terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Violência divina (no sentido de Walter Benjamin, interpretado por S. Zizek)


"Que é então a violência divina? O seu lugar não pode ser definido formalmente de maneira muito precisa. Badiou escreveu sobre o excesso constitutivo da representação sobre o representado: ao nível da Lei, o poder de Estado apenas representa os interesses dos seus sujeitos; ele serve-os, é responsável perante eles e encontra-se ele próprio submetido ao seu controlo. Mas ao nível subterrâneo do superego [surmoi] , a mensagem pública de responsabilidade desdobra-se na mensagem obscena do exercício incondicional do poder: as leis não me atam de facto, eu posso fazer-vos o que quero, tratar-vos como culpados se assim decidir, destruir-vos com uma só palavra... Este excesso obsceno é um elemento constitutivo necessário à noção de soberania. A assimetria é aqui estrutural, por outras palavras, a lei não pode manter a sua autoridade se os sujeitos aí não ouvirem o eco da auto-asserção obscena incondicional. E a "violência divina" do povo é correlativa deste excesso de poder. Ela é a contrapartida deste, dirigida completamente contra ele para o minar."

Slavoj Zizek
De la démocracie à la violence divine", in "Démocracie, dans Quel État?", Paris, La Fabrique éd., 2009, p.143.

É também neste sentido de obscenidade (ou de porno-grafia, se quisermos) que me tenho referido aqui e ali à sociedade contemporânea... obscenidade de um poder que invoca publicamente princípios que sabe perfeitamente não poder/querer cumprir (nomeadamente são incompatíveis com a temporalidade eleitoral); obscenidade de quem contra o poder político do momento os traz à ribalta visando no fundo apenas substituir um poder pelo mesmo, mas exercido por outros, eles que criticam (e que sabem isso perfeitamente); obscenidade finalmente por parte de muitos que continuam a exercer a vontade do outro como sua, submetendo-se voluntária e obrigatoriamente (?) ao teatro do debate (cuja encenação é sempre do poder, que enquadra as margens como elementos de mise-en-scène) como se fosse do seu interesse, quer dizer, como espectadores a quem pelo menos fosse concedida a possibilidade de discordância estrutural. É a comédia democrática, nomeadamente neo-liberal, que assenta as suas raizes numa dicotomia muito antiga, grega pelo menos, da politeia, tão bem caracterizada por Agamben ( ver livro citado, pp. 9-13 - um texto que vale por milhares de páginas!... e do mesmo autor o livro em que ele o desenvolve: Le Règne et la Gloire, Paris, Seuil, 2008 -ed. original italiana de 2007).
A pertinaz e penetrante investigação erudita, teológica, filosófica, de Agamben (mostrando como o pensamento pode em raros casos de pertinácia e lucidez - diria de genialidade - ser sublime, quer dizer, radicalmente redentor, anti-pornográfico, anti-obsceno), é a de mostrar esta fissura do pensamento ocidental: a soberania, o kyrion, o poder executivo, por assim dizer, é simultaneamente um dos dois aspectos da democracia (forma de constituição do político, da lógica do direito, e também prática administrativa, governo) e o seu nó indissolúvel. O que significa que no próprio cerne de democracia há a tentativa inconsciente de suturar uma fissura, de esconder um ingovernável. O ingovernável que abre espaço aos estados de excepção (frequentemente tornados estados de facto) e à raiva das massas, que, qual vulcão, explode de quando em vez nas fissuras que o trabalho obsceno do poder de cuidar da sutura, descuida.
Isto é muito importante, mostrando como toda a ideia de democracia, própria do Ocidente, e tida como valor per se, indiscutível em princípio, repousa desde o princípio sobre uma ambiguidade geológica estrutural, constitutiva da nossa cultura.
Isto é pensamento subversivo, quer dizer, pensamento, e não a "bavardage" que enche os media e os seus comentadores, no complexo tabuleiro de jogo de interesses a que o povo desprovido (nós) assiste, com maior ou menor pachorra já, enquanto espectáculo, puro "entertainment", fazendo o caricato absoluto dos media e dos que neles se movimentam, sobretudo quando parecem levar muito a sério o jogo, num acúmulo de obscenidade ou de comicidade que provoca algo para que se não achou ainda qualquer palavra, porque está para lá da palavra, estaria na passagem ao acto, na tal erupção inesperada, no acontecimento, finalmente, cuja simples possibilidade de ocorrência parece (aparece ficcionalmente como) absurda. O lugar da violência dos longamente violentados. A tal "violência divina", que no seu excesso, rompe momentaneamente com a obscenidade de um outro excesso, o corrente.


1 comentário:

Manuel de Castro Nunes disse...

Estamos, Caro Amigo, a transmigrar para a loucura, o lugar de onde vigiamos a «sanidade» pública. Encarceraremos os sãos no manicómio? Ou permaneceremos encarcerados fora de qualquer lugar?
Quantos ouvirão estas vozes? Quantos a elas poderão aceder. Como diria Foucault: «Gostaria que neste momento um muito antigo sussurro me precedesse (...)». A tradução é minha e livre.