicto de que ao nível local só acontecem rotinas e o cumprimento de normas implícitas, ou seja, não há reflexão e inovação, que tem de vir de fora: era a ideologia do histórico-culturalismo.
A acção colectiva, nas comunidades orais (“pré-históricas”, “selvagens” ou “bárbaras”, anteriores ao Estado e à civilização, que é o que para nós, ocidentais, tradicionalmente caracteriza e permite a pessoa humana, o verdadeiro “homem “culto” e polido) teria pois de ser concertada (e constantemente renegociada, se não fosse a tradição, as normas passadas de geração em geração, factor de estabilidade) segundo regras diferentes da nossas.
Se bem que ainda até há pouco tempo a maior parte das pessoas, mesmo no ocidente, não soubesse ler nem escrever, e que a superação de tal situação fosse essencialmente um desígnio dos estados-nação modernos (preocupação que hoje prosseguimos), a escrita, a partir do momento em que se desenvolveu, foi um instrumento capital na constituição do poder político, da divisão da sociedade em governantes e governados; e certas formas históricas pré-modernas desse poder emergente do Estado e do Império (hoje à escala global, pela primeira vez) não precisavam (antes bem ao contrário) da inserção da maior parte dos indivíduos nessa ordem discursiva.
Bastava que tal estivesse controlado por elites para tudo mudar em relação aos tempos em que ninguém possuía tal “tecnologia”. O “saber ler, escrever e contar” da escola básica, extensível a todos os cidadãos (os antigos súbditos), é a outra face de uma política (e de uma polícia, no sentido mais geral, seu braço armado) que tudo integra, que traz à superfície a totalidade dos seres humanos (aliada desde o séc. XIX à fotografia, à identificação, ao cadastro, ao encarceramento, à estatística, etc.) dividindo e classificando de uma forma nova, estabelecendo sociabilidades até então insuspeitadas. Para muitos criando, de facto, as primeiras autênticas sociedades, abrindo a história ao insuspeitado poder do ser humano, que atingiu um dos seus ápices “científicos” no nazismo.
Mas os problemas, tal como foram inicialmente elaborados no ocidente, seriam evidentemente insolúveis, porque mal postos, aos nossos olhos actuais: como todos bem sabemos não existe essa dicotomia entre “The west and the rest”, entre uma “cultura superior” e outras inferiores, ou entre uma cultura realmente eficaz mas “espartana” (a nossa) e outras paradas no tempo mas “felizes” (pelo menos nas suas elites - é aqui que entram todas as mistificações românticas do “orientalismo”, etc, bem conhecidas).
Há e houve, claro, inúmeras, infinitas, formas de habitar em sociedade (e de conceptualizar o “meio”) entre os seres humanos, sendo tarefa do arqueólogo, do antropólogo, do historiador, entre outros, precisamente a de estar atento a essa diversidade, tanto mais que estas disciplinas não são hoje apenas praticadas por ocidentais, mas por uma grande variedade de “pensadores contemporâneos”.
E não só: porque falar apenas de “pensadores” (palavra que acarreta o seu quê de ridículo, convenhamos) é muito redutor. Há muitas formas de racionalidade, de acção intencional, de comportamento sofisticado e inteligente, de “know how” que não apenas a europeia ou as das “grandes culturas” que passaram parte do seu saber a escrito.
Aliás, num certo sentido, de facto, passar a escrito é reduzir, é submeter as coisas e a vida à ordem da textualidade, e esta a uma discursividade que depois fica presa do texto, depende dele, da sua linearidade (desconhecida por exemplo nas “artes rupestres”, onde os motivos vogam, em geral, numa espécie de vazio, como se dançassem sobre o suporte ou emergissem do seu interior). A textualidade está evidentemente ligada à história, à narração/narratividade, a uma certa forma de conceber o tempo em que fomos educados.
A pessoa “letrada” de certo modo já fala no dia a dia de forma diferente, porque, de tanto texto que leu, já diz “textos” quando se exprime no quotidiano, já não fala como os outros, não tem a mesma postura, a mesma gestualidade. Aliás, é muito interessante ver como, no quotidiano, as pessoas menos letradas (e agora os jovens, anunciando uma nova cultura da “oralidade”) comunicam entre si reproduzindo discursos directos (e vai daí eu disse, e ele respondeu, etc., etc., tudo acompanhado de uma gestualidade específica para cada caso e indivíduo), sem fazerem a síntese, a redução da situação vivida no abstracto e no modo da terceira pessoa, ultrapassando a narração da relação a dois, a performance tal como ela supostamente se deu no teatro quotidiano.
Claro que até certo ponto está implícita na textualidade, na narratividade, uma ilusão de poder (resta saber se todo o poder não é, em última análise, a sua ilusão, a sua encenação), pois linearizar é reduzir o real imensamente, uma vez que na acção diária ninguém, desde o camponês até à pessoa que escreve um artigo, faz um trabalho puramente “intelectual” – a mente, como entidade isolada, é uma abstracção enganadora, e o texto, pelo simpes razão de existir, de cero modo “mata” o que diz, como os poetas sabem bem. Ou os actores de teatro. Ou os artistas que procuram recuperar, pela performance, algo de supostamente “perdido”, uma realidade que fazia sentido na e pela acção, com o envolvimento total e sempre imprevisível do ser (a improvisação), sem o texto a mediá-lo. Tentando ultrapassar aquela consciência que temos desde Foucault e outros, claro, de que quando falamos, ou actuamos, quer dizer, quando produzimos sentido, ele nunca sai de um vácuo, mas antes se inscreve numa ordem que evidentemente nos ltrapassa, a que os psicanalistas chamam simbólica, e articulam com a linguagem, o veículo mesmo da ambiguidade, “para bem e para mal.”.
Enunciar algo, sobretudo sobre um suporte e com a intenção de isso ser uma “mensagem” perdurável, é sem dúvida imensamente empobrecedor, num certo sentido. Por isso a comunicação entre as pessoas se não reduz a falarem umas com as outras ou a escreverem umas às outras, passando a maior parte dos sentidos e das transmissões por outras vias que qualquer um de nós conhece “intuitivamente”, e a que parcialmente aludi acima.
As afectividades passam pelas “pequenas sensações” subtis, e as afectividades são o lubrificante da comunicação, do saber, da incorporação, do sentido de pertença, da sensação de nos sentirmos a habitar um mundo com um mínimo de conforto, quer dizer, de adequação entre expectativa e concretização, a todos os níveis. Escusado será lembrar que essa “intimidade” varia de pessoa para pessoa, de tradição cultural para tradição cultural, e que o ser humano, cada ser humano, em última análise, na sua radical individualidade, resta um mistério (para si próprio e para os outros). Esse mistério, ou desfasamento ou desadequação entre o aparente e o supostamente verdadeiro, é o motor da própria vida.
A arte, a ciência, a filosofia, são expressões maravilhosas porque nos permitem uma certa criatividade individual ou de equipa, uma diversificação e um registo, mas estão muito aquém, ou, se quisermos, são indissociáveis, da vida de todos os dias. A própria comunicação desses saberes passa por práticas variadas onde o que nos marca, o que se nos inculca, é sempre imprevisível, e variável de sujeito para sujeito, de momento para momento.
