segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Performance: onde o rosto da arqueologia se vira para as máscaras do teatro

Foto: Anja Frers
Fonte: http://www.anja-frers.de/


Encenações do passado: coreografia de sítios arqueológicos

por

Vítor Oliveira Jorge



“Teatro: área onde algo acontece”
(dos dicionários)

“We shall not cease from exploration
And the end of all our exploring
Will be to arrive where we started
And know the place for the first time.”
T. S. Eliot
“Four Quartets”, p. 43.




Abstract
Staging the past: choreography of archaeological sites

In recent years, to think theatre and archaeology together has become one of the ways of overcoming traditional archaeology, in its positivistic and naive obsession of “rebuilding the past”.
First, the conceptual boundaries of theatre and common life have dissolved. We know that every human action is not so much representation or acting, but performance, in the sense that every human being is submerged in the symbolic (in the sense of the French psychoanalyst and philosopher Jacques Lacan). Formal theatre and the “re-presentation” of each one of us in everyday life is intrinsically fluid and ambiguous: that ambiguity, that incapacity of reducing everything to a definitive “explanation” is the very reason of life, of desire, of the capacity for us to fantasize.
Second, any field of knowledge / creative activity is equality able to let us enter into the world of transdisciplinarity that characterizes our present attitude: the dissolution of boundaries. Archaeological sites / landscapes are not fixed settings. Their are enhanced by our own activity of studying them, restoring them, using them for our own good. An archaeologist is a performer (and not just an actor) as any other social being; and people who participate in this activity (as collaborators or as simple visitors/consumers of its products) are performers too. We are all consumers of the “past”, as proposed to us by heritage and tourist industries.
Archaeology should not be considered as a minor partner is this building of modern landscapes, where the symbolic order presents itself as a reality of signs, of “culture values”, full of “place-myths” (John Urry) to be appreciated as public resources.



1. Conceito do senso comum: a vida é um teatro, cada um de nós um “actor”; ou mais que um actor, algo de fluido, um “performer”; e, podia acrescentar-se: se cada um de nós tirasse as máscaras todas, ficaria sem cabeça. Não há uma “verdade” por detrás da máscara, do véu, de um ser humano, nem nunca houve. Não há uma “essência” por detrás da aparência. Tudo é, num certo sentido, “encenação”, presentificação a partir de um lastro, de uma herança, de uma expectativa que se reorienta continuamente para novas intencionalidades.


A minha “intuição” principal desta última década (pelo menos) é: não se consegue “reformar” a arqueologia (área da minha especialidade) a partir de dentro. É preciso fazê-lo de fora. A “teoria da arqueologia” (e a sua metodologia) só se enriquece e é útil se for construída multiplicando os ângulos, os pontos de vista. Esse princípio aplica-se aliás a toda a “démarche” do saber contemporâneo, muito mais atento à fluidez e à agilidade do que á rigidez e à fixação disciplinada. O tema do “teatro”, aqui em causa, é tão bom como qualquer outro. Espero que me seja ressalvado o atrevimento de, nunca tendo sido propriamente “estudante” de teatro, ou da sua complexa temática, história, e teoria, me atrever a entreabrir a cortina de uma cena tão fascinante. Sou uma espécie de intruso que nem bilhete pagou e que, levado pela curiosidade, se atreveu a entrar nos bastidores. Mas as “pessoas do teatro” são, em geral, generosas e benevolentes.
De facto, neste breve texto (1), e como é óbvio, não vou evidentemente poder sequer aflorar as múltiplas teorias do teatro, do actor, da pessoa, do ritual, da performance, da “imagem” (no seu sentido mais lato), do espectáculo, da identidade e de tantos outros conceitos conexos – e sua “história”, bem como os numerosos campos das ciências sociais e das “humanidades” em que se espalharam (ver por exemplo Carlson, 2004, uma excelente visão geral).
São temas em que me encontro e encontrarei sempre em processo de aprendizagem, tanto em antropologia, sociologia ou psicologia, como em psicanálise, ou em estudos literários, para só mencionar alguns. Apenas pretendo deixar aqui algumas notas para se perceber a (minha particular, e decerto limitada visão da) complexidade do assunto e as implicações directas ou indirectas que o arqueólogo encontra no seu discurso quando trata de “encenar o passado”.
“Encenar o passado” (2) é desde logo uma expressão ambígua, e polissémica, que pode portanto ser lida em muitos sentidos.
O que nos ocorre de imediato é, evidentemente, uma “recriação viva” (não em vitrinas ou com manequins do museu, tradicional ou não, ou na “realidade virtual” do computador, mais ou menos sofisticada, etc.) de “cenas do passado”, com trajes e ambientes da época, em que pessoas obviamente actuais “imitam”, para um público, o que julgam ter sido “quadros de vida” desses tempos. O objectivo pode ser puramente didáctico e de lazer (voltado para um público de todas as idades e formações culturais, por exemplo), ilustrativo, ou, noutro limite, ter uma intenção também experimental, e – por que não - de investigação até, na medida em que é através da acção que certas dificuldades ou impasses de interpretação poderão eventualmente ser superados. É claro que a sobreposição destes vários objectivos numa acção determinada raramente se consegue.
Essa “encenação” tanto se pode fazer em cenários formais de teatro, tradicionais (isto é, pressupondo uma distância espacial, arquitectónica, e portanto “psicológica”, institucionalizada, “estatutária”, entre palco e público, entre actores e espectadores) , como se pode realizar ao ar livre e medir-se por parâmetros mais fluidos que lembram, ou se identificam mesmo com, a modalidade da performance (no sentido estrito desta). Pode ainda, evidentemente, desenrolar-se no contexto de sítios ou percursos “arqueológicos”, desdobrando-se em muitas dimensões, e tendo como ponto de partida a vontade, hoje muito corrente, de “animar” o “sítio”, ou seja, partindo do princípio de que a simples visita, mesmo acompanhada de um guia, não é suficiente para transmitir às pessoas o que se pensa que pode “ter acontecido ali”, qual o significado “histórico” daquele lugar.
Toda esta actividade de “animação”, com longa tradição nos “cortejos históricos” e eventos afins de grande espectacularidade (em que se recriavam e recriam cerimónias ou factos ditos “históricos”), normalmente para o chamado “grande público”, sem esquecer os seus objectivos “políticos”, é cada vez mais apelativa hoje, porque as terras e as cidades procuram atrair visitantes (turistas), e constantemente se inventam comemorações, tradições, eventos que coloquem no mapa turístico e ao mesmo tipifiquem e nobilitem as ditas terras e cidades, tornando-as produtos de consumo no mercado global.
Há por outro lado aqui uma conotação de “festa” que indiscutivelmente, tal como os rituais (ligados à repetição e à inculcação de certas “referências” ou marcas nos espaços/tempos “externos” e psicológicos), é dos fenómenos mais antigos da humanidade e mais importantes na constituição e rejuvenescimento (reforço) dos laços sociais.
Permitindo encontros, emoções, exaltações, alguns desbragamentos, ultrapassagem ou inversão (sempre regulamentada, é claro) de comportamentos normativos, a festa atrai imensamente na possibilidade de transgressão simbólica da “ordem” que supostamente oferece por umas horas ou uns dias. Todas as pessoas que estudaram as religiões e os rituais sabem quanto tais fenómenos estão espalhados e se articulam com ritos de passagem, com momentos decisivos da vida individual e comunitária, com a presentificação de determinados símbolos, com a centralidade do corpo.
