Escolhi dedicar-me à arqueologia pré-histórica (não à arqueologia em geral, ou a outra época) quando era aluno do liceu D. João de Castro, em Lisboa (6º e 7º anos), senão mesmo antes. Era fascinado pelo que hoje sei ser algo de mítico: o problema das origens: do ser humano, da arte, da arquitectura, etc. Essa atracção vinha provavelmente da educação católica e da catequese.
Quando adquiri as competências básicas para perceber o que era de facto a arqueologia, qual o seu método, história e também limitações e necessidades de relação interdisciplinar, isto é, no fundo, quando comecei (cedo no curso) a preparar a minha tese de licenciatura, apercebi-me do muito mais vasto campo da minha ignorância. Muitas outras "disciplinas" e saberes tinham feito estudos e referências a temas que, afinal, eram "de pré-história" também. Percebi isso graças a diversos amigos e a professores, todo um ambiente cultural e científico propício ao desenvolvimento de uma tomada de consciência da complexidade e de uma procura própria. Cada um tinha de fazer pela vida, que era muito difícil.
Não referindo as ciências naturais, tão ligadas à chamada "pré-história", a óbvia geografia, e a filosofia, da qual desde muito novo gostei (até onde a entendia...) o que me atraíu foi a antropologia cultural ou social. Pude começar a comprar e a ler nesse domínio sobretudo no Porto, para onde vim no início de 1975. Tanto a "nova arqueologia/arqueologia processual" como depois a contestação que se lhe seguiu, de Ian Hodder e outros, apontavam nesse sentido. As coisas mais interessantes que se escreveram em "arqueologia pré-histórica" nos anos 80 e na primeira parte dos anos 90 eram "inspiradas" em leituras de antropólogos, ou em experiências de etno-arqueologia. Como a antropologia cultural ou social só ressurgiu em Portugal após o 25 de Abril, não foi de súbito que tal aconteceu, e a maior parte dos antropólogos vinha do estrangeiro onde tinha obtido formação, a colaboração entre arqueólogos como eu e antropólogos foi muito difícil, já então e até hoje. Além disso, a antropologia dos anos pós-coloniais interessou-se por muitas coisas, mas não principalmente pelo que se percebeu ser um mito, as "sociedades primitivas". Compreendeu-se que os "primitivos" tinham sido inventados por nós, pelo nosso colonialismo. Havia e há gente a prosseguir estudos de "evolução social", nomeadamente nos Estados Unidos, onde o neo-evolucionismo se arreigou desde os anos 60 do séc. XX. Mas já quase ninguém hoje acredita nessa linha de ideias que vem de Morgan, Engels, Childe, Binford, e tantos outros, até Johnson e Earle, dividindo as sociedades em bandos, tribos, chefados e Estados, e suas elaboradas derivações. Sobretudo percebeu-se que a arqueologia dita "pré-histórica", que visa estudar o ser humano antes da escrita e do Estado, necessita antes de mais de entender o que é o ser humano, o que é a sociedade, etc., para delimitar o seu campo de estudo. Ou seja, além da antropologia, necessita de todas as outras ciências sociais. Não precisa delas como um complemento "para dar vida às pedras e aos cacos"; necessita delas antes, se possível, de começar a acumular pedras e cacos.
Hoje, os meus interesses, no seu núcleo, mantêm-se. Mas os caminhos certos, os seus cruzamentos e horizontes implodiram, ou, se quiserem, explodiram em todas as direcções. Sinto-me arqueólogo quando contemplo um quadro, ouço uma música, leio um livro de sociologia, filosofia, psicanálise, história da arte ou outra coisa qualquer. O saber em Portugal continua a estar muito compartimentado, espartilhado. Mais maleáveis são os ingleses, que ao lado das "logias" (sociologia, antropologia, etc.) criam os "studies", que lhes permitem reagrupar novas temáticas com mais facilidade ("museum studies", "women's studies", "material culture studies", "visual culture studies", "leisure studies", etc, etc, etc!). E essa plasticidade vê-se até nas combinatórias que o ensino contempla.