Tradição, comunidade, identidade colectiva são temas muito debatidos, muito discutíveis, e traduzem preocupações que estão mais do lado dos que querem administrar (por exemplo, legislar e governar dentro dos estados-nação) do que da maioria das pessoas. É evidente que quando se debate muito esses temas, é porque estamos num momento de alguma “crise”, perante sinais de uma transição paradigmática, perante a emergência de um grande número de novas formas de sociabilidade, perante um mundo em mudança acelerada – um mundo, no momento actual, fortemente globalizado, onde cada localidade, cada “povo”, deixou de ter uma identidade por isolamento, digamos assim, e tem necessidade de se identificar e de defender a sua identidade, a sua especificidade, precisamente por estar conectado com a realidade global.
A preocupação com a identidade (individual ou colectiva) é sempre um sintoma de quem está à defesa, na procura de manutenção de uma diferença (real ou construída, ou ambas as coisas ao mesmo tempo... entramos aqui num domínio onde as utopias tem forte poder mobilizador), de um desejo de “autoridade” assertiva que traduz (ou desvela) o seu contrário, a fragilidade da própria afirmação.
Alguma vez houve alguma acção humana que não fosse em última análise também radicalmente colectiva? Penso que não. Estas dicotomias entre o todo e as partes, e qual era a origem, ou matriz, se o todo, se as partes que o compõem, não têm evidentemente sentido.
Nós não nascemos no vácuo, e muito antes de podermos ter domínio sobre nós, estamos, num processo que a psicanálise mostrou bem, a incorporar, como nossas, muitas coisas que vêm do “meio”, mas um meio de princípio para nós fragmentado e incompreensível. Um universo do qual também fazemos parte, disso tomando consciência progressiva, à medida que a nossa “identidade” se concreciona e que os vários “traumas” por que vamos passando nos vão constituindo como sujeitos mais ou menos “autónomos” . O que cada um acrescenta à realidade, mesmo os grandes inventores, é minúsculo em relação ao enorme património da história da nossa espécie, sem dúvida singular neste aspecto incontornável.
Por isso haveria que erradicar (se a própria linguagem que usamos no-lo permitisse) tal dicotomia de indivíduo - sociedade, fundindo a sociologia e a psicologia (ou as questões que sob elas historica e convencionalmente se albergam) sob a égide, não se um saber ambicioso e envolvente, mas de conhecimentos transversais capazes de darem, antes do mais, conta do particular.
Ideias gerais interessantes, sugestivas, qualquer um pode eventualmente ter, desde que possua uma certa preparação, alguma competência; essa competência, ou vontade de se basear em suportes sólidos (dominar bem os protocolos da sua disciplina antes de se aventurar em terra incógnita) é compreensível e indispensável, e em certas pessoas é uma verdadeira obsessão.
Mas nunca nenhuma pessoa excessivamente prudente (com a cabeça bem arrumada, como se costuma dizer, e valorizar muito a nível académico) deixou obra que de facto perdure. Aportou algumas informações sólidas, c’ est tout.
O que é importante, crucial mesmo, é conjugar isso com a maleabilidade de aplicar o geral ao particular e vice-versa, alterando um e outro constantemente em função da experiência de interacção, como aliás toda a gente faz todos os dias na vida prática: saber improvisar.
O que é vital é trazer para o campo do saber a própria indecidibilidade, fluidez, e “abertura” da vida real – o que nunca vi que se pudesse fazer melhor do que através do ensaio, com toda a liberdade que comporta (para além da prática artística, está claro; estou-me a lembrar por exemplo do “capricho” musical barroco). Não se trata de “humanizar” o conhecimento com umas decorações “humanísticas”: trata-se de subverter hábitos e práticas, se é que essa utopia, essa autêntica revolução, pelo menos a (longo) prazo, tem ainda sentido. Creio que sim, senão abandonava-me ao fluxo da vida corrente, ou seja, à gestão do que me foi imposto ou por mim incorporado (quando muito sofisticando-o), e abdicando de uma voz própria. Sujeito passivo, como se diz na linguagem fiscal.
No fundo, trata-se de criar sensos comuns, não tecnocráticos, onde toda a tecnologia (mesmo a filosófica, em toda a sua sofisticação e beleza) não esteja independentizada como um conjunto de funções ou tarefas que se cumprem mais ou menos bem.
Sim, a matematização do mundo, a sua formalização sofisticada pela ciência, pela arte, pelo maior apuramento conceptual possível, é fundamental para o destino da humanidade.
Mas sobretudo temos de criar e aprender (duas faces da mesma moeda) decisivamente novas formas de acção colectiva, não para sacrificarem ainda mais os indivíduos (como fazem as nossas sociedades altamente burocratizadas), mas para permitirem a sua emancipação de modelos hedonistas e individualistas que fecham o ser, não o abrem. Distinguir a desejável liberdade, autonomia, individuação (um pensamento e uma acção da felicidade, que é sempre uma experiência onde quem conhece e o que conhece estão implicados indissoluvelmente, diria amorosamente), do individualismo egoísta e tacanho na sua aparente sofisticação: porque querer construir-se sem os outros, sem a relação com os demais, objectivando práticas eficazes ou autisticamente perfeitas, é sempre uma forma de violência, de autoritarismo. Mesmo de brutalidade, desde logo contra os outros que há em mim, contra a liberdade fundamental que é a de eu me saber alguém que não sei bem quem é – e de poder viver assim pacificamente, não como marginal, mas como elemento quiçá imprescindível. Escusado será dizer que este “eu” que aqui se enuncia é um colectivo, é aplicável a qualquer um de nós, pelo menos na perspectiva daquele que escreve (o que assina este texto, ou junta o seu nome ao mesmo).
Dito tudo isto, é preferível estar aqui, em qualquer ponto do mundo onde se usufrua de condições de paz, segurança, informação, isto é, na dita “civilização” – do que na situação da maioria dos meus contemporâneos. A questão é que eu próprio (falo de um eu colectivo, refiro-me a qualquer um de nós) quero ir mais longe na compreensão (não meramente conceptual, mas incorporada, sentida) do que são formas diferentes de estar no mundo contemporâneo; como o quer também o “índio” amazónico ocidentalizado, aculturado, que já compreendeu, após séculos de destruição, que ou se defende ou é liquidado, já que formas de vida que lhe eram constitutivas irão inexoravelmente desaparecer.
Toda a gente já compreendeu: a “falta de escrúpulos” – algo que faz parte intrínseca do espaço público quando chega à dimensão que hoje atingiu, e não é produto de qualquer “maldade” intrínseca a essa gente - dos principais actores ou mediadores do mundo contemporâneo (políticos, representantes de grupos económicos, estrelas do “entertainment”, etc.) vê-se na televisão, lê-se nas expressões deles em toda a parte. Já ninguém, senão os fundamentalistas, se deixa assim tanto mobilizar por um cartaz de propaganda: ou melhor, é mobilizado, e percebe isso, mas deixa-se ir de forma irónica, como uma criança que não só aceita, mas procura o jogo. Um efeito de cansaço, apenas?... Não. Um melhor conhecimento, mesmo intuitivo, por parte das pessoas, do que é a economia simbólica da política – um jogo puro e um espectáculo para os tele-receptores.