O pretexto da festa não precisa de ser profano, como é óbvio, e para utilizar uma dicotomia muito simplista. Pode ser sagrado, pode até ser um acontecimento que ocorre por ocasião de um funeral (servindo por exemplo de terapêutica individual e colectiva, acompanhando o luto), sendo que a maior parte das festas se caracteriza precisamente (como muitas das moderníssimas performances) pela fluidez dessas “classificações”, entre o sério e o cómico, entre o sacro e o seu oposto, entre a alegria e a melancolia (a máscara do palhaço triste é disso arquétipo) que pode ir até à carnavalesca ostentação de “obscenidades” e “perversões”.
As sociedades humanas (e os seres humanos, claro) parece terem avidez do evento: aquilo que, para além do júbilo ou da desgraça, escande o tempo, cria um antes e um depois, permite a elaboração de memórias, rememoração, narrativas, comemorações, “passatempos” de toda a espécie. Abre às “estórias” que compõem a história colectiva e as biografias individuais.
A festa é um excesso. E, como excesso, tolera-se durante ela coisas que na “vida normal” o não são, pelo menos explicita e publicamente, sendo também uma boa ocasião para os arqueólogos, como tantos outros actores sociais, fazerem passar a sua mensagem para o “grande público” (perdoe-se-me a desgastada e mesmo simplista expressão). De facto, estas “encenações do passado”, se não forem feitas em contexto “estritamente laboratorial” (o que não é o seu espírito nem “modus operandi”), envolvem sempre largos aspectos de imperfeição, de improvisação, de tentativa, que passam bem no meio de um ambiente fluido, mas seriam intoleráveis cientificamente.
De modo que se multiplicam hoje os eventos do tipo “um dia no Neolítico” (ou noutro período qualquer), em que, às vezes, actores improvisados ou os próprios “arqueólogos” se vestem com trajes (mais ou menos) inventados e realizam tarefas para gáudio dos presentes, elementos de uma assistência que é também, ocasionalmente, convidada a participar nas tarefas ilustradas. Todo este mundo se insere dentro do objectivo de atracção de públicos e da tendência para a transmissão lúdica de saberes “fora do texto”, por via da incorporação, por parte de cada um, de um conhecimento mais entendido como experiência do que como conceito abstracto.
O lúdico da sociedade de consumo de massas neo-liberal (“horizontal” nos direitos proclamados ou em certos comportamentos exercidos, mas de facto muito “vertical”, elitista, no acesso aos consumos culturais de prestígio, se a considerarmos à escala global) aparece unido, pois, à fluidez própria do conhecimento da modernidade tardia (ou pós-moderna, ou como queiram chamá-la, para a distinguir da ciência/vivência que preponderou desde o racionalismo dos sécs XVII/XVIII/XIX até há algumas décadas - anos 70/80 do séc. XX).
Esta sociedade pós-moderna é anti-essencialista. Não se baseia na reprodução do mesmo, como no tempo do fordismo, por exemplo, mas na constante inventabilidade, diluição, liquefacção, miscigenação – a todos os níveis (o que até põe problemas relativamente à tradicional ideia de autor, como sabemos). Que isso conviva com barreiras invisíveis ou mais subtis de classificação, descriminação e de liminaridade (limiares difusos, cada vez mais propagados) só surpreenderá um inocente. Por isso a disseminação da performance, muito mais “plástica” do que o teatro (mesmo do que as inúmeras tentativas que este fez ao longo do séc. XX para se “modernizar”, acompanhando ou antecipando os vanguardismos e todos os experimentalismos das outras “artes”) é uma realidade dos nossos dias. No seu “mito” ou desejo mais profundo, por assim dizer, a “performance” seria, ou é, a subversão do teatro, o seu reverso, a outra face da “sua” moeda, embora também muitos não pensem assim (v. Auslander, 1997).
Claro que as “encenações do passado” e a “animação de sítios arqueológicos” se não reduzem ao já dito. Isso não pode acontecer, porque seria o não-acontecimento. A encenação passa-se sempre no presente, é uma reactivação, e nesse plano, em princípio (e mau grado todas as tentativas em contrário) opõe-se ao património, que é um “peso morto”. A encenação conota-se com uma certa espontaneidade, por mais que a montante desta exista uma longa preparação e um espartano e disciplinado treino dos “performers”, a começar pelo profundo “domínio” do seu próprio corpo – tudo matérias que dariam para longas excursões...
O restauro de sítios, a proliferação de parques e de rotas propriamente arqueológicos com os seus centros de acolhimento, as publicações impressas ou audio-visuais de todo o tipo, etc., enquadram-se nesse mundo da reactivação, da animação para tornar atractivo, visitável.
Adentro da vontade de “dar uso moderno aos monumentos” inclui-se a realização de espectáculos, tendo os ditos monumentos, sítios ou lugares como cenário (por vezes privilegiado, como os grandes teatros e anfiteatros romanos e gregos), e isso é apenas um aspecto da preocupação em diluir as barreiras entre um património (que tendencialmente se conota com uma herança, em degradação e/ou morta) e a chamada “criação contemporânea”, coisa viva e emergente.
Como se houvesse (para além das questões práticas administrativas e de enquadramento legal/regulação estatal) possibilidade de dividir as duas facetas. Pois é óbvio que nunca se faz algo a partir do nada, sem absorver uma herança (até a literatura dita de “aeroporto”, ou light, tem já os seus clássicos) e o património só existe e se põe como um problema porque é reconhecido como tal, por nós, hoje. Ou seja, fomos nós que o inventámos e o colocámos em situação de necessidade urgente de salvamento ou recuperação. A encenação de uma “peça de teatro” é a mais perfeita ilustração da fusão entre algo que vem de trás (uma obra literária, dramatúrgica, que está escrita ou até impressa) e o que acontece agora, neste presente tão abstracto como o passado e o futuro que com ele intimamente convivem.
Num certo sentido mais amplo, poderíamos considerar que toda a vida corrente é uma “encenação do passado”, ou seja, implica uma fusão, em constante fluidez e alteração a muitos níveis, entre a memória (visão retrospectiva) e a imaginação de futuro (visão prospectiva). Todas formam uma unidade muito complexa e sensível, como a psicologia ou a psicanálise nos ensinam ao nível individual, ou a sociologia e a antropologia ao nível colectivo – para não referir muitos outros campos de pesquisa, entre os quais os estudos teatrais, os estudos performativos, etc.
Como escreve Schieffelin (1998, citado por Mitchell, 2006, p. 384) a performance é a “criação de presença”, é apresentação e presentificação ao mesmo tempo, e nesse sentido global tende a confundir-se com a própria vida e a disseminar-se em todas as ciências sociais e mesmo no léxico quotidiano. Na medida em que qualquer comportamento é, num certo sentido, sempre “público”, envolve sempre mais de um “eu” abstractamente considerado (quanto mais não seja para a relação que mantenho com o espelho, físico ou fictício, em que me projecto, ou para com a minha consciência), ele é já, desde a raiz, performance, com toda a indeterminação que esta palavra implica no que respeita às identidades fixas, que são dissolvidas. Numa acepção ampla, presentificar o passado é, simplesmente, viver, todos os dias, improvisando na contingência mais total.
A iniciar esta parte do texto refere-se a questão da máscara, da verdade e da mentira, da aparência e da essência. São afirmações óbvias, e que têm a ver com o já dito, mas também com o que sumariamente se vai ler a seguir.


