O magnífico livro (como qualquer um dele, é impressionante) de Giorgio Agamben "Nudità" (2009, Nottetempo), que estou a ler em francês ("Nudités", Paris, Éd. Payot et Rivages, 2009) começa com um capítulo absolutamente vital que se intitula "Criação e Salvação". Vou aqui encadear livremente algumas ideias dele, traduzidas (não são minhas, mas adopto-as com grande emoção; itálicos de minha responsabilidade).
Trata-se de uma dicotomia fundamental que consiste no facto da profecia, ou do profetismo, ter dado lugar (tanto no cristianismo como no judaísmo) à hermenêutica, quer dizer, à interpretação.
Até na tradição islâmica esta dicotomia (esta bipolaridade das duas obras de Deus, criador e salvador) está bem explícita, subjacentemente. Há aí de facto também dois tipos de obras, ou de práticas, a da criação e a da salvação. A primeira relaciona-se com os anjos, que são os mediadores da obra da criação. A segunda, com os profetas, que são os mediadores no sentido da salvação escatológica. Ora a salvação é mais "nobre" do que a criação, e por isso o profeta "está acima" dos anjos.
Na teologia cristã, Deus representa a criação e o Filho a redenção. Mas já no islamismo a redenção não é um elemento secundário, mas sim superior, e anterior àquela, contrariamente ao que seria de esperar. De facto, a redenção não é um remédio, mas o que torna compreensível a criação e lhe dá um significado. Há neste ponto afinidades entre as três grandes religiões: importância primordial da salvação sobre a criação, a qual implicou o aparecimento do erro, do que precisa de ser corrigido, redimido.
Produzir e agir, por um lado, e redimir o que se se fez, por outro, são aspectos indissociáveis, indivisíveis. Não basta fazer, é preciso salvar o que se fez; mas na verdade este segundo aspecto precede o primeiro, uma vez que para se fazer é preciso a capacidade de redimir (corrigir) o produzido.
A palavra profética e a palavra criadora dialogam constantemente. Como o anjo, produzimos e olhamos em frente; como o profeta, sem cessar pomos em causa o já criado, o já existente, e assim asseguramos a sua redenção, a sua própria possibilidade. A redenção precede portanto a criação.
O mundo não será pois salvo pelo poder angélico, com o qual os homens produzem, mas pelo seu poder de criaturas. A obra do profeta, o seu poder, está também já inscrito na criação.
Qual a importância básica disto para a nossa vida de hoje?
A filosofia e a crítica, na sequência da exegese, herdaram a obra profética da salvação; a poesia, a técnica, a arte, a obra da criação. Com a laicização, a relação íntima entre os dois aspectos perdeu-se, desembocando numa espécie de esquizofrenia. Dantes, o poeta sabia "avaliar" o seu poema, e o crítico era, também a seu modo, poeta. E escreve Agamben, cujo texto tenho estado a seguir pari passu: " (...) de então em diante o crítico, que perdeu a obra da criação, vinga-se disso nela, pretendendo julgá-la, e o poeta, que já não sabe salvar a sua obra, paga essa incapacidade fiando-se cegamente na frivolidade do anjo." (p. 16)
Na verdade as duas obras são facetas de um mesmo poder divino, e coincidem na figura do profeta. A obra de criação é uma "faísca" saída da obra profética da salvação, e a obra da salvação é um fragmento da criação angélica tornado consciente de si mesmo. "O profeta é um anjo que, no próprio élan que o leva à acção, sente no cerne da sua carne o espinho de uma exigência diversa." (id, ib, p. 16).
Génio e talento, distintos/opostos na sua origem, unem-se na obra do poeta. Também as duas obras ou poderes de Deus são intrinsecamente uma unidade. Mas uma vez mais encontramos aqui uma dissociação: a importância da obra depende da assinatura, do estilo - que o génio e a salvação lhe conferem - e não da criação e do talento.
O estilo é a força que resiste à criação, à inspiração do anjo. E também, por seu turno, na obra do profeta, o estilo é "a assinatura que a criação, no decurso do acto que a salva, deixa na salvação, a opacidade e quase a insolência com que resiste à redenção, e quer permanecer sempre simultaneamente noite e criatura, dar ao pensamento aquilo que o aguenta." (p.17)
Uma obra crítica ou filosófica tem de se manter em relação com a criação, senão cai no vazio. Tal como uma obra de arte ou de poesia que não inclua uma exigência crítica. Mas, acentua o autor, os dois campos procuram a unidade perdida. E cita Holderlin, que considerava a filosofia como o hospital em que a poesia vinha curar as suas feridas. Essa consciência no entanto tende a esbater-se num mundo em que criação e crítica já se não defrontam, mas se separaram.
Por que se dividem em duas as obras divinas e humanas, por que se presenta a praxis cindida? Para reencontrar a unidade, propõe o autor, é preciso pensar a parte do poder de criar que não foi exercida pelo anjo, e que portanto se pode direccionar para si mesma. Se a potência [puissance, um dos temas caros ao autor] precede o acto e o excede, se a obra de redenção precede a criação, a redenção é uma potência de criar deixada en suspenso, que se dirige a ela própria, e assim se "salva".
Que significa isso, porém, se tudo está destinado a perder-se? O que se perde pertence a Deus, e quando tudo se perder "a obra de salvação ficará sozinha, inapagável." (p. 19)
Uma potência "salva", isto é, um poder fazer (ou não) que não passa ao acto, conserva-se e permanece como tal na obra.
Aqui a obra de salvação e de criação coincidem, uma faz, outra desfaz, incessantemente. "Aquilo que o anjo forma, produz e acaricia, é reconduzido pelo profeta ao informe, para o contemplar." (p.20)
A obra da criação acaba por ficar emoldurada em não-ser. O que se salva? A criatura e a potência passam um limiar em que se tornam indistintas. "Isso significa que a última figura da acção humana é esse ponto em que criação e salvação coincidem naquilo que não pode ser salvo." (p. 20)
O anjo que chora torna-se profeta. A queixa do poeta torna-se profecia crítica, isto é, filosofia.
Ao contrário da criação, a obra de redenção é eterna; ela sobreviveu à criação, e por isso permanece, mas no insalvável.
G. A. (adaptado e resumido por mim)
Os textos de G. Agamben são de uma economia absoluta. Não existe uma palavra a mais. A condensação é imensa, o rigor total, e eminentemente poético. Por isso é tão difícil e fascinante lê-lo.
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