O que mobiliza mais profundamente as pessoas, então?
O que as mobilizaria há quatro ou cinco mil anos, nas “colectividades” que estariam por detrás dos espaços que, como arqueólogo, eu interrogo? Que contributo posso eu dar, nessa qualidade (a de arqueólogo, de poeta, de ensaísta se quisermos – nunca de especialista de outras ciências, ou de filósofo, que não sou)? Qual a “mais-valia” com que posso contribuir para o diálogo desta mesa-redonda, justificar a minha própria presença aqui, pedir ao leitor que c ontinue a debruçar a sua atenção sobre estas notas?
A assunção, desde logo, de que fui educado no verbo, na palavra, no saber escrito, mas que não quero ficar por aí, preso nessa armadilha. E a certeza de que, por mim só, nunca chegarei a lado nenhum. A partilha – sempre de algo que, por mais que nos esforcemos, não passa de um esboço do que tínhamos imaginado fazer - é uma forma absolutamente essencial não só de transmitir, de informar, mas de aprender e de se constituir como ser humano em todas as dimensões, procurando sempre a harmonia e a “maîtrise” de si mesmo que constantemente (e ainda bem que assim é...) nos foge.
Se todo o indivíduo é um ser activo, se confunde com a sua acção desde que nasce até que morre, se ele é até certo ponto “um produto” óbvio de um colectivo onde é gerado e se desenvolve, ele nunca se limita, em nenhum caso que eu conheça, a reproduzi-lo.
O ser humano não é um autómato, uma mente pensante sobreposta a uma fisiologia de necessidades ditas básicas, e para sobreviver necessita de aprender, em qualquer sociedade. Tal processo de aprendizagem é complexíssimo, também nas sociedades ditas “da oralidade”, podendo ou não passar por limiares, por ritos de iniciação, por fases ou momentos formalizados de ruptura com a situação anterior (“morte”, limbo, renascimento) que existem na biografia de qualquer indivíduo, quaisquer que sejam as formas de sociabilidade vigentes.
Por isso, desde que diluamos (tanto quanto nos permite a “gramaticalidade” da nossa linguagem, coisa dificílima se não impossível) a dicotomia individual-colectivo, tanto podemos partir do indivíduo, como da comunidade, porque os dois são indissociáveis, e não apenas realidades justapostas. O discurso, desde logo, é que nos obriga a separá-los.
Como desligar a mente da acção, o projecto da execução, também isso não tem na verdade sentido: eu não aplico na minha experiência diária, conscientemente ou não, programas aprendidos, como se fosse um computador (mesmo de última geração). Faço esboços, ensaios, mobilizando a experiência anterior tanto quanto me é viável, até que me decido por uma solução, enquadrado por todo m contexto, pressionado pelo tempo, e orientado pela intuição. É assim que, na prática, e salvo erro, basicamente “funcionamos”. Só no momento da execução muitas questões são resolvidas, pelo que não há uma independência da “teoria” em relação à “prática”, mas uma imbricação constante das duas e uma mobilização do indivíduo e da memória social ao mesmo tempo. Só conceptualmente são distinguíveis. Estas distinções são fundamentais para pensar (senão ficávamos num sincretismo primário), mas podem ser armadilhas temíveis sempre que queremos partir dos esquemas para a realidade, da “perfeição” da “teoria” para a incompletude da “prática”, da vida real.
Por isso é que o nosso ensino, às vezes até muito tecnocratizado (suprema utopia, ingenuidade, ou perversidade, a de pensar que a informática, por exemplo, é o nosso agente salvador...), funciona genericamente mal, porque não há interacção entre as pessoas envolvidas, com se supõe existir em comunidades tradicionais, de mais pequena escala, ou como se queira chamar-lhes. É esta vivência (em que saber e saber-fazer se confundiam) que hoje, na medida do possível, queremos (a partir de outro patamar conceptual, naturalmente) recuperar. Voltar aos “materiais” de todo o tipo e trabalhá-los em múltiplas combinatórias, numa liberdade a-disciplinar antes insuspeitada. Por isso é que as crenças nos interessam, por isso é que procuramos “recuperar” a intuição como um valor de conhecimento, e não como algo recalcado e a evitar.
Tudo está de facto, e como sabemos, espartilhado no nosso ensino (mesmo o dos países mais “desenvolvidos”) em “disciplinas” que não correspondem muitas vezes aos problemas reais, à sua complexa combinatória, à contemporaneidade dos modos de estar e agir, que se caracteriza pela liquefacção, pela fluidez, pela interacção. O pensamento de hoje é nómada, abomina a escolástica, no sentido vulgar deste termo.
Assim, aqueles sistemas de aprendizagem já não servem inclusivamente as elites (económicas, as verdadeiras), e por isso é que estas os querem reformar a todo o custo e provavelmente ainda para formas mais tecnocratizadas, mas que aparecem como racionalmente irrefutáveis. Vão no caminho certo, ou no caminho errado? Claro que isso depende do ponto de vista, de uma política. Como escrever estas palavras, por muito inócuo que pareça, é também uma forma de intervenção política, inerente a toda a acção humana (o que não significa que mude qualquer coisa por causa disso – pode até servir muito bem o “status quo”).
Mas, como era a acção política antes da pólis, antes da escrita, antes do Estado? Esse é que é o meu problema, eu que me recuso a ver a história como um processo que conduziu dos gregos (ou dos pré-socráticos, ou até, para dar um grande salto para trás, dos primitivos símios) até nós. De facto, tento evitar qualquer messianismo, mitologia, ou visão abrangente e totalizante (totalitária) que “explique tudo”, como é evidente que – sob a forma de nostalgia e sob a roupagem de ciência - está por detrás de grandes autores incontornáveis como Marx, Freud, ou Lévi-Strauss) (ver Steiner, op. cit, 2003).
Ser um “pré-historiador” (permita-se-me a académica classificação), um antropólogo, um poeta (tudo isso está a fundir-se; cada vez mais, no futuro, as pessoas vão poder ser “coisas novas”, entidades fluidas e mescladas - sabendo-se que “o futuro” é sinónimo de presente), é (tentar) voltar a juntar o que está separado no discurso corrente e apreendido no ensino escolástico tradicional, que foi o nosso, o da geração actual de formadores, de professores. Estamos provavelmente nos antípodas das formas de transmissão dos conhecimentos que a maioria das sociedades humanas “adoptou”, apesar da sua infinda diversidade.
É ser contra-intuitivo, não tanto fugindo à nossa lógica de ocidentais (isso é impossível, partimos sempre de um ponto de vista), mas, seguindo a própria lógica dela – abrindo-a, tentando transformar o incompreensível em algo de compreensível, e em última análise o confronto violento em simples “confronto” (naturalmente, “pacificar” o debate, dirão os críticos, é sempre fazê-lo a partir de uma posição de poder... mas os críticos são indispensáveis!). Porém, com a certeza de que estamos hoje em diálogo com pessoas de todo o mundo, as quais, obviamente, não pararam na história, mas, a juntar à sua tradição local, aprenderam a nossa maneira de pensar (globalizada) para poderem lidar connosco no mundo contemporâneo – isso é crucial.