2. Não acredito em certas generalizações modernas que procuram encontrar “universais”, por exemplo, na expressão facial das emoções. Somos seres da ambiguidade; vivemos no plano do simbólico. É isso que é a base de qualquer “encenação”, quer no sentido metafórico, geral, quer em particular no do teatro: todos (“actores” e espectadores) participamos continuamente de uma “verdade” mentirosa e de uma “mentira” verdadeira, que às vezes encenamos sob a forma de “espectáculo”.

Tenho-me interessado (suprema ambição para quem não é filósofo, mas incontornável problema para quem tenta pensar... e para quem procura também fazê-lo com a “instrumentação” poética) pela questão da relação entre a “aparência” e a “verdade”, ou, posto de outro modo, pela forma como se pode ir, através de um processo de interacção (com pessoas, com lugares e coisas, com conceitos, com emoções) passando do “evidente” (do que se incorporou como indiscutível) ao menos evidente. Esse desejo de saber é compulsivo, porque o que é evidente, fatiga.
Este último (o “evidente”) aparece-nos muitas vezes não obviamente como a “verdade derradeira” (que assustadora figura, que impensável, seria esse?!) mas como a “revelação” de algo que de repente nos permite fazer sentido, colocar em rede uma série de impressões ou conclusões localizadas, que não tínhamos ainda conseguido arrumar ou articular. A satisfação desse encontro (de nós com algo, e de várias coisas/conceitos entre si) é muito parecido com o que temos em arrumar as nossas casas e sentir a disponibilidade dos objectos e dos espaços, a sua ordem, e o nosso relativo poder de fruir deles. Essa satisfação precisa sempre de ser partilhada com outrem. Por outro lado, não se trata tanto de descobrir algo, ou desvelar a verdade por detrás do véu, mas de um puro jogo de ir retirando sucessivos véus, um jogo para o qual em ultima análise um autor como Lacan tem sugestões muito interessantes.
Aliás, a ilusão do re-conhecimento passa muito pelo rosto, pela interacção face a face. Mas, justamente, e de forma paradoxal, essa relação é muitas vezes o lugar do enigma. Quanto mais julgamos perceber do outro, se este realmente nos dá sinais (mesmo que mínimos, ou então por nós fantasiados) de que podemos avançar nessa descoberta, mais a insatisfação cresce.
Para Lacan a ordem simbólica, designada o “grande Outro”, é composta de regras implícitas que regulam a nossa vida, sem que nos demos conta disso, e que tornam em última análise a relação humana impossível, a relação sexual impossível, o amor impossível. Em que sentido? No sentido de que tal ordem repousa em última instância numa ausência de fundamento (v. por ex. Salecl, 2000, p. 4), ou seja, ela é “circular”. Essa inconsistência radical (a de não haver, nem ter sentido haver uma verdade última em que nos apoiarmos) tem relação com o conceito de “pequeno objecto a”, que é a fantasia, a causa do desejo, algo com que inconscientemente procuramos preencher a sensação última de vazio com que o desejo de satisfação plena, de conhecimento ou identificação total, se depara (assim o alimentando). Não se trata, como acentua aquela autora eslovena, do objecto do desejo em si, mas de algo de indefinido que nos atrai para esse objecto (como quando estamos apaixonados, precisamente não tem sentido a infantil questão de tentarmos saber por quê; esse “porquê” extinguiria de imediato tal paixão).
Acontece que há aqui uma especularidade nesse objecto do desejo: é que para Lacan ele é, em última análise, o próprio sujeito desejante, na sua falta fundamental (sujeito “bloqueado”), a qual supostamente, para ele, aquele objecto preenche. Portanto, resume a mesma autora (op. cit., p. 6), o grande Outro, a inconsistência última, digamos assim; o pequeno objecto a, o embraiador do desejo; e o sujeito bloqueado (incapaz de consumar o seu desejo, de atingir a completa “jouissance”) - estão interligados. O sujeito não tem significante possível, na ordem simbólica ele sofre de uma castração fundamental.
Sendo impossível resumir aqui a complexa teoria de Lacan (que para mim, simples aprendiz, se mantém como uma hipótese de trabalho muito interessante em diversos dos seus aspectos) importa acrescentar que, por outro lado, há um paradoxo fundamental no poder: é que ele, ao querer exercer-se, perde força, revelando um outro, invisível poder virtual. Como um juiz corrupto (continuo a seguir Salecl, p. 8) que apenas ao envergar a sua toga pode exercer o poder em nome do “grande Outro”, da ordem simbólica, o sujeito precisa de se referir a uma ausência para consumar qualquer potencialidade; essa consumação é sempre ilusória, portanto. São muito interessantes os exemplos que são dados pela autora em nome de Lacan, para melhor explicar o seu pensamento (no último capítulo da mesma obra, intitulado “Love and sexual difference: doubled partners in men and women”, pp. 297-316). Como é o caso do indivíduo (celibatário ou casado) com a sua “vida organizada”, que projecta numa figura do desejo, inalcançada, as suas fantasias; mas quando as circunstâncias da vida lhe permitiriam consumar essa aproximação ou relação com o objecto do seu desejo, o indivíduo em causa muitas vezes prefere afastar essa possibilidade para que ela continue a “funcionar”, digamos, na sua própria inacessibilidade. A resignação, a aceitação da castração simbólica permite ao sujeito continuar a usufruir do prazer do desejo.
Esta referência extremamente esquemática e simplista ao pensamento de um grande autor, conhecido pelo seu hermetismo, serve apenas, aqui, para nos advertir de que o “enigma” contido no rosto, nas relações humanas, e em última análise na tentativa de compreendermos e de absorvemos o que nos escapa é-nos consubstancial. E por isso todas as inspirações vindas de uma sociologia subtil como a de um Goffman e tantos outros devem ser alvo de nuances. Por outro lado também não nos podemos esquecer de que muitas feministas (numa posição portanto totalmente diferente da de Salecl ou Zizek) se inspiraram em Lacan, como Julia Kristeva ou Elin Diamond (v. Carlson, p. 51), mas procuraram dissolver as identidades, sexuais ou outras, para que pode tender a interpretação cristalizada daquele autor. Este é um terreno que piso com cuidado, repito, com a precaução de um estudante.
Seja como for, a “performance social” no sentido genérico (tanto a de todos os dias, como a mais ritualizada), ao permitir a continuidade da ordem simbólica, a referência a um “real” que é como uma caixa negra que sustenta a tríade lacaniana (imaginário, simbólico, real), é fundamental para a própria existência das sociabilidades.
O laço social é criado pela partilha de crenças e de tarefas que ligam as pessoas a uma realidade vivida como “natural”, tornada espontânea pelo “habitus” e portanto continuamente reproduzida (até certo ponto, pois há momentos de ruptura ou de inovação acelerada) como a única possível. Permeada embora pela linguagem, o que de mais importante nela ocorre é em geral da ordem do subentendido, do não problematizado. A psicanálise lacaniana também não visa, como se depreende do que foi dito, desvelar um suposto estrato profundo do ser humano, individual ou colectivo, como muita psicanálise fez. A relação analisado-analista (este último, ou melhor, a função que ele exerce, investida pelo primeiro na categoria de “sujeito suposto saber”, permitindo a “transferência”) não visa chegar a uma conclusão, à decifração de um enigma ao modo detectivesco, mas tão somente estabelecer um tipo particular de encontro entre dois seres, que, a ser bem sucedido, transformará ambos e ajudará aquele que foi procurar quem o escutasse. A psicanálise, neste sentido, e se bem entendo, não é suturadora de feridas sociais ou pessoais, mas tão só uma prática que serve de apoio a um indivíduo sofredor,
Os rituais formais, momentos especiais de performance, correspondentes à junção de pessoas num determinado espaço/tempo (como por exemplo os ritos de passagem) são justamente muito importantes neste campo, pois deixam marcas nos participantes que se repercutem neles (mesmo que inconscientemente) para o resto da vida.
Mas na verdade a(s) fantasia(s), o desejo, é o que conduz o ser humano. E essas fantasias são também a “alma” do teatro formal, quer dizer, do teatro como espectáculo, como objecto para ser visto a certa distância, distância que por exemplo já não acontece no ritual ou na performance moderna, onde a divisão actor-espectador se dilui. O teatro é um jogo, uma brincadeira, muito importante, diria vital, porque nela se podem plasmar as nossas ambiguidades, as nossas fantasias, até um ponto praticamente ilimitado, servindo de contraponto às misérias da rotina quotidiana.
No dia a dia urbano lidamos com pessoas que são para nós em larga medida incógnitas, com as quais temos uma relação parcelar, de tipo “funcional”. As pessoas pedem-nos uma informação, um produto ou um serviço, “assediam-nos” para obterem de nós assentimento para algo que desejam fazer e para o que a nossa opinião ou decisão conta; e, uma vez obtido o que desejam, desaparecem por um tempo mais ou menos longo. E cada um de nós faz o mesmo. Mas em esferas progressivamente mais íntimas, este tipo de quase anonimato vai dando passagem a relações cada vez mais densas, emotivas, e portanto também empenhadas e conflitivas (de que o “casal” pode ser um dos paradigmas), porque a acção do outro influencia e condiciona mais ou menos o cerne da minha própria autonomia, a minha esfera de privacidade. Aí, torna-se essencial a confiança, isto é, um mínimo de estabilidade na fundamental acção do outro, no sentido de conseguir um tono de fundo sobre o qual se poder desempenhar um conjunto de papéis que tragam um mínimo de satisfação estabilizada, a longo prazo, a cada um dos intervenientes. É certo que qualquer forma de estabilidade (aparente, encenada, mais ou menos “real”... as distinções são como todos sabemos do domínio do apenas imaginável) está hoje em crise, devido à centração geral sobre o indivíduo abstracto e a sua mítica (in)felicidade.


3. Olhar para os seres humanos anteriores (e exteriores) à nossa cultura greco-latina, por sua vez de raiz próximo-oriental, isto é, ser um arqueólogo como eu, que se dedica ao “passado pré-histórico”, significa ter sempre em mente a ideia de que passado, presente e futuro são três modos do mesmo, mesmo esse que ocorre na minha consciência, ou na nossa consciência colectiva de ocidentais – ou seja, uma representação - senão vou projectar ingenuamente numa humanidade-outra (ainda por cima imaginada por mim) aquilo que é específico dessa minha cultura ocidental, cristã, moderna, etc. Ou seja, fecho o círculo da tautologia.