Há hoje uma implosão de velhas certezas que afecta tudo e todos. A tendência conservadora de todos nós é evidente. Querendo obsessivamente inovar, escorregamos sempre pela tábua sempre encerada, inclinada, do "déjà vu". Muitos arqueólogos continuam imperturbáveis na mesma linha do (seu) passado, a acumularem observações e "dados", tranquilamente; e quando surgem "novidades retumbantes" (=descobertas sensacionais) vai logo tudo a correr para ver, como quando há um desastre. Curiosidade primária, claro. Tocar o objecto do passado, mexer no fetiche - ninguém resiste. Muitas pessoas produzem enunciados críticos sobre a sociedade actual e o papel da arqueologia que parecem correctos, que são sem dúvida inteligentes, mas como é óbvio não mudam nada. São vozes no deserto. E, sobretudo, servem mais a quem as produz do que a mudar qualquer coisa, porque a nossa consciência crítica tornou-se impotente perante as forças do mundo (já o era, mas não o sabíamos com tanta acuidade). Por outro lado, e isso é que é fundamental, muitos enunciados, mesmo aparentemente "verdadeiros", ou "certeiros", apelam ainda para uma ordem de discurso, para uma discursividade e temporalidade que são do passado. Sonham com um consenso, imaginam que a argumentação tem algum poder sobre os decisores, acreditam numa razoabilidade que fugiu deste mundo que está numa fuga em frente.
De modo que mantermo-nos lúcidos, produtivos, e ao mesmo tempo cumprirmos a nossa missão de "passar o testemunho" às gerações mais novas, não é tarefa fácil. Manter uma "escola de pensamento arqueológico" a partir de um pequeno país periférico, com ausência de meios, onde cada um cuida de si numa espécie de "salve-se quem puder", não é fácil.
Construir sobre os terrenos onde se deu a implosão (ou explosão, se quiserem) das nossas ingenuidades ou das nossas afirmações pessoais (que mais tarde, a posteriori, nos parecem tão caricatas), perceber que é preciso reconstruir quase desde o início, como após um tremor de terra, é assustador.
Mas até hoje ainda nenhum tremor de terra deu cabo da humanidade.
E, como dizem os tecnocratas, há que transformar as dificuldades em oportunidades. É claro que muitos que afirmam isto já têm as oportunidades bem seguras na mão, como se costuma dizer, "para si e para os seus". Fiquem bem.
Quando adquiri as competências básicas para perceber o que era de facto a arqueologia, qual o seu método, história e também limitações e necessidades de relação interdisciplinar, isto é, no fundo, quando comecei (cedo no curso) a preparar a minha tese de licenciatura, apercebi-me do muito mais vasto campo da minha ignorância. Muitas outras "disciplinas" e saberes tinham feito estudos e referências a temas que, afinal, eram "de pré-história" também. Percebi isso graças a diversos amigos e a professores, todo um ambiente cultural e científico propício ao desenvolvimento de uma tomada de consciência da complexidade e de uma procura própria. Cada um tinha de fazer pela vida, que era muito difícil.
Não referindo as ciências naturais, tão ligadas à chamada "pré-história", a óbvia geografia, e a filosofia, da qual desde muito novo gostei (até onde a entendia...) o que me atraíu foi a antropologia cultural ou social. Pude começar a comprar e a ler nesse domínio sobretudo no Porto, para onde vim no início de 1975. Tanto a "nova arqueologia/arqueologia processual" como depois a contestação que se lhe seguiu, de Ian Hodder e outros, apontavam nesse sentido. As coisas mais interessantes que se escreveram em "arqueologia pré-histórica" nos anos 80 e na primeira parte dos anos 90 eram "inspiradas" em leituras de antropólogos, ou em experiências de etno-arqueologia. Como a antropologia cultural ou social só ressurgiu em Portugal após o 25 de Abril, não foi de súbito que tal aconteceu, e a maior parte dos antropólogos vinha do estrangeiro onde tinha obtido formação, a colaboração entre arqueólogos como eu e antropólogos foi muito difícil, já então e até hoje. Além disso, a antropologia dos anos pós-coloniais interessou-se por muitas coisas, mas não principalmente pelo que se percebeu ser um mito, as "sociedades primitivas". Compreendeu-se que os "primitivos" tinham sido inventados por nós, pelo nosso colonialismo. Havia e há gente a prosseguir estudos de "evolução social", nomeadamente nos Estados Unidos, onde o neo-evolucionismo se arreigou desde os anos 60 do séc. XX. Mas já quase ninguém hoje acredita nessa linha de ideias que vem de Morgan, Engels, Childe, Binford, e tantos outros, até Johnson e Earle, dividindo as sociedades em bandos, tribos, chefados e Estados, e suas elaboradas derivações. Sobretudo percebeu-se que a arqueologia dita "pré-histórica", que visa estudar o ser humano antes da escrita e do Estado, necessita antes de mais de entender o que é o ser humano, o que é a sociedade, etc., para delimitar o seu campo de estudo. Ou seja, além da antropologia, necessita de todas as outras ciências sociais. Não precisa delas como um complemento "para dar vida às pedras e aos cacos"; necessita delas antes, se possível, de começar a acumular pedras e cacos.