Somos todos multi-culturais, se quisermos aceitar a palavra, desde o aborígene australiano ao sofisticado professor de filosofia do MIT. Fazemos experiências de vida diferentes do passado. Cruzamos a nossa preparação - num domínio específico para que a investigação nos encaminhou (e muitos “híbridos” estão a surgir, não necessariamente maus) - com outros, às vezes inesperadamente para nós, pelo menos aqueles que temos acesso à escolaridade e a formas minimamente dignas de vida. Mas sabemos que tudo está permanentemente em desequilíbrio, em miscigenação... e que isso sempre terá acontecido (a história “lacada” só aparece na mente doentia do pseudo-historiador), só que hoje está a acontecer no espaço de tempo da minha geração, a uma rapidez fulgurante.
Qualquer ser humano, qualquer forma de sociabilidade, qualquer comunidade procura um sentido para a vida, para a acção individual e colectiva. Consciente ou inconsciente, esse desejo de sentido (de se sentir “at home”) está sempre no nosso horizonte. E esse sentido não é abstracto, ele ancora-se numa experiência sensível, subtil, sempre em mutação e a responder a desafios. O novo e o inesperado são de sempre, não apenas de hoje. O passado não é uma coutada para domesticar com meia dúzia de sítios expostos e de histórias inventadas por forma a entreter visitantes. O passado (a arqueologia, ou genealogia das coisas), tal como o presente e o futuro (são todos modalidades da consciência presente) são felizmente realidades sempre em aberto, onde evidentemente se exercitam um conjunto de práticas interrogativas contemporâneas.
A verdade e o desejo estão muito associadas: sabemos quanto o seu atingir é utópico, mas precisamos desse horizonte e completude (“fulfillment”, “jouissance”) para avançar, precisamos do impossível, do sonho, da ficção, da fantasia que nos convença, que nos apanhe, com a qual nos confundamos na nossa crença profunda, sem o que perderemos a alegria de viver, a esperança do prazer.
Quando em história ou arqueologia falamos de “reconstruir” tal passado estamos apenas a usar uma metáfora cómoda, como eu poderia reconstruir a minha história pessoal, a minha biografia, sabendo que isso é sempre e necessariamente (e afortunadamente) uma ficção, mas uma ficção com aspectos verificáveis por outros (não posso dizer que me chamo Maria ou que nasci em 1970, porque algo que contradiz isso está consignado no meu bilhete de identidade e noutros documentos, está escrito e fotografado, quer dizer, passou para o lado do que é aceite como irrefutável). Uma convenção também, em última análise, é claro. Sei que há autênticos sósias meus (aspecto físico semelhante) e pessoas com o meu nome. De forma que ainda a melhor maneira de me identificar á capaz de ser o cartão de contribuinte, ou (nos EU, creio) a carta de condução...
É isso que distingue a ficção “científica” (a ciência, o conhecimento cumulativo, verificável – aliás, um problema também mito interessante para o direito moderno, em que a confissão ainda é a melhor forma de prova... mas quem e por que é que confessa, e o quê?...) de outras: é que ela visa uma forma de verdade que está do lado do verificável por terceiros, enquanto que a arte visa uma forma de verdade que deve ressaltar da interacção imprevisível entre o objecto produzido e o fruidor ou receptor. A confirmação aqui é da ordem da comunhão de algo que não é definível ou formalizável como na ciência, mas não deixa de apelar a um fortíssimo sentimento de verdade.
Algumas pessoas deviam perceber uma realidade tão evidente como esta, em vez de andar sempre a dizer banalidades contra o que entendem ser o desconstrucionismo pós-moderno. Heidegger ou Derrida desconstruiram, sim, numa profundo sentido de ultrapassar as contingências do “déjà vu” ou “déjà dit”, isto é, para de facto construir algo de “novo” (mau grado o esgotamento da palavra). Lacan ou Freud ainda incomodam hoje (apesar da domesticação a que a psicanálise foi em muitos lados sujeita) porque a sua filosofia é perturbante para a ordem estabelecida - subverte a moral tradicional tendencialmente até ao seu âmago. Ora, essa moral tradicional convive bem, em muitos casos, com a mais moderna tecnologia...como é evidente. E isto apesar de podermos sempre perspectivar as “grandes narrativas” modernas, e as suas contemporâneas “desconstruções”, como manifestações de uma velha aspiração ao absoluto, deixada com a “morte de Deus”, expressão nietzschiana que, como refere Steiner, muitos interpretaram apressadamente.
Como se pode tentar orquestrar uma acção colectiva (e qual o interesse ou motivação que pode ter isso), sem recorrer a uma lei escrita ou a métodos coercivos legalizados, como acontece nas sociedades estatais-burocarizadas dos últimos cinco mil anos (que, todavia, só agora se estão a estender a todo o planeta)? Como é possível o próprio sentimento de “comunitas” a unir um determinado grupo de população? O que faz de cada ser humano alguém que, de um modo ou outro, procura equilíbrio com os seres humanos do seu grupo, mas também com os de grupos alheios (cvizinhos ou longínquos)? Quais são os esquemas de constituição de identidades, de sociabilidades, de crenças em algo que ultrapassa cada ser? Entramos num mundo extremamente subtil.
Dizia-me uma vez um colega antropólogo que, estando no estrangeiro com uma bolsa, e sentindo saudades de Portugal, tendo ido lá jogar a selecção nacional se sentiu estranhamente surpreendido consigo próprio ao virem-lhe as lágrimas aos olhos de comoção – ele que nem gostava propriamente de futebol.
Esta questão da identidade, da necessidade intrínseca que temos de nos identificar com “mitos” – quando não facilmente explicada pelos chavões da tradição cultural, ou do estruturalismo, etc. - é que é um dos nossos principais problemas de arqueólogos. Mais uma vez, a questão tem a ver com o leque de possibilidades que somos capazes de imaginar (a nossa “cultura antropológica” incorporada) em conexão com os materiais de que dispomos, e que reportamos a um determinado espaço/tempo.
Não se tem dado a devida importância à imaginação na “construção científica” – conota-se a imaginação com a literatura, de que os cientistas, auto-proclamados tal, têm horror (enquanto cientistas, como e óbvio – há muitas pessoas que se exprimem e realizam numa multiplicidade de planos, e isso só tende a ampliar-se). O que é um disparate, uma vez que, com sabe todo autêntico bom cientista, as grandes descobertas paradigmáticas partiram de intuições, da “genialidade” do seu autor, sem descurar evidentemente o facto de que não há descobertas a partir do nada (pressupõem sempre uma herança e uma comunidade, uma equipa muitas vezes). O indivíduo só, como hoje a ideologia mercantil generalizada propugna, não existe nem nunca existiu. Nós nascemos obviamente inscritos num sistema que nos é muito anterior, e que procuramos adaptar a nós, à medida que nos adaptamos a ele.