Esse descentramento filosófico, antropológico, é criticamente importante. Por isso perceber o que eventualmente há de constante (se é que o há) e o que há de contingente na história do ser ambíguo por excelência que é “o humano” habilita-me a tentar compreender outras humanidades, outras formas de criação (de encenação) da identidade, tanto individual como colectiva. Essa obsessão de entender o Outro, de representar o Outro, de re-apresentar (representar, encenar) o Ausente, é aliás tipicamente ocidental. E a própria ideia de “outras humanidades” é em grande medida típica deste pensamento totalizador, absorvente, ávido de tudo preencher, que herdámos do moderno racionalismo, no qual fomos “criados”. Essas “outras humanidades” são em grande (para não dizer em total) medida apenas construções nossas. Mas impedirmo-nos de as conceber não seria também uma centração impensável em nós próprios, uma forma de solipsismo? Tentemos desenvolver esta questão, que implicaria uma metafísica da ausência e da presença, e uma reflexão sobre o tempo, que em última análise escapa à minha formação de arqueólogo e, mais basica e longinquamente, de “historiador”.
Circunstâncias várias e muito complexas fizeram com que a nossa cultura se preocupasse inusitadamente até hoje (e cada vez mais) com a fixação, ou seja, com o estabelecimento de formas de registo e de arquivamento por meio de sistemas se signos extremamente abstractos e permitindo ao mesmo tempo uma variedade tendencialmente infinita de actualizações (de usos).
É certo que a escrita, considerada como uma característica da “civilização e do Estado”, é comum a muitas sociedades que dantes chamávamos “complexas” (embora os incas tenham construído um imenso império sem ela). A escrita é uma forma de fixação, mas de início estendia-se a âmbitos muito limitados da realidade (contabilidade, mitologia, anais, ou seja, elementos ligados ao controlo da riqueza e do poder simbólico). No entanto, por exemplo, a anotação musical clássica da Índia nunca pretendeu ser exaustiva, deixando larga margem para a interpretação, como aliás praticamente pressupunham estruturas melódicas muitíssimo complexas.
Há portanto uma parte da realidade que sempre resistiu à fixação, ou que em muitas “culturas” nunca se procurou (ou imaginou querer) fixar; e tal se verificou mesmo na nossa, antes de aparecerem as formas da modernidade, do registo cada vez mais preciso (o desenvolvimento do poder burtocrático). Mesmo assim, e por muito mecanizado e codificado que esse registo seja hoje (eu sou sobretudo um número, de identidade, de contribuinte, etc.), há sempre algo de essencial que fica à parte, em anexo: a minha imagem (foto de “tipo passe”), a minha assinatura (escrita pelo meu pulso), o meu historial (o código permite o acesso a um registo de eventos que me situam e circunscrevem, que “me contam”, o meu “cv”). E embora tudo isso seja essencial para efeitos da minha “administração” por parte do poder (da minha posição de disponibilidade permanente para ser con-firmado, identificado, interpelado, certificado por ele), eu sei bem (cada um de nós sabe bem) que a minha “totalidade” como pessoa não entra nos arquivos, não é em última análise arquivável, mesmo que sejamos figuras públicas “dignas” de biografias. Porque essa totalidade não existe, mesmo depois da minha (da nossa) morte. Não é possível reduzir a realidade ao seu registo (para grande desespero dos burocratas; e a arte, entre tantas manifestações vitais, está aí para o provar, apesar de todas as suas “crises”).
Quer isto também dizer que olhar, observar, registar (mesmo cientificamente) é sempre colocar-se num ponto de vista, situado historicamente, encontrar um “fio à meada”, o que pressupõe uma evidente interferência do observador no observado. O produto da observação é sempre o resultado de um diálogo contingente dos dois.
As ciências sociais, as “humanidades”, e as próprias sociedades com as quais elas interagem em ambos os sentidos, têm procurado desenvolver conceitos, métodos, procedimentos que permitam uma fixação de realidades, um isolamento de “partes” em relação ao “todo”, para que se tornem mensuráveis e permitam o estabelecimento de invariantes a diversas escalas e níveis. Mas as comunidades, as identidades, as tradições são, como se sabe bem, realidades imaginárias, invenções que se tentam estabilizar (sob a forma de patrimónios acumulados) contra a própria fluidez da vida (incluindo as suas formas expressivas, performativas, no sentido mais geral), ela mesma (património “imaterial”) já arvorada em bem por excelência a preservar, a lacar.
Os próprios textos literários (incluindo os dramatúrgicos) são evidentemente formas de fixação, não de uma realidade externa (sentimento/imaginação do artista, contexto social, etc.), anterior/exterior a eles, mas de algo que se vai construindo durante o próprio processo da sua concepção: há aí, como em todos os campos, um certa “autopoiesis”, onde o papel da improvisação, da intuição, é crucial. Por isso muitos estudiosos do literário preferem uma “close reading” (quase um fechamento crítico no que os textos “dizem por si”) a uma “distant reading” (em que os textos seriam tendencialmente explicados pelos seus pre-textos, contextos, etc., quase numa perspectiva histórico-sociológica). De facto, por muito contextualizado que seja um texto, e que isso seja indispensável ao acesso aos seus “sentidos” (intertextualidade – nenhum texto parte do nada) o que de mais pregnante ele tem, o que faz dele um texto único, é precisamente a sua imprevisibilidade, o que nele nos surpreende (nos prende, nos fixa a atenção), e é irredutível a qualquer explicação.
No entanto, os críticos, os analistas, os estudiosos e os historiadores entretêm-se a tecer periodizações, escolas, movimentos, influências, enfim, fixações que aos artistas suscitam por vezes uma reacção estranha: encantados por alguém se interessar em dissecar o seu trabalho (é para os leitores que afinal escreveram), mas desejosos de não irem demasiado por aí, no sentido de, com tanto conceito presente (sempre um modelo ou receita) secarem a própria fonte da criatividade. Que foge sempre, está sempre a uma certa distância do pre-visto. Isto não é sacralizar a arte ou o texto literário: pelo contrário. É dissolver um pretenso sentido subjacente, último, do mesmo, nas suas múltiplas, infindas leituras e reactualizações, reinterpretações, reactualizações.
Uma peça de teatro pode ser lida (como um romance ou pooema), mas de facto vive sobretudo pela performance, pela encarnação que permite, pela sua pública presentificação, única e irrepetível, pelo elo de emotividade que se estabelece naquele momento preciso entre artistas e público, entre cada personagem e as outras, e entre todas e cada elemento do público. Ora, se isto já é assim para o teatro “tradicional”, muito mais o é para a moderna performance, que desloca o eixo da própria teatralidade. Não se trata de encarnar personagens, mas de se apresentar a si mesmo (por parte do “performer”) como personagem encarnando-se ali, no momento, com mais ou menos guião, com mais ou menos improvisação, com mais ou menos troca de papéis entre espectadores e actores (tendencialmente, como num ritual informal, esta dualidade dissolve-se e o próprio “espectáculo” é a vida toda, e não uma “cena” distante).
Estas reflexões são-nos úteis para a arqueologia. Esta, em vez de ser uma actividade neutra, repetitiva, para desvendar e expor algo prévio, que se desoculta – que é aquilo que a experiência mais evidente nos parece impor como verdade, como realidade indesmentível, como “património” hirto – é uma actividade de criação colectiva, em que cada momento é rigorosamente irrepetível. Dir-se-á: é assim em toda a actividade humana. Decerto, mas aqui em arqueologia o mais importante não está necessariamente do lado das invariantes, do que extraímos, mas do lado da experiência em si, que incorporamos. Por isso uma monografia exaustiva de um sítio exaustivamente bem escavado pode existir – e quem nos dera que existissem muitas – mas não esgota a vivência que a escavação, que a discussão com os autores da mesma, que a visita frequente àquele local implicam. Ou seja, há um lado performativo na arqueologia que se prende com o irrepetível da experiência e com o facto desse irrepetível ser tão importante, ou mais, do que o que se acha como invariante, como integrável em taxonomias e em princípios gerais. É difícil aceitar isto após décadas, séculos de realismo ingénuo e de positivismo, eu sei. Mas é uma questão de assumirmos, como valor, aquilo que todos sentimos, num ou noutro momento, como insuficiência ou perda.
O passado não “está lá”, nessa metafísica da presença, está nas nossas imaginações, nos nossos raciocínios, na nossa acção dialógica com os materiais, está na permanente efígie da sua ausência, que nos motiva e que nos força a continuar. Está na própria paixão de trabalhar, de “pôr em cena”, na vida real, num sítio ou paisagem, um conjunto de acções concertadas por forma a encontrar um sentido colectivo para o facto de estarmos ali, coisas e pessoas e paisagem. Não um sentido oculto que estivesse escondido por detrás ou debaixo das pedras, como se o “passado” jogasse connosco, infantilmente, ao gato e ao rato.