Hoje, os meus interesses, no seu núcleo, mantêm-se. Mas os caminhos certos, os seus cruzamentos e horizontes implodiram, ou, se quiserem, explodiram em todas as direcções. Sinto-me arqueólogo quando contemplo um quadro, ouço uma música, leio um livro de sociologia, filosofia, psicanálise, história da arte ou outra coisa qualquer. O saber em Portugal continua a estar muito compartimentado, espartilhado. Mais maleáveis são os ingleses, que ao lado das "logias" (sociologia, antropologia, etc.) criam os "studies", que lhes permitem reagrupar novas temáticas com mais facilidade ("museum studies", "women's studies", "material culture studies", "visual culture studies", "leisure studies", etc, etc, etc!). E essa plasticidade vê-se até nas combinatórias que o ensino contempla.
Há hoje uma implosão de velhas certezas que afecta tudo e todos. A tendência conservadora de todos nós é evidente. Querendo obsessivamente inovar, escorregamos sempre pela tábua sempre encerada, inclinada, do "déjà vu". Muitos arqueólogos continuam imperturbáveis na mesma linha do (seu) passado, a acumularem observações e "dados", tranquilamente; e quando surgem "novidades retumbantes" (=descobertas sensacionais) vai logo tudo a correr para ver, como quando há um desastre. Curiosidade primária, claro. Tocar o objecto do passado, mexer no fetiche - ninguém resiste. Muitas pessoas produzem enunciados críticos sobre a sociedade actual e o papel da arqueologia que parecem correctos, que são sem dúvida inteligentes, mas como é óbvio não mudam nada. São vozes no deserto. E, sobretudo, servem mais a quem as produz do que a mudar qualquer coisa, porque a nossa consciência crítica tornou-se impotente perante as forças do mundo (já o era, mas não o sabíamos com tanta acuidade). Por outro lado, e isso é que é fundamental, muitos enunciados, mesmo aparentemente "verdadeiros", ou "certeiros", apelam ainda para uma ordem de discurso, para uma discursividade e temporalidade que são do passado. Sonham com um consenso, imaginam que a argumentação tem algum poder sobre os decisores, acreditam numa razoabilidade que fugiu deste mundo que está numa fuga em frente.
De modo que mantermo-nos lúcidos, produtivos, e ao mesmo tempo cumprirmos a nossa missão de "passar o testemunho" às gerações mais novas, não é tarefa fácil. Manter uma "escola de pensamento arqueológico" a partir de um pequeno país periférico, com ausência de meios, onde cada um cuida de si numa espécie de "salve-se quem puder", não é fácil.
Construir sobre os terrenos onde se deu a implosão (ou explosão, se quiserem) das nossas ingenuidades ou das nossas afirmações pessoais (que mais tarde, a posteriori, nos parecem tão caricatas), perceber que é preciso reconstruir quase desde o início, como após um tremor de terra, é assustador.
Mas até hoje ainda nenhum tremor de terra deu cabo da humanidade.
E, como dizem os tecnocratas, há que transformar as dificuldades em oportunidades. É claro que muitos que afirmam isto já têm as oportunidades bem seguras na mão, como se costuma dizer, "para si e para os seus". Fiquem bem.
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