Não devemos dividir, como realidade universal, a acção colectiva “produtiva”, e a acção colectiva ritual, o sagrado e profano, como fazem autores como Mircea Eliade e outros (embora tendo sempre a prudência de advertir que os dois aspectos estão continuamente imbricados na vida humana).
Isso – essa dicotomia que pensamos, mas não praticamos - é um produto (simplista) do pensamento utilitarista corrente contemporâneo. No mundo humano, mundo do simbólico se quisermos (apesar de toda a prodência que também e preciso ter com tal conceito), tudo é simultaneamente funcional e ritual, quer dizer, as coisas só funcionam, os “recursos” (palavra aliás tão redutora quanto usada até à exaustão: tudo é recurso, tudo é património, tudo está colonizado pela mercadoria: como diz Agamben, o capitalismo ocupou até a nossa capacidade de profanar) só se utilizam, as pessoas só praticam acções cuja “eficácia”, cujo “sentido”, estejam integrados numa ordem geral, mesmo que seja para a contestar ou tentar criar uma nova ordem, ou mesmo que tal eficácia seja vista de uma forma diferente da da ciência actual, ou nos pareça utópica ou imaginária.
Isto é óbvio, não é preciso ter lido as obras de Victor Turner ou inúmeros outros autores sobre o ritual e assuntos conexos. Mas, por exemplo, o livrinho “Profanações” daquele filósofo italiano (Lisboa, Cotovia, 2006) é mesmo vital para esta problemática... como aliás toda a sua perturbante e acutilante obra.
Os seres humanos precisam de viver não apenas num universo de imagens (no sentido mais amplo, fenomenológico e psicanalítico do termo – estou a lembrar-me por exemplo de Jacques Lacan, onde entra toda a nossa experiência de seres mergulhados no mundo), mas também de o organizar dentro de um quadro explicativo, dentro de uma “ordem”, que por convenção designo simbólica (inspirando-me de novo em Lacan). Essa ordem está povoada de desejos e de fantasias (“pelo sonho é que vamos”, dizia Sebastião da Gama), sempre numa recusa da morte e da nossa radical finitude. Mas essa recusa e esse ostracismo dos “mortos” é tipicamente ocidental, e não se pode generalizar facilmente, como nos ensina a antropologia.
De facto, a morte só se apresenta como algo que afasta o indivíduo da sociedade, que o faz desaparecer, que não tem, por assim dizer, remédio, na nossa sociedade ocidental laicizada. O morto, mesmo que adstrito a um lugar físico, a um sítio onde se possa ter a ilusão de estar perto dele, parte para sempre. Quer dizer, a nossa morte, no ocidente, é dupla, porque temos a consciência de que só na nossa memória a pessoa sobrevive, como aliás já em vida só na nossa imaginação muitos seres existem, e apenas episodicamente (nomeadamente em ambiente urbanomoderno, mediatizado e anónimo).
Partimos então de uma experiência original na história - vivermos sem crença num “post mortem”, e quando refiro essa ausência de crença incluo os seguidores ou “fiéis” da religião cristã. De facto, por exemplo, achamos fundamentalista a frase de alguns extremistas islâmicos que dizem que “nós gostamos da morte como vocês gostam da vida”, mas, com essa frase (e por isso é que ela, como propaganda, é eficaz), em todo o delírio e desespero que revela, eles estão a “acertar na mouche”, a tocar num ponto sensível do ser humano laicizado ocidental.
Porquê? Porque estão a dizer que para eles esta vida nada vale em comparação com a vida do além. Certamente há ainda muitos fundamentalistas cristãos que subscreveriam isso (bolsas de resistência que apenas são reflexo do universo mais geral), mas a tendência geral não parece essa, na sociedade que há séculos se laicizou, e desembocou finalmente na fase hedonista de consumo como modo estrutural de existência.
Os indivíduos aproximam-se da religião, no ocidente, cada vez mais por razões muito individuais, muito íntimas, homólogas das que as levam ao consumo generalizado da vida (pessoas, bens, serviços, experiências), dentro da tal sociedade hedonista, obcecada pelo prazer (ou por ter – e se possível mostrar - o prazer em ter prazer; o olhar do outro, mesmo que invejoso, comprova e certifica o nosso prazer) em que vivemos.
A experiência religiosa é tendencialmente de justificação individual, aqui. Trata-se de um “diálogo sem intermediários”, e tanto mais exigente quanto a cultura da pessoa e o seu grau de “refinamento” (estilização, distanciação em relação ao vulgo, etc.) pessoal. Não se trata, segundo uma antiga tradição, e como acentua Agamben (op. cit., v. cit. inicial) de nos ligarmos a algo (em última análise, Deus), mas de o pormos à distância, atitude só eventualmente superável pelo que ele chama “negligência” (não é bem indiferença), que parece ser efectivamente tomado posse, cada vez mais, do mundo contemporâneo ocidental, obviamente com a religião do capitalismo.
É em função de uma vida feliz aqui (em que os indivíduos procuram o gozo, no sentido psicanalítico) que as pessoas cada vez mais querem viver, e não têm grande “confiança” em reportar esses prazeres, ou satisfações, ao paraíso, futuro incerto e discutível, numa escatologia para místicos que faz sorrir o cidadão comum - a não ser que seja extremamente ingénuo. Seja como for, pelo sim, pelo não, há que gozar o mais possível na terra, nem que seja mergulhando num convento e na sua disciplina, ou devotando-se inteiramente aos outros.
Pois mesmo não querer nada, despojar-se de tudo, ou votar-se à disciplina total, tornou-se uma idiossincrasia muito particular, que sabemos (basta ler um bocadinho de psicanálise) motivada pelo desejo, de facto, de ter tudo. É uma ambição desmedida do ego, na sua fantasia de autonomia completa: mesmo sem nada, sobreviverei; mesmo apesar de todos os sacrifícios, atingirei o êxtase (místico?) nessa privação.
O amor dito livre, “hippy”, dos anos 60 (a utopia da minha geração) tinha, sob a sua face de “libertação de tabus”, muito disso: os homens passaram a usar cabelo comprido como Cristo (como a imagem que dele se generalizou), as mulheres seriam uma espécie de Marias Madalenas, tudo isto num cenário idílico de “imersão na natureza” (imagens frequentes de nudez perto de água, êxtase em grandes festivais ao ar livre) e de regresso ao éden que faz lembrar os rituais do baptismo primitivo. Claro que foi tudo absorvido pelo consumo e pelo mercado, multiplicando-se como hidra em produtos para todos os gostos, modos de vida/acção/contemplação, exotismos, orientalismos, músicas alternativas, rituais diversos, enfim, a parafernália conhecida, que não pára de crescer e de se ramificar.
Aliás, o ser humano parece ser feito de uma multidão de paradoxos e contradições (permita-se-me o deslize para uma certa generalização talvez abusiva), e isso aparece de uma forma muito desvelada no ocidente, em que as pessoas cada vez vivem mais no ciclo infernal da alternância: o tédio (trabalho, rotina, frustrações particulares e familiares, até as férias se tornam para muitas pessoas um ritual obrigatório onde pressentimos o seu “desencanto do mundo” sob a euforia encenada) e a procura de consolo sob formas que tendem a ser extremas, ou pelo menos a conheceram momentos de paroxismo.