O passado de um sitio é tudo o que ali aconteceu antes e que podemos imaginar, com a ajuda dos materiais e no encontro com a sua resistência (na sua “mudez”), na perplexidade da nossa ignorância. Porque muitas “especialidades” seriam necessárias para conseguir uma experiência mais diversificada e rica do que a dos simples arqueólogos – mas só estes têm paciência para permanecer no local, porfiantemente, e fazer a sua análise "anatómica”. O sentido de um sítio é multivocal, múltiplo: é o que cada um tira das sua experiência dele, do que leu sobre ele, do que conseguiu “inventar” sobre ele e que estabelece uma textura de inteligibilidade comunicável, partilhável, discutível, sempre em aberto. E mais rico seria se mais investigadores, cada um aportando a sua experiência própria, quisessem participar desse evento único que é sempre uma escavação, e cuja unicidade em última análise não é redutível a relatórios nem a arquivos. É visceralmente avessa à universalidade irracional dos arquivos, alucinatoriamente imposta como racional.
A arqueologia que não compreende isto corresponde à sua própria castração. É estéril no seu afã imparável e no seu gasto de recursos para criar discursos mitológicos. É uma má "peça", porque parte de um equívoco, de uma mentira. Esta não convence ninguém, só se impõe pela autoridade dos protocolos, pela arbitrariedade das regras. É desvairada, julgando que quem pensa “pós-modernamente” é que está a delirar. Sofre da pior doença que se pode ter, que é a ignorância da mesma, enquanto as metástases se propagam. Muita da arqueologia que se faz é pois, em termos de conhecimento, inútil e não muito digna, só se explicando a sua propagação pela criação de narrativas mitológicas que alimentam a imaginação corrente e a indústria cultural e turística. É uma produtora de “estórias” e de lugares desgarrados, sem qualquer verosimilhança, numa paisagem pós-moderna de facto cada vez mais inoperante para nos fixar a atenção e a emoção, a vivência. Não há tempo nem espaço para essa fixação, para essa interrupção imaginária do fluxo. Por isso circulamos de sítio para sítio, de caso arqueológico para caso arqueológico, de descoberta em descoberta, num afã que se alimenta da nossa própria frustração. Alguns acreditam que não é assim, prosseguindo rotinas, acrescentando observações, convencendo-se a si próprios, na beatitude da repetição. Trata-se, de facto, de um ritual.
Num quadrante problematico diferente, um colega (Cornelius Holtorf, da Universidade de Lund, Suécia, um “discípulo” de I. Hodder) dizia há dias na FLUP que podemos não saber as respostas sobre os significados que as coisas tiveram no passado, mas podemos ao menos fazer as perguntas. E essas perguntas não precisam de se dirigir a um passado como sequência linear até hoje, mas a um passado em que cada momento imaginável por nós, hoje, teve também uma experiência de passados anteriores. Ou seja, as relações deixam de ser de nós a um passado como sequência “estratigráfica” presentificável, mas podem estabelecer-se entre passados diversos. Por exemplo, o que é que num sítio megalítico fariam “romanos” (pessoas da época romana) em determinado momento, quando o monumento já lá estava, provavelmente em ruínas? Que poderá ter pensado um oficial do séc. XIX que lá deixou cair um botão do casaco quando esteve no local, onde não só certamente a anta como talvez o material romano, à superfície, podiam ser realidades visíveis?
Penso que esta perspectiva é ainda uma variante do realismo reconstrucionista (passe a expressão), isto é, que busca mais avidamente que qualquer arqueologia anterior a “totalidade” da significação do sítio, descentrando o presente, e instalando a escavação como mais um momento da história do local. Por isso o autor fala de passar de uma arqueologia contextual (a que Hodder propôs) para uma arqueologia em contexto, ou seja, assumida como uma intervenção mais, e onde cada acto, desde o pequeno-almoço ou a dormida de descanso após a refeição, até aos artefactos deixados pelos visitantes no local, têm num certo sentido “a mesma importância” de um resto de ânfora romana ou de uma estrutura pré-histórica. Em parte o autor tem razão, ao valorizar a experiência presente e a totalidade do sítio (a recolha tendencial de tudo o que o solo contém, o que em última análise é difícil de delimitar), no fundo como um cenário de performance. Mas por outro lado parece dar razão àquela frase que ele próprio citou, de um céptico, segundo a qual se o arqueólogo moderno nunca encontrou a resposta adequada às suas perguntas, o arqueólogo pós-moderno nunca encontrou mesmo as perguntas.
Creio que a esta perspectiva, que tem a sua coerência, não o nego, subjaz um profundo cepticismo. A arqueologia de campo (não considerando agora a prospecção) é nesta óptica apenas um exercício, no presente, de um conjunto de pessoas que “escavam”. E se uma destas perde um anel no decurso dos trabalhos, ele é erigido em dado arqueológico ao mesmo título de qualquer outro, porque ao menos é decifrável: sabe-se a data de quem o usou e os sentimentos que experimentou quando o perdeu e o recuperou.
Trata-se afinal de uma etnografia experimental do presente, de um presente construído e assumido como puro “teatro experimental” num sítio arqueológico, digamos assim, não sendo de estranhar que uma das participantes tenha afirmado que se sentiu calma como nunca em qualquer escavação arqueológica anterior. De facto, não havia tensão. O resultado do trabalho era ele mesmo, não estava criado um objectivo de “resistência”, uma dificuldade de "interpretação", uma vontade de responder a perguntas realmente incómodas, que têm a ver com temporalidades que se podem circunscrever, com “tecnologias” que se devem descrever, com o elencar de hipóteses interpretativas que apesar de tudo se devem explicitar e tentar documentar e discutir.
As pessoas estavam a registar, antes de tudo, a sua própria estadia e acções no local, num movimento totalmente do tipo da “pescadinha de rabo na boca”, isto é, estavam a descobrir-se apenas a si próprias, sem qualquer outro referente ou problema que lhes viesse perturbar essa performance, no sentido mais chão desta palavra. Uma certa inocência e um certo hedonismo encontram aqui, a coberto da arqueologia, um cenário ideal para se realizarem. Com todo o respeito pela experiência e pelo colega que benevolamente no-la veio transmitir, e como aliás pessoalmente lhe disse, não partilho dessa pretensa radicalidade, porque eu foco o meu interesse, apesar de tudo, numa série de observações sobre a especificidade dos lugares e sobre informações que apesar de tudo eles me dão. Claro que essas “respostas” têm íntima conexão com as perguntas que eu faço. Claro que eu tenho de negociar com outros quais as boas perguntas e as pertinentes respostas, Claro que tudo isso é um processo contingente como já disse.
Mas não pode ser puramente auto-referencial, isto é, tem de se reportar apesar de tudo a um elemento externo à equipa que circunstancialmente ocupa um local, o anima, e ali realiza um conjunto de tarefas. Esse elemento externo, esse questionário de pesquisa, esse “problema” que se quer resolver é variável, contingente, politico; é uma espécie de caixa negra ou ponto de embraiagem – mas tem, apesar de tudo, que existir. Não é a “reconstituição do passado”: é sobretudo o registo, a narração e a interpretação retrospectiva dos meus esforços (e dos da equipa no seu conjunto, evidentemente) para delimitar as questões e as interpretações que o confronto com uma certa sequência de acções não previsíveis me coloca. Esse registo não é, evidentemente, uma descrição de emoções descontextualizadas, mas as interrogações que uma determinada experiência, cujas condições exactas tenho de descrever (e pelas quais tenho de responder perante uma comunidade), me suscita. Não são problemas vistos como resultado de uma exumação: é a metodologia da exumação, ou, se quisermos, da fabricação do local por nós a partir de uma matéria-prima que em parte está lá, e não é delimitável “a priori”, nem enquadrável em categorias universais, apriorísticas, que está aqui em causa. Este ponto é crucial.
A arqueologia que defendo é uma arqueologia tensional, que parte de problemas para encontrar outros problemas, e não uma arqueologia para nos acalmar, quer dizer, para nos fazer “passar” uma qualquer “experiência agradável” num local, de algum modo achatando todas as observações numa mesma dimensão valorativa (ou em função das emoções/impressões que me despertam). A ausência de opções não é solução, e a assunção de que a escavação é sempre uma destruição/criação, é, a meu ver, necessária. É a tensão da criatividade interrogante, própria da experiência em geral, da “artística” de forma óbvia, mas também da “científica” no seu melhor, que eu advogo. Uma “paixão” inegável mas que se mescla com a delimitação de questões muito concretas e partilháveis, sempre em negociação no processo de pesquisa, conforme os interlocutores/trabalhadores presentes. É um arqueologia onde eu tenho de me explicar a intervenientes ou visitantes que não são arqueólogos, e desdobrar o meu discurso numa série de outros sem nunca defraudar, ou relativizar em extremo, o que eu penso que é a mais adequada linha de conduta, demasiado consumidora de tempo e dinheiro, de recursos e energias, para não me exigir uma constante atitude de opção e portanto de tensão.


