terça-feira, 23 de outubro de 2007

Os mortos concordam sempre – 3

Continuemos a analisar mais em detalhe o texto (datado de 2001) da colega Joana Brück (UC, Dublin) mencionado em postagem de há dias (tarefa que, para ser bem feita, irá ainda ocupar outras postagens futuras).

Dedico estas reflexões a A.A.

Uma das obsessões dos arqueólogos é atribuir FUNÇÕES às realidades que "encontram". Já Gordon Childe escrevia que a classificação arqueológica é tríplice, correspondendo basicamente às respostas a três perguntas, relativas a qualquer "testemunho": quando (foi feito), qual a sua finalidade (para que servia) e quem (o fez). A nossa autora não foge à regra, articulando esse aspecto com o da não questionação ("taking for granted", para usar uma expressão inglesa) de muitas "realidades"/generalidades que podem ser meras aparências.

Seguindo outros autores, o POVOADO ("settlement") da Idade do Bronze média e final inglesa é apresentado como contendo dois tipos fundamentais de construções:
- estruturas residenciais, mais importantes (funções: consumo de alimentos, produção e reparação de utensílios, tecelagem, etc.) ;
- estruturas destinadas a tarefas básicas ("ancillary structures") (funções: preparação de alimentos, estabulação de animais, etc.).
Um "povoado" típico, de carácter familiar (relacionado com um "household group") seria em geral composto por uma estrutura residencial (CASA propriamente dita), acompanhada de estruturas secundárias. Ao longo do tempo, este modelo ideal teria naturalmente sofrido transformações, relacionadas com (reflectindo) o "ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico", quer dizer, com as suas circunstâncias demográficas, sociais e económicas (pp. 149-150).
Quais? A autora responde: as crianças nasciam, as pessoas casavam-se e iam para outro lado, e familiares mais velhos PODIAM ter vindo viver com o grupo residencial. Este, "atingido o máximo do seu estatuto socio-económico" (p. 150) teria podido então erigir novos edifícios/estruturas; já em momentos de menor "aisance", o declínio das construções e mesmo o seu abandono reflectiria o declínio do próprio status do grupo doméstico.
E a autora conclui este parágrafo com uma frase generalizante, maravilhosa de inocência, auto-confirmando-se a si própria, em perfeita convicção especular: " Estas obervações sugerem que o ciclo de vida do povoado estava intimamente conectado com o dos seus habitantes."
Pois claro: assumindo que um conjunto de características arqueológicas associadas entre si representam a morada de um grupo mais ou menos restrito (família nuclear), e observando mudanças ao longo do tempo nesse dispositivo arqueológico, a autora projecta no passado de há três mil anos ou mais o que ela imagina ser a lógica da vida de uma família rural de uma "Inglaterra" ideal, parada no tempo. Se a "casa" das pessoas, nomeadamente de uma unidade "familiar" ou íntima ("household"), reflecte as suas condições de vida, então qualquer modificação da dita "casa" (mais ou menos simples ou composta de várias unidades)
traduz uma modificação das ditas condições de vida (p. 150). Não chega sequer a haver aqui circularidade ou tautologia de raciocínio ou de argumentação: não há desenvolvimento de argumento, há a apresentação de uma constatação idílicamente evidente.
É disto que se tece uma parte não desprezível do raciocínio corrente em arqueologia: ou seja, da real ausência de raciocínio propriamente científico, substituída pela crença ingénua na universalização de um conjunto de lugares comuns. Esses lugares comuns atingem o nível paródico ou ingenuamente alucinado quando se fala do que há de mais íntimo, ou seja, da casa, da família, da vida doméstica, processo inconsciente através do qual se CONFIRMAM as intuições e experiências emocionais mais enraizadas, como tendo uma raiz muito longínqua no tempo. A arqueologia serve assim de terapêutica securitária para um mundo revolto: as famílias do passado tinham uma vida simples, com ciclos de altos e baixos, tal como hoje (e, supõe-se, sempre) se deseja que ocorra (ou venha a ocorrer). Não passa aparentemente pela cabeça da pessoa que escreve questionar o que significa nascer num determinado contexto, ser ou não ser uma pessoa, envelhecer, construir ou viver numa habitação, etc., etc. Todo um conjunto de elementos basilares para a caracterização de uma sociedade e suas representações é escamoteado, ou sugerido em esfumada aguarela, na qual facilmente se con-fundem (no sentido de mutuamente se fundirem, se sobreporem) as realidades imaginárias do intérprete com a realidade que ele vê, alucinatoriamente. Ambas se confirmam uma à outra.


Mas a autora, evidentemente, não se fica por aqui. Ela adverte-nos de que nem só de funções ("practical terms") nos "fala" a realidade arqueológica. Não! Tudo é mais complexo! Entre habitantes e sítios ocupados há TAMBÉM uma relação SIMBÓLICA, atenção! (p. 150). Ou seja, a um estrato primário de funções básicas, vem depois um certo simbolismo sobrepor-se!
Esse simbolismo, para a autora, é testemunhado pelo que designa DEPOSIÇÕES, concentrações de objectos ou objectos isolados, em pontos críticos dos sítios, servindo para dar ênfase a ESPAÇOS específicos e/ou EVENTOS (momentos do tempo). Essa ênfase, claro, de novo REFLECTIRIA pontos (no espaço e/ou no tempo) críticos da vida do povoado e dos seus habitantes. De novo uma ilusão especular, sobreposta à anterior, se vê auto-confirmada.
E, de auto-confirmação em auto-confirmação, no sistema de "baralho de cartas" a que me referi antes, vai-se tecendo a "reconstituição do passado", ou seja, desenrolando sugestões que confortam uma determinada (e simplista) imaginação do mesmo.

(Continua)

1 comentário:

Anónimo disse...

Vítor,

Tenho na minha mesa 5 textos da Joanna BrucK, de 99 a 2007. Estou, aliás, a debater alguns deles com alunos numa cadeira da licenciatura. Não li ainda este texto que está na base das tuas reflexões. Mas deixo aqui um comentário prévio: talvez seja melhor ler um conjunto significativo de textos dela antes de avançar para uma postagem crítica. Muitas das suas ingenuidades ou raciocínios não resolvidos...ou ate contradições...
surgem num contexto de questionamento de posições de arqueólogos consagrados como Barrett ou Thomas. No meio de muita coisa que é criticável...existe em Bruck uma postura interessante de desconforto face à arqueologia do "sistema" inglês que se pretende uma alternativa ao processualismo. As perguntas de Bruck podem estar aqui ou ali mal colocadas...ou serem tiros nos pés... Mas mesmo quando são...levam-nos a parar...e a ir ver o que é que um determinado autor afirmou.. num exercício crítico de distanciação relativamente à "bíblia" dita pós-moderna. Não sendo Bruck uma espécie de "consciência" do sistema (ela está o mais possível dentro dele), a sua leitura alargada é útil. Quando acabar de ler os textos dela que tenho à minha frente..talvez volte aqui para, do meu ponto de vista, dizer o que acho que há a tirar das suas ideias. Insisto que um só texto não espelha as muitas direcções do seu pensamento.