Há uma falta essencial, e esse é o preço que pagamos pela negligência do “afastamento de Deus” – o qual, de um modo que pode parecer paradoxal, nos permitia contactar intimamente com ele - ou seja, pela nossa consciência de pequenez, pela ferida narcísica que decorre de sabermos que nos encontramos num universo onde podem existir milhões de planetas como o nosso a distâncias inatingíveis, e que estamos aqui porque, por razões em parte fortuitas, descendemos de outros símios por sinal muito parecidos connosco.
Esse modelo longínquo que nos alimentava apagou-se na poeira do espaço sideral: ficámos sós no ciclo infernal das suas imagens, condenados à nostalgia de dizer a sua falta, de perguntar por que nos deixou o que nunca esteve connosco, nem podia estar, mas apesar de tudo tinha um nome e, sendo irrepresentável, se desdobrou em milhões e milhões de imagens (Cristo, símbolo por excelência da nossa cultura) (ver J.-M. Schaeffer, “La Chair est Image”, Qu’ est-ce qu’ un Corps?, Paris, Flammarion/Musée du Quai Branly, 2006, pp. 59-80 – texto absolutamente iluminado).
Temos de evitar a tentação de pensar, de forma simples, que no passado (ou noutras tradições culturais) tudo seria mais ou menos igual ou diferente em relação a nós, pondo-nos a nós próprios na situação privilegiada de observadores centrais, de medida-padrão. Começar a dizer que as sociedades “primitivas” ou “pré-históricas” (que de facto inventámos como um recurso explicativo da nossa, com matriz última de onde derivamos) não punham em causa a existência de realidades transcendentes, ou que tinham relações de proximidade com os seres transcendentais, ou que viviam confundidas com a acção e com o sagrado, ou que precisamente usufruíam de uma distância em relação a ele que lhes permitia senti-lo por toda a parte, etc., etc – é dizer um conjunto de banalidades a partir de dicotomias modernas ocidentais como sagrado-profano, por exemplo.
Toda essa narrativa pseudo-antropológica (nas suas infinitas variações) é uma liturgia nostálgica (além de conceptualmente muito pobre), porque de facto não tem sentido pensar como sentiriam realidades globais que foram inventadas, imaginadas, por nós, outros que nós próprios inventámos; porque cada um dos milhões de “sistemas explicativos do mundo” que já existiu e se extinguiu foi provavelmente (suspeito eu, e estou bem acompanhado) único na sua especificidade, e não apenas diferente em relação a nós. Ao contrário dos fósseis, essas coisas não se fossilizaram: não é possível, felizmente, reduzir todo o passado a um fóssil.
Com certeza que há quatro ou cinco mil anos (apenas para me referir à minha época de estudo, convencional) existiram pessoas, comunidades, grupos que concertadamente realizaram no território alterações mais ou menos profundas, e eu posso dizer sobre isso muitas coisas. Umas factualmente observadas segundo um protocolo aceite, outras a título de interpretação ou hipótese. Mas seria uma ingenuidade muito grande querer separar demasiado factos e teorias, ou fazer certezas do que, como em todas as ciências, são construções intelectuais de que necessito para dar um sentido possível à realidade em que estou mergulhado.
Posso falar de imensos conhecimentos da arqueologia, a título de especialista de um dos seus ramos, como um médico pode falar sobre as pesquisas do cancro ou um astrónomo sobre as “suas” estrelas e galáxias. Mas a maior parte dos conceitos científicos, como sabemos, repousam sobre axiomas, e não conseguem esconder o óbvio: é de que o mundo em que vivemos é um imenso mistério, e que é insensato querermos recuperar o irrecuperável isto é, saber tudo, explicar tudo, substituirmo-nos à omnipotência e omnisciência divinas(à entidade que inventámos para nela projectar o nosso horizonte de absoluto).
Talvez seja isso o que distingue a obra de arte – que deve falar por si, ter uma pregnância própria, ou então não é arte, é “artesanato”, decoração, entretenimento, embora não se deva “sacralizar” demais o que já há muito foi desmitificado... tanto mais que as fronteiras entre o que é e não é arte se dissolveram – da de ciência, que deve sempre ser objecto de emendas, comentários, críticas, contra-provas, e finalmente da de filosofia, que se baseia numa argumentação por definição sempre aberta ao contraditório, ou seja, forja conceitos que se estruturam numa arquitectura de equilíbrio frágil sempre prestes a desmoronar, a ser rebatida, e a voltar a erguer-se...
Cada filósofo, se o é, não tem um único e estático sistema teórico seu, mas vai desenvolvendo, ao longo da existência, toda uma teia conceptual que é como um ser vivo. Por isso os manuais de filosofia, ao “introduzirem” à teoria deste ou daquele, estão a fossilizar um saber que só até certo ponto se pode delinear. O mesmo acontece na vida real e, certamente, no âmago de qualquer pessoa ou comunidade humana.
Se a vida de todos os dias se estrutura em tarefas balizadas pelo espaço/tempo socializados, ela repousa fundamentalmente num complexo de não-ditos, se subentendidos, que corresponde à vontade que as pessoas sentem de continuar a (sobre)viver dentro de um determinado contexto grupal, mesmo como marginais (as margens delimitam o sistema e, nesse sentido, fazem parte dele, como a moldura do quadro) ou “excluídos”. A continuidade de um “status quo” global é mantida pela confluência tacitamente aceite de um conjunto de realidades, apesar de todas as conflitualidades existentes.
Mas não vamos fazer do conflito, ou de qualquer outra causa primária, a ingénua “origem” da sociabilidade e da “comunitas” (não estamos nos tempos de Rousseau ou de Hobbes - aliás, a filosofia política está longe de ser a minha especialidade). E muito menos explicar a sociedade à base da teoria dos sistemas, ou de outra visão holística. A época dessas grandes narrativas interpretativas passou, e tal evanescência deve ver-se como um “progresso” dos nossos conhecimentos, no sentido de que já não acreditamos naquilo que eram as explicações da nossa infância, apesar delas constituírem o soco sobre o qual pensamos hoje.
É mais difícil viver sem tanta ingenuidade, sem tais crenças, sem as explicações globais que deram os pais fundadores das ciências, mas não temos outra hipótese. Não pedimos para estar no mundo e temos o desejo de compreender o que “aqui” se passa, sabendo que tudo o que conceptualizamos está dentro de um certo discurso, é mediado em grande parte pela linguagem (no sentido mais geral e não apenas estritamente linguístico), ou seja, dá continuidade a um meio que tem uma historicidade própria, sem que possamos, a partir deste ponto de vista tão microscópico, alguma vez vislumbrar um “todo” mítico que seria impensável.