4. Quando um “sítio arqueológico” é criado para visita pública, como “dispositivo comunicacional e microcosmo vivencial” incluído numa certa paisagem, isso insere-se, como se referiu, numa atitude moderna ligada ao turismo, à viagem, à mobilidade, ao prestígio pessoal (de “ter estado mesmo lá”), ao conhecimento que valoriza muito o visual e a experiência directa, táctil, sensorial, e o seu registo para ostentação ulterior, etc.

Claro que há aí, pressuposto, todo um lastro de ingenuidade sobre a “verdade” do visível e do palpável. Por ser “material”, o objecto, sítio ou paisagem arqueológicos passa por ser a re-presentação de algo acontecido, de uma verdade. Não o é, nem podia ser, porque as categorias de passado, presente e futuro são produtos da nossa imaginação, quer dizer, são formas conceptuais de organizarmos a existência como sequência.
O objecto ou sítio arqueológico substitui as teofanias, ou seja, as irrupções de Deus no real: é, a seu modo, sagrado, representa uma laicização dos signos da eternidade, do que escapou ao tempo, e por isso o “grande” achado é o achado intacto, intocado, tão completo quanto possível. Pompeia ou o túmulo de Tutankamon são exemplos disso. O fascínio de contemplarmos o tempo para alem da nossa individual e diminuta temporalidade: a própria imagem do sublime, do belo que está para além do belo, porque é também securizante, isto é, porque parece sugerir que neste mundo em permanente fuga para a frente podemos, de vez em quando, entrever outro(s) em que algo parou, e não envelheceu, ou, pelo menos, sobreviveu. Por isso a grande descoberta arqueológica é uma das formas modernas do “milagre”, do sinal do divino presentificado. E talvez que, no Portugal de Salazar como no de hoje, Fátima estivesse e esteja de certo modo destinada a substituir a arqueologia que não tivemos nem temos. Para quê “lugares sagrados” do passado se enormes massas populacionais consumiam e cada vez mais “consomem” lugares sagrados do presente, ainda por cima monumentalizados em grande escala por um poder terreno legitimado religiosamente?
O desenvolvimento do turismo, incluindo o religioso, como uma forma de peregrinação moderna, inclui evidentemente a arqueologia e o património, mas estas tendem a ser alvos de grupos sociais médios ou altos, de pessoas com um mínimo de escolaridade. Porque a arqueologia e o seu fascínio se liga à laicização da sociedade e ao processo do individualismo contemporâneo, em que cada um quer ter acesso directo, pessoal, emotivo, íntimo, ao passado da humanidade no seu conjunto. Só o poderia desejar quem se destacou da crença nas explicações teológicas da origem do mundo e seu governo, no creacionismo e seus derivados, e procura uma cosmologia e uma cosmogonia de substituição, que lhe é oferecida pelas ciências.
Se essa fuga ao tempo que o objecto arqueológico permite palpavelmente experienciar é um facto, a múmia, por exemplo (sempre é a zona dos museus mais visitada e há muitos tipos de múmias, não são só as egípcias... o importante é que se esteja perante um corpo incorrupto, que era uma antiga forma de santidade) é a relíquia por excelência, a cápsula de tempo colada à imagem projectada de nós (de um ser humano) como ser atemporal (pelo menos numa parte de si mesmo), e também como fotografia do instante da morte, ou seja, do limiar e do ponto de encontro entre a contingência e a imortalidade, entre o espírito e a carne: o lugar do cadáver, fantasma por excelência. Uma figura que re-presenta uma ausência definitiva e que no entanto está ali, na sua presença de pessoa, dir-se-ia que mais presente do que se estivesse viva, porque finalmente reduzida ao seu corpo hirto, à sua estátua, ao seu ícone, tal como na fotografia. A figura do cadáver, da múmia, do sítio petrificado no tempo são fantasmas que povoam o imaginário colectivo, mas podem ser tão atraentes para as pessoas que fizeram o luto da crença ingénua numa vida eterna, como para aquelas que nela ainda acreditam – são atractores universais.
Aliás, os sítios arqueológicos são lugares de culto da modernidade e a problemática em torno da sua “animação” e da sua “transparência” está intimamente ligada a essa margem de sombra que consiste na ambiguidade ou duplicidade inerente aos lugares de culto: eles têm de ser entendidos pelos fiéis, esse entendimento tem de ser comungado por todos, de criar um sentido implícito de “comunitas”. Mas também tem de haver no local de culto uma pregnância de sentidos que o mantenha como um sítio vivo, onde se dão transformações, milagres, curas, acontecimentos (públicos ou privados) e performances de toda a espécie, que levem as pessoas a frequentá-lo, individual ou colectivamente.
É neste contexto que nos é pedido, a nós arqueólogos, que façamos o necessário para uma utilização didáctica dos sítios, por exemplo, e que seja mais ou menos “séria”, baseada na nossa própria vontade de os entender e de os tornar inteligíveis, dependendo portanto de uma investigação científica subjacente e, também, da colaboração de especialistas da comunicação no seu sentido mais alargado (que de certo modo tendencialmente somos todos).
Um sítio pode ser “reactivado” por uma performance, mas não no sentido passivo, “decorativo”, apenas alusivo, de ele ser utilizado como um mero “cenário” estático ou activado indirectamente (como por exemplo quando se monta uma ópera ou produz um concerto num teatro grego ou romano, o que é hoje frequente, em festivais também relacionados com o turismo, etc.).
Um sítio pode ser um produto de consumo fácil (o que se poderia chamar “fast past”), quer dizer, uma mistificação quase “disneylândica” (com a diferença de que quando vamos a um parque arqueológico podemos ingenuamente julgar ou crer estar a ouvir/ver/experienciar “a verdade” e não “a fantasia”).
No extremo oposto, um sítio (arqueológico, ou criado hoje como parque temático ou “local de lazer”, de ocupação de tempos livres) poderia convocar pessoas (através de um sistema de selecção anterior, por exemplo) para “experimentarem” com os arqueólogos, para realizarem “simulacros” de acções ou tarefas “do passado”, para em suma contribuirem mesmo com o seu trabalho voluntário para actos de investigação e em particular de arqueologia experimental.
Esta problemática tem também a ver com a filosofia da conservação e restauro intimamente ligada à discussão sobre o “património” (sobretudo o arquitectónico e artístico) que desde o séc. XIX se desenvolve, balanceada entre extremos mais puristas (de “tipo John Ruskin”) e outros mais “voluntaristas” (de tipo Viollet-le-Duc e seu “restauro estilístico”) passando por Camillo Boito e seu “restauro científico”, etc., etc. (ver González-Varas, 2003).
De discussões circunscritas a arquitectos e outros elementos da elite, o problema foi passando para o domínio público, nomeadamente com as grandes guerras que afectaram a Europa e com a necessidade de actuar depressa (conjugando a preocupação “científica” com a urgência de travar maiores degradações) e também, com uma cada vez maior pressão do turismo para um ordenamento do espaço que o tornasse num cenário de fruição “moderno” e atraente, em relação com o consumo museológico-turístico, ansioso de “ver de perto”, fotografar, experienciar e, numa atitude de “zapping” (constante mudança de alvo da atenção), “passar a outra” experiência.
Mas, mesmo aqui, à medida que o turismo de massas se intensificou, levando as pessoas “comuns” (menos letradas, ou com menos preocupações intelectuais, isto é, especializando o fruir pelo fruir, com a superficialidade inerente) a toda a parte, as elites foram também criando os seus alvos e destinos de “distinção”, ou seja, prosseguindo a velha economia: o valioso é o raro e o partilhado apenas por grupos relativamente fechados, onde “se está entre os seus”, entre “os pares”.
E entre essas atitudes/comportamentos de distinção está obviamente a contemplação demorada, a frequentação de “produtos” que exigem uma competência e um tempo que não está (que se não deseja muito preocupadamente que esteja) ao alcance das “massas”.
Claro que a atitude politicamente correcta (além de economicamente viável) é “franquear as portas” a toda a gente (desde que tenha tempo, dinheiro e desejo de “penetrar” nesses “santuários” urbanos de iniciação estético-filosófico-científica; isto é cada vez mais frequente entre jovens já escolarizados desejosos de entrar nas esferas de elite, de adquirir capital simbólico), assistindo-se por vezes, no final de certas conferências, por exemplo, a um período embaraçoso. É que há por vezes pessoas que estão ali mas depois se chegam a irritar, ou frustradas por não terem entendido nada, ou frustradas por intuírem de forma difusa que estão “out”. Todos estes jogos (com os moderadores a acalmarem educadamente algum exaltado) e circulações de mensagens fluidas são muito interessantes de observar, não pela degustação do pitoresco, mas por sinais, que são, de toda uma atmosfera cénica, de toda uma imensa representação.
Perdoe-se-me num texto suposto ser sobre arqueologia e teatro utilizar tantas vezes meras metáforas teatrais. Isso também se deve à escassez de tempo que nós, universitários, temos para escrever estes textos(3).
A problemática da “musealização” dos sítios e paisagens (parques”) arqueológicos nunca foi abordada em Portugal de forma muito extensiva e profunda.
Da parte do ordenamento do território (geografia, etc.) essas relações estão a começar. As pessoas das artes performativas já têm muito que fazer e com que se preocupar, sobrevivendo muitas iniciativas que continuam com grande dificuldade, fora dos limitados círculos do estrelato, círculos esses que (aqui como noutras áreas – o nosso “main stream” é, em todos os campos, um regato com pouco débito) têm circuitos de produção muito próprios e limitados em Portugal. Os arquitectos poderiam interessar-se mais do que o têm feito por uma articulação connosco, que parece obviamente necessária a todos os níveis (e não só para as épocas mais recentes, isto é, desde o período romano, e para os edifícios mais imponentes). Sem querer ser abrangente e injusto nesta minha afirmação, a área da arquitectura está hoje em geral muito voltada para o contemporâneo, pouco lhe interessando ultrapassar a “história da arquitectura” dos grandes manuais, ou as arquitecturas ditas vernáculas (que os inventários feitos ainda no tempo da Associação dos Arquitectos Portugueses tanto valorizaram). Mesmo na interface com a antropologia (etnologia), quem prossegue os estudos e livros magníficos de autores como Enrico Guidoni (1977), por exemplo? Há núcleos muito interessantes de pesquisa, mas ainda interagimos muito pouco, nós arqueólogos, e eles, arquitectos interessados em “culturas não ocidentais”, passe a expressão. E entretanto cada vez mais o turismo exalta esse exótico, e o “restaura” melhor ou pior para os desejados visitantes, numa “pressa” que lembra, noutro contexto totalmente diferente, a do após-guerra. Algumas “kasbashs” de Marrocos, a Sul do Atlas, estão a ser transformadas em hotéis de cinco estrelas, o que até pode ser uma boa solução para não se desfazerem em pó. Não há aqui a nostalgia de uma “pureza original romântica”. Mas a arquitectura é coisa demasiado importante para ser só deixada aos arquitectos...
Muitos limitam-se hoje em dia a fazer e concretizar projectos que tornem os locais úteis e visitáveis, projectos que muito legitimamente têm a sua assinatura. Justapõem uma obra contemporânea a um sítio antigo, e o diálogo é tanto mais pobre quanto o sítio antigo é mais opaco.
Mas, a montante, muito interessante seria a criação de equipas interdisciplares de pesquisa, para haver hibridação entre pessoas e ideias, e não apenas justaposição. Qualquer um sabe que escavação, conservação, restauro, musealização (inclusivamente todas ligadas à experimentação) podiam e deviam ser coetâneas e interligadas, mas a maior parte das vezes o próprio “dono de obra” não tem dinheiro nem meios para custear isso. E sobretudo não tem, radicalmente, tal preocupação. O que é importante é que o sítio seja visitado, tenha um centro de acolhimento, percursos, as pessoas saiam de lá satisfeitas, e façam algum gasto.
Realiza-se uma inauguração, há festa e autoridades, e está feito... porém, não seria a própria utilização dos sítios como locais de ocorrência de eventos que poderia gerar receitas para a sua própria manutenção, conservação, renovação como pólos de atracção, onde é preciso estarem pessoas (guias) a atender, que custam dinheiro, e toda uma permanente vigilância que é um serviço implícito na sustentabilidade turística pretendida? As instituições e os técnicos deveriam discutir mais entre si, nomeadamente no contexto do novo quadro comunitário de apoio (QREN- Quadro de Referencia Estratégica Nacional - ou seja, dinheiro da União Europeia para aplicar na formação, que já se percebeu ser a base de tudo), acções concertadas para a sustentabilidade e para o bom uso dos recursos.
É pena que alguns sítios e circuitos arqueológicos não sejam percebidos, ainda, como dos locais mais belos que se podem visitar, como dos cenários mais interessantes para lá acontecerem coisas. Nomeadamente performances! - mas que para tanto exigiriam algum investimento anterior, e nem sempre tão grande como se imagina.
A lógica da nossa sociedade tem sido contrária a esses princípios que pediriam outra temporalidade e outro empenho de todos nós, quer dizer, outros níveis, mais elevados, de exigência cultural e de consciência democrática. Belas palavras, inocentes desígnios!
Mas sem se lutar pelo difícil, nem mesmo o mais óbvio e simples acontece... é preciso concretizar, passar ao acto, aceitar a imperfeição.

