Bernard Stiegler - Primeiros contributos para um glossário
(arquitectura de conceitos - “work in progress” baseado nas palavras/definições do próprio autor – atenção, para não se pensar que estou a fazer qualquer tipo de plágio, quando se trata apenas de “apontamentos de estudo”, traduzidos por mim. Voltarei regularmente a eles, para os modificar, ampliar, enriquecer, até abarcar se possível toda a estrutura básica do pensamento do autor. Fundamental para se perceber uma série de questões filosóficas, desde o papel da técnica aos processos de individuação a ela ligados, até ao forjar de um pensamento crítico contemporâneo simultaneamente materialista, revolucionário, e não redutor, isto é, capaz de afastar a transcendência, proporcionar a abertura do futuro em termos diferentes, e não deitar fora nada do que anteriormente passava por teológico ou transcendente.
Ulteriormente, este pensamento, que é de inspiração kantiana, husserliana e simondiana deveria ser cruzado com o de outros autores. Um verdadeiro “guia” do pensamento crítico contemporâneo não pode obviamente ser um dicionário, mas, muito embora organizado por ordem alfabética, constituir uma espécie de modelo de orientação num quadro de infinitas transformações conceptuais, e do que em filigrana está por detrás delas em termos de “cavername conceptual”, não esquecendo as modificações, as mutações que conceitos aparentemente afins ou semelhantes/contrastados sofrem no mesmo autor, de autor para autor, de momento para momento, etc., etc. Não se trata de subsumir tudo num quadro harmónico – não estamos há uns séculos atrás, em que havia sistemas de pensamento, mas de comparar perspectivas e ir estabelecendo uma cartografia dos campos de forças conceptuais que nos são co-presentes. Tentar, em última análise, uma primeira cartografia pessoal da fragmentação, procurando utilizar de forma útil as forças da dispersão num sentido oposto ao da desorientação e alienação. Se chegar a essa fase, esse trabalho não procurará jamais erigir-se em norma, mas apenas apresentar-se como instrumento de trabalho, e assumidamente subjectivo.
Confusão da logística e do símbolo – sua integração não crítica – conduz à proletarização do espírito e à depauperização da cultura, quer dizer, à destruição das capacidades unificadoras dos fluxos temporais que as consciências individuais são
Consciência – é essencialmente livre, diacrónica, excepcional, irredutivelmente minha (ipseidade). É temporal, em fluxo contínuo, mas também no sentido de que a sua forma é histórica e evolutiva. É um arqui-cinema
Consciências individuais – podem ser destruídas nas suas capacidades de projecção, ou seja, de desejo, que é sempre singular. Das duas, uma: ou se afundam nas indústrias de programas, ou são apanhadas nas redes dos “perfis de utilizador”, que permitem sub- estandardizar e portanto tribalizá-las em sub-comunidades
Controlo total dos mercados – sincronização dos fluxos temporais de consciências
Crítica da realidade contemporânea – tem de ser radical e está ainda por fazer. O momento crítico de Kant, o da sua opção, é o do esquematismo fundamental. Stiegler vai tentar recolocar a questão em termos de um cinema da consciência.
Decomposição das consciências – está a processar-se pela via da hiperindustrialização dos objectos temporais
Devir técnico – primeira suspensão de programas, revolução do sistema técnico de uma época
Diacronia e sincronia – estão em permanente composição entre si, não se podem opor permanentemente
Duplo desdobramento [redoublement] epocal - há na contemporaneidade esta excepção, a de um duplo desdobramento. Uma dupla suspensão, ou desdobramento do desdobramento, criando uma nova unidade de espaço e de tempo e uma nova individuação psíquica e colectiva
Epocal [épokhal”] – o que, substituindo os programas em vigor (há uma ruptura, uma suspensão de programas) numa dada época, abre as condições de surgimento de uma nova época
Estado hiperindustrial, ou hiperindustrialização dos objectos temporais - corresponde à decomposição
Experiência do devir – dominada hoje por uma indiferença ontológica: há um mal-estar que tem a ver com o retorno sob nova forma da questão do mal, que é um mau-devir [devenir-mauvais].
Exploração sistemática e ilimitada das consciências – condição actual de “acesso aos mercados”
Futuro [Avenir] – segundo momento de desdobramento, o que permite a transformação do devir em futuro. Este segundo desdobramento ainda não se deu. Vivemos num devir-relâmpago
Hiper-segmentação das audiências – trata-se de industrializar os comportamentos individuais, dando aos destinatários a impressão ilusória de que o sistema os interpela pessoalmente. A pessoa (“personne” em francês) torna-se “personne” (“ninguém”, também, em francês, quer dizer, desindividuada) no próprio momento em que se julga autónoma para escolher um comportamento que já lhe foi escolhido. É nesta ilusão (acrescentaria eu), nesta crença partilhada, nesta “falsa consciência” ideológica, em que o desejo do desejo está totalmente colonizado pelo mercado hiperindustrial, que se funda o laço social de hoje (ser alguém como ninguém, mas sem o trazer demasiado à consciência)
Horkheimer e Adorno – querem construir um discurso crítico do esquematismo (contra a americanização, a indústria cultural americana dominante). Discurso lúcido e profético, mas ao