O que nos vamos é entretanto entretendo a ler e a pensar e a viajar, a acumular conhecimentos e experiências, a refinar o gosto, e, a partir disso tudo, basicamente procuramos ir constituindo uma “opinião” – uma crença, se quisermos - mais ou menos respeitável ou partilhável por pelo menos alguns dos nossos concidadãos. Sendo que o conhecimento se distingue da mera opinião porque se baseia em estudos e análises, é uma síntese pós analítica, e não uma síncrese espontânea, como já nos ensinaram no secundário. Nisto, neste exercício modesto, e no facto de se deixar a um conjunto de pessoas que partilhem o mesmo itinerário, objectivando-o num discurso, consiste o percurso de um sujeito que teve a sorte de ser investigador/professor.
A acção colectiva pode ser encaminhada para objectivos localizados em pontos particulares do tempo e do espaço humanos, dentro de um território, quaisquer que sejam as conotações mútuas (a existirem) das várias escalas dessas espacialidades/temporalidades. E essa acção, ao galvanizar um conjunto de pessoas, une-as entre si, mesmo que momentaneamente, em torno de um “objectivo”.
Nada há de mais fluido do que um “espaço” e um “tempo”. São convenções que cada comunidade cria e recria em relação com as suas circunstâncias específicas. Ao abordar um sítio arqueológico com os meus olhos de “moderno”, estou necessariamente (e deliberadamente) sempre dentro do meu tempo e do meu ponto de vista, situado. Sabendo-me situado, como observador circunstancial, procuro oferecer resistência às interpretações sobre “o que ali aconteceu antes de mim” que seriam facilmente dedutíveis (como supostos universais) a partir do pensamento espontâneo. Não tenho referências universais nem bitolas para meter tudo em caixas e em taxinomias, podendo “comparar à vontade” coisas heterogéneas (também a comparação tem, evidentemente, as suas regras).
Não. Tenho apenas a minha capacidade de actuar sobre o sítio, examinando-o, reanimando-o (de certo modo, ao mesmo título que “reanimo” um livro ao lê-lo; mesmo na contemplação nunca há passividade, mas engajamento), e de chamar ao plano da memória antigas leituras e vivências, que tive, de tipo mais ou menos “antropológico”, e que me deram alguma (insuficientísssima) bagagem de conhecimentos sobre o ser humano ao nível das suas multímodas formas de relação com o mundo e no mundo, de expressão e de realização. E, desse modo, vou escrever uma narrativa sobre o sítio que lhe dê um sentido possível, ou – decerto - vários sentidos possíveis, desmunido de muitos conceitos que hoje já fazem parte do “arquivo morto” das ciências sociais.
Neste aspecto, a arqueologia repercute a extrema fluidez do conhecimento contemporâneo: perdemos (ou tentamos desprender-nos d’) o evolucionismo, o histórico-culturalismo, o processualismo. E, neste momento de crise paradidmática, tentamos experienciar os sítios, os objectos, os territórios com os ollhos do presente, os únicos que temos, e viver dentro a da des-ilusão dessas explicações ingénuas. Nem o espaço, nem o corpo, nem o tempo, nem o inconsciente, nem a tecnologia, nem muitas outras vias que se têm procurado explorar são âncoras firmes no mar revolto em que nos interrogamos sobre qual a melhor rota a seguir.
Não há primacialidade dos indivíduos sobre as sociedades, ou vice-versa. Sempre houve uns e outros, em interacção e em fluxo constante. Aquilo que hoje nos parecem períodos estáveis, provavelmente não o foram. A “cultura material”, em si, nunca existiu; os objectos não reflectem intenções ou normas, mas jogaram sempre como mediadores, como actores. Ora, termos consciência disso causa-nos embaraço, mas saber que não tem sentido certo tipo de saber é já saber muito.
Aquilo a que chamamos convencionalmente comunidades, sociedades, é algo de performativo, que se vai criando na improvisação dos dias e das relações, na interacção dos seres humanos. Essa interacção assenta numa distribuição de papéis e de tarefas, que se vão negociando, cristalizando ou desfazendo, que se manifestam em normas, padrões, mas também em rupturas, raramente globais, mas pequenas rupturas, confrontos, desequilíbrios. E em tudo isto o factor “emocional” é muito forte.
A crença de se pertencer a um “sistema”, a uma continuidade de sentidos e de “projectos”, o laço sentimental, extremamente subtil e subliminar, que une/desune as pessoas, a relação que se estabelece entre os “de dentro”, o grupo de pertença, e os “de fora”, com que se estabelecem eventualmente alianças, e a criação desses sincopagens do espaço/tempo, são muito importantes. A sincronização de tarefas une, e une tanto mais quanto essas tarefas têm uma escala relativamente ampla, e formalizada, quer dizer, de alguma maneira “ritualizada” no sentido de que a sua repetição de certo modo implica uma “calendarização” que envolve um grupo maior ou menor de indivíduos em interacção. Esta interacção, apesar de sempre contingente e mutável, é susceptível de se inscrever nos corpos, nas memórias, na intimidade de cada ser reflexivo, nas narrativas aprendidas (expressas ou apenas alvo de alusões) constituindo a “identidade” (sempre precária) de cada “território”, de cada grupo, de cada indivíduo. No jogo social, a confiança/desconfiança mútuas e a negociação das hierarquias das prioridades (quem faz/fala em primeiro lugar, quem imita ou escuta, etc.) estão em permanente estado de construção/desconstrução.
A maior ou menor formalização dos lugares em que as pessoas e os grupos se encontram é um elemento muito importante. Claro que essa formalização não tem, nem podia ter, uma relação directa com o construído: um cenário contingente, como por exemplo um “ajuntamento” em roda de centenas de pessoas em torno de uma performance, pode deixar marcas muito profundas, revelações de sentido que vão actuar sobre a memória de cada indivíduo, levando-o a reformular, pôr em causa ou consolidar, crenças e sentimentos. A maior parte da vida humana é feita destas “pequenas sensações”, nuas, despidas de roupagem discursiva formal, mas apesar de tudo constituindo um discurso, exigindo uma semiótica da contingência, do fluxo, de uma rede ou teia que, longe de ser hirta, é antes um “caldo” em constante “rotação”. Mas essa contingencialidade não elimina a realidade de molduras que, podendo ser voláteis, funcionam enquanto duram. O ritual é sem dúvida uma fixação de molduras, de sequências de acções, mas, como qualquer performance, passa-se “fora do texto”, e, pedindo a repetição, exige sempre uma ou outra mudança: a sua exequibilidade e eficiência, a sua capacidade de mobilização ou de focalização da atenção, a sua espectacularidade que convoca os seres e os grupos depende de algo de imprevisto, que despoleta sentimentos e sensações, por vezes passagens súbitas de um “estado passional” a outro. O “drama social” é feito de mil pequenos “teatros” em reequilíbrio constante.
Neste sentido, por ser uma ciência sem “informadores”, ou sem a possibilidade de observar de fora (até onde tal é possível) um jogo social a acontecer connosco, em torno (por assim dizer) de nós, a arqueologia não é uma “ciência social” como as outras. E, não possuindo textos (excepto obviamente nas “sociedades estatais” e mesmo assim tendo em conta que esses textos são sempre apanágio de uma minoria e, em si próprios, realidades sobrecarregadas de ambiguidade) que lhe dêem a ilusão de “compreender o outro”, ela está posta perante a mais total perplexidade. Tanto mais que sabe que, se fosse uma “ciência social” tal como hoje a encaramos, atenta sobretudo à fluidez, a arqueologia estaria em contra-mão, porque claramente nos surge, à partida, muito mais vocacionada para a fixidez, para o padrão, para o sistema ou modelo relativamente rígido, do que para o fluxo.