5. Por fim, a consciência coreográfica de um sitio, a percepção de que a própria intervenção arqueológica num espaço é uma performance, pode-nos ajudar a perceber as múltiplas formas de vivência e de conceptualização, consciente ou inconsciente, verbalizada ou não, que a experiência de um determinado sítio pode eventualmente comportar.


A experiência “teatral” e a experiência arqueológica (que ambas partem de um património e de uma cultura escrita para a tornar em acto corporal, em vivência física, mas também evidentemente global) têm assim, pois, muito em comum, e são dois campos que se podem retro-alimentar mutuamente, para não dizer que se confundem, como hoje acontece aliás em todos os domínios do saber e da experiência.
Eu posso sentir-me (e sinto-me) um actor, e sobretudo um performer, enquanto escavo; qualquer participante numa escavação se pode sentir numa performance; e qualquer visitante de um sítio “vivo” (em estudo, em restauro, em âmbito de ser “explicado” por imensos processos de reactivação, de debate, de interpretação) é ele próprio espectador e até actor, se quiser entrar em interacção com quem ali está, com o que ali está a decorrer.
Para além das meras adições de saberes, hoje o que está em causa é a superação das barreiras entre os saberes, é isso que dá sentido às nossas fantasias de futuro: a possibilidade de abrirmos novas fronteiras, de voltarmos a ser pioneiros num mundo já gasto e explorado, recuperando o sentido, tão tipicamente ocidental, de aventura.
Como se sabe, coreografia é uma palavra que se refere sobretudo à dança. Designa o conjunto de movimentos que uma ou mais figuras descrevem durante a sua actuação, mas também a anotação escrita de tal sequência (de novo voltamos à tradição “fixadora”, registadora, da nossa cultura). Mas, por um lado, a performance moderna diluíu muito as fronteiras entre o teatro e a dança; e, por outro, o bailado ou dança contemporâneos estão muito longe da tradição de espectáculos formais, intencionalmente “separados” da vida, estendendo-se hoje – mesmo que metaforicamente, mas numa metáfora interessante – à totalidade do nosso comportamento. Mais ou menos desajeitados, todos dançamos, todos estamos em movimento constante, todos nos despaisamos para conhecermos e sentirmos fisicamente outras paisagens, realizarmos outros movimentos. A experiência pensa-se cada vez mais fenomenologicamente, algo de muito variado, complexo e subtil embutido na acção, embraiado pelo desejo. Valorizamos o sensorial e o físico, desdenhando de um conhecimento “descarnado”.
Ora, a movimentação em contexto de escavação, ou de um local arqueológico, constitui uma coreografia muito particular. Só quando observamos um vídeo de uma escavação (que devia ser sempre obrigatório em trabalhos deste tipo, precisamente pelo seu carácter de registo de um evento único, e porque muitas realidades são eliminadas no seu decurso – o arqueólogo é de certo modo como um actor que vai desfazendo e fazendo o cenário durante a “peça”) nos apercebemos disto em toda a sua evidência. E o mal-estar físico, a disciplina do corpo que o trabalho de campo impõe (como a dança ao executante que aspira a ser perfeito) pode transmutar-se num meio de expressão da pessoa diferente. Se tivermos consciência dessa diferença, poderemos aplicá-la à imaginação do que um sítio poderá ter sido para quem ali “viveu” ou para quem ali, afinal, realizou performances diferentes das nossas.
Não se trata, ao modo de Collingwood, que tanto influenciou I. Hodder, de nos “metermos” na cabeça das pessoas do passado, de tentarmos reconstituir as suas emoções e intenções, “sentidos” ou “simbolismos” perdidos. Tal como qualquer actuação teatral é sempre uma recriação, até para ser fidedigna, viva, qualquer vivência arqueológica, qualquer experiência de investigação nesta área é sempre algo que se passa a muitos níveis.
Mas, pelo menos, a dois, tanto quanto somos conscientes disso: a de que só durante ela, experiência, nos damos conta da opacidade do mundo, de que cada ideia que temos, cada luz que alumiamos, apenas serve para ajudar a ver, algo espectralmente, tudo que não sabemos. Estamos em pleno teatro de sombras. E, por outro lado, a de que qualquer coisa que descortinamos, a descortinamos aqui e agora.
Como sugeriam os versos de Eliot que citei de início, voltamos sempre ao mesmo lugar. Mas reconhecemo-lo como diferente. Ele ainda é, e paradoxalmente já não é, o mesmo.


Porto, Outubro de 2007.


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- Jorge, Vítor Oliveira (2007 – no prelo), A perplexidade face a face: em torno da ambiguidade radical da imagem como rosto sedutor, e outros problemas do desejo, incluindo o desejo do conhecimento, Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. 47. Um breve resumo deste texto sairá nas Actas do Colóquio Internacional “Los Textos del Cuerpo”, UAB, Março de 2007.
- Jorge, Vítor Oliveira (2007 – no prelo), Algumas notas exploratórias de um tema em pano de fundo: arquitectura e poder difuso – a acção colectiva como forma de construção de sociabilidades em “comunidades da oralidade”, Crenças, Religiões e Poderes: Dos Indivíduos às Sociabilidades (coord. V. O. Jorge e J. M. Costa Macedo), Porto, Ed. Afrontamento.
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(1) Este texto resulta de uma intervenção maioritariamente feita em inglês, cuja gravação infelizmente não possuo, nem julgo que exista. Tenho pena, porque como sabem os que me conhecem, sou um “improvisador” e, ao meu modo (espero que afirmar isso não seja visto como auto-elogio), um “performer”. Quero com isso dizer que, em certas ocasiões (decerto mais ou menos raras, os meus ouvintes julgarão) “me encontro” mais na oralidade do que na escrita. Por isso gosto tanto de “falar”, de me exprimir oralmente, pois nessas alturas julgo raciocinar melhor; aliás, quando escrevo, até certo ponto o teclado embaraça-me muito (como neste momento), porque o pensamento e intuição das conexões conceptuais em múltiplas direcções têm um ritmo e sobretudo uma lógica, uma espacialidade e versatilidade (iria dizer uma dança, já que estamos a falar de artes performativas), que se não conformam com a linearidade do texto e com a lentidão da interacção dos meus comandos com a máquina. Assim se verifica como esta última nem sempre é tão inovadora como isso, até ver; escrever um texto continua afinal a não ser muito diferente do que nos tempos da minha juventude: uma performance bastante redutora, embora, naturalmente, também com as suas vantagens conhecidas.
Em momentos de grande tensão pública, porque normalmente não levo nada escrito a não ser uns magríssimos tópicos, a encenação que representa a apresentação de um “paper” é – permita-se-me a imagem - um autêntico “número de circo” (como se costuma dizer, “sem rede”). Normalmente tenho-me “saído bem”, julgo, e neste caso concreto tive, ao almoço que se seguiu à apresentação, uma “voz” de um colega estrangeiro que mo confirmou. Disse-me que era a primeira vez que via um arqueólogo estabelecer conexões entre as suas matérias de interesse e estudo e o teatro, performance, etc. E sobretudo acrescentou um ponto geral sobre a apresentação que me interessou. Disse que em muitos momentos da mesma (c. de 45 minutos) lhe tinha parecido que eu me tinha perdido em múltiplas direcções e alusões; mas que, logo a seguir, surpreendentemente para ele, me reencontrava, religando os fios dispersos e voltando a abrir noutras direcções. Fiquei lisonjeado, mas a razão maior de referir isto aqui é que tal corresponde precisamente a uma intenção deliberada, não a um artifício momentâneo. Poderia resumir essa intenção – que tem muito que ver com o assunto deste texto – da seguinte forma: se lermos um “paper”, matamo-lo. Estamos a apresentar conhecimento diferido, já cristalizado. Se representarmos o próprio processo de raciocínio perante o auditório (como um actor, na verdade) poderemos captar a atenção mais global, porque emotiva, na medida em que as pessoas sentem que estão a acompanhar a confecção do próprio raciocínio à medida que este se exerce, num verdadeiro processo (estudado) de “desvendamento”. As pessoas sentem a “emergência” do texto naquele momento, a sua corporalidade, através da voz e dos gestos do emissor. É quando se sente “ter o público na mão”. Mais vulgarmente, este processo corresponde ao “pensar em voz alta”, mas se for trabalhado tem um efeito cénico (um efeito de verdade) poderosíssimo. Não estou a dizer que o consiga; estou apenas a referir que é por aí que eu vou. A maior parte das conferências a que assistimos numa vida são momentos a que falta esta componente. As pessoas transmitem “conteúdos” desgarrados da sua vivência naquele momento, quer dizer, fossilizados. É extremamente fatigante. Um mestre absoluto da beleza do discurso oral (como aliás da escrita) é, por exemplo, o filoósofo italiano Giorgio Agamben, que pudemos ouvir em Serralves nos finais de Junho de 2007. A sua conferência constituiu uma verdadeira “obra de arte”, onde a limpidez e a sobriedade argumentativas, a sua própria figura iluminada no meio do palco, valeram (do ponto de vista da inteligência, da compreensão ou incorporação por nós, auditório, daquilo que ele dizia) pela leitura de centenas de livros e pela audição de não sei quantas peças de teatro, se me posso exprimir enfaticamente assim. Sentiu-se ali longos anos de estudo unidos à mais sóbria capacidade de comunicar em directo o que se incorporou, de tal modo que “sai” já de uma forma completamente “natural”, “espontânea”, com um pregnância performativa absolutamente fascinante. São estes grandes mestres que nos compensam da vulgaridade.
(2) Tema de uma mesa-redonda em francês (“La Mise en Scène du Passé”), com diversos antropólogos (Marc Augé e outros), encenadores, pessoas do teatro (entre elas Isabel Alves Costa, na altura directora artística do Rivoli, que comigo colaborou na coordenação do evento), que há anos organizei no Porto, no Teatro Rivoli, e que foi inteiramente gravada (documento que ficou evidentemente naquela instituição, e de que não possuo cópia) com o objectivo de ser publicada nos “Cadernos” da mesma. Factores evidentemente alheios à minha vontade e de IAC levaram a que até hoje essa publicação não tenha visto a luz do dia, o que é de lamentar, dada a qualidade dos debates então produzidos e onde, julgo, pela primeira vez em Portugal este assunto foi debatido de forma inteiramente interdisciplinar, por um amplo painel de pessoas, a quem peço desculpa de não mencionar exaustivamente aqui, nesta simples nota.
V., a propósito, V. O. Jorge (2005), The past on stage, Journal of Iberian Archaeology, vol. 7, pp. 235-243.
(3) Muitas vezes uma pessoa como eu “sente-se entre a espada e a parede”, não podendo nem querendo negar um convite à participação em certos eventos, onde quer ir sobretudo apreender. Essa é a minha principal motivação para, quando me convidam, aceitar. Não tendo dificuldades de expressão oral, a apresentação durante o encontro em geral “corre bem”; o problema é depois a (mais ou menos) dolorosa preparação do texto, que se torna uma obrigação moral (acho lamentável andar de conferência em conferência sem nunca publicar as respectivas comunicações, pois o que é importante é o que fica escrito). Esse problema no meu caso resulta menos de dificuldade de escrita (...) e mais da falta de tempo para, com calma, aprofundar os assuntos, ou plasmar nessa escrita a “profundidade” (preferia chamar-lhe densidade) que já pude alcançar. Se é verdade que a calma total leva à inacção, e que é sempre sob stress que produzimos seja o que for de minimamente válido (a tal relação tensional com as coisas, os textos, as pessoas), também é certo que hoje em dia somos sujeitos a um ritmo que é inumano, ou seja, que não permite atingir os patamares de qualidade em que os vários “pólos” temáticos se uniriam, não ao nível da metáfora fácil, mas no plano, se quisermos, de uma metafórica mais criativa e prometedora de desenvolvimentos ulteriores, para o próprio e para os outros. Trata-se de um trabalho de descarte de banalidades que, em qualquer de nós, embutidos que estamos na lógica quotidiana, são as primeiras coisas que nos vêm à cabeça. Esse descarte, ou “descasque”, implica tempo, que é justamente o que não temos.
(4) Agradeço à Dra. Alexandra Silva (FLUP) algumas sugestões bibliográficas. Faltam aqui muitos autores, alguns absolutamente clássicos ou essenciais, que tenho ainda de reler ou mesmo de começar atentamente a ler, como Julia Kristeva, Patrick Campbell, Sue-Ellen Case, Elin Diamond, Jill Dolan, Josette Féral, Lynda Hart, Peggy Phelan, etc. O “peso da arqueologia” e da vida universitária (desde 1982, apenas usufruí de uma sabática em 1993/94) não me têm deixado prosseguir um caminho que, se o conseguir ainda atingir, talvez possa vir a útil à arqueologia e à sua docência...
Aproveito também para manifestar o meu reconhecimento à Profª. Cristina Marinho (FLUP) pela organização deste excelente Colóquio Internacional e à minha amiga Prof.ª Glória Teixeira (FDUP) a sugestão para participar nele, o que significou para mim um grande enriquecimento.

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