Mas, e de forma paradoxal, é precisamente esse facto de estar desmunida de explicações “fáceis” sobre como cada sociedade se constitui e reproduz que constitui a enorme força “subversiva” da arqueologia, se a soubermos utilizar para criar qualquer coisa que nos permita abrir novos entendimentos do ser social, e de cada um de nós em particular. Esses entendimentos não são formalizáveis facilmente como no pensamento dito racional corrente; não são argumentos, proposições cristalizadas. São pressentimentos, prenúncios de uma “ciência nova”, que terá de fazer o seu caminho.
O “drama social” em todas as suas dimensões - crenças, religiões, poderes, grandes “obras” como a “monumentalização das paisagens” a que assistimos em boa parte da Europa em torno do III milénio a. C. - pode receber contributos importantes da “atitude arqueológica”, mas, para já, eles não são formalizáveis: situam-se num espaço incómodo de limbo, antes do conceito, antes do argumento, antes evidentemente da prova. Situam-se um pouco como a palavra poética – indecisa, inesperada, fulgurante e perturbadora. Estão “out”; e estão muito bem, porque é essa condição de indecidibilidade que nos impele para tornar a arqueologia uma das atitudes mais interessantes na relação com o saber frágil em construção em todos os campos.
Como paixão pela tarefa de dar sentido ao tempo dos territórios, de conferir uma temporalidade à experiência humana não registada em parte alguma (incluindo a mítica “realidade material” que, como coisa autónoma, é abstracta e sem sentido), a arqueologia desperta não para uma imaginação gratuita, desprovida de bases, mas para a minuciosa análise tanto dos micro-locais como de toda a superfície terrestre, que mais nenhum outro pensador/investigador/cientista faz. Tem a minúcia do bisturi e a problemática da filosofia; tem sobretudo a capacidade de ter de se deslocar a alta velocidade entre múltiplas escalas. Nesse sentido, a arqueologia é hoje um instrumento típico da pós-modernidade, ou modernidade tardia: algo que nos puxa como observadores para “dentro do ecrã”, e que con-funde, no sentido pregnante do termo, “conhecimento racional” e conhecimento intuitivo.
Da aparente fraqueza que o senso comum lhe encontra, faz a sua força no contexto da sociedade actual, onde o que importa não é a fixidez, o esfriamento da energia, mas a turbulência, o aquecimento dos sistemas de comportamento e de comunicação. A arqueologia encontra-se num limiar, como todos os saberes em constituição, ou, se quisermos, como todas as frentes dos saberes e das formas de arte inquietas, jovens, extremamente energéticas, que nos comunicam perplexidade, espanto, surpresa, incapacidade de solução imediata. Não pacificam como um manual estável, não dão uma sensação de tranquilidade como uma arquitectura monumental, mas desinquietam como um corpo vivo, palpitante.
A arqueologia não trata de ruínas senão quando tem de mostrar qualquer coisa aos turistas (que somos todos) ou aos “sponsors” económico-políticos (sem cuja benevolência lá se vai a pesquisa). A arqueologia só trata de “reconstituição do passado” quando tem de montar cenas para a “animação cultural” (do tipo “venha passar um dia em tal parte no neolítico final”), carnavalizando-se.
A arqueologia trata dos múltiplos “tempos” das coisas e dos seus contextos, dos materiais e do seu comportamento na interacção connosco, da sua textura, e em última análise da sua radical mudez. Ms não é essa radical mudez a que nos fascina no estudo, na ciência, na filosofia, na arte? E, pela sua recusa à explicação fácil, à palavra descabelada, a arqueologia tem um enorme poder e pode ser mesmo muito forte, uma experiência violenta de incomunicablidade, por nos conseguir levar à exasperação. Ou seja: por abrir os nossos sentimentos
Claro que um cada vez maior número de pessoas educadas se não contentará com “cortejos históricos” ou “reconstituições” de pacotilha, ou quaisquer demonstrações fáceis de “volta ao passado”, exigindo elo contrário o debate e contentando-se plenamente com a observação e a participação no próprio “processo de produção do conhecimento”.
O “teatro de operações” da arqueologia não é, em princípio, vedado, como o é o de uma operação cirúrgica ou de um pintor em plena laboração no seu atelier. Antes, é um teatro aberto, de enorme potencial no que diz respeito à participação, nomeadamente emotiva, dos seus actores.
E é essa, afinal, a questão mais importante: a nossa performance no sítio, a sensação de que repetimos (mesmo que em sentido inverso) acções que já ali se passaram, que recuperamos (miticamente) sentimentos de pertença que ali se geraram, na nossa cumplicidade de arqueólogos com o local e com um objectivo comum. Através dos nossos gestos e dos nossos sentidos implícitos, das breves trocas de impressões, das disputas e negociações, algo parece um “déjà vu”... e, ao construirmos, hoje, a arquitectura do local, através da escavação, estamos de facto também a construir-nos a nós, como grupo, como equipa, com um mínimo de pressupostos e de não ditos que partilhamos. Ou seja, o que dantes reportávamos ao passado, aplicamo-lo agora ao presente. Só hoje, ao ser estudado, o sítio está a tornar-se um monumento arquitectónico, está a constituir uma comunidade, a contribuir para ma certa identidade colectiva, que se impregna nos corpos, na nossa memoria, no que vamos fazer daqui para a frente. E antes, há milhares de anos, não foi também assim? É muito provável. Não estávamos cá para saber. Et c’est tout.
Ao longo da elaboração deste texto, fui-me apercebendo como a questão da “arquitectura”, vista em geral, não tem sentido (ou então tem todos os sentidos já ditos, já repisados); que o “poder difuso” é algo de muito complexo, contextual, que só pode ser analisado caso a caso; que não sei muito bem o que é “acção colectiva” nem o que são “comunidades da oralidade”, desconfiando fortemente do carácter enganador de expressões tão gerais; e que as “sociabilidades” são também algo de tão contingente e diversificado, que é sobre elas difícil elaborar uma teroria que não seja redutora. Enfim, ao longo do texto fui ficando sem tema (como se durante a noite voltassem a ser fios os tecidos que durante o dia urdia, ou vice-versa), percebendo o muito que devo estudar para poder abordar questões como estas. Caminho árduo, num deserto de referências, num cemitério de conceitos, cujas lápides,semi-enterradas, não se lêem; mas caminho não inútil, pelo menos para mim, porque não chego ao fim dele tal como parti.
Quem contempla uma extensão de areia longa fica para sempre com algo na retina: um grão que entrou, a inflamação do deserto, da sua ardência, da sua luz, num vórtice que o compele a voltar.
2 comentários:
Sublinhei várias ideias. Há aqui bastante sumo...
Em algumas partes lembrei-me de uma conversa ao telemóvel (eu numa parte qualquer do mundo e o Vítor no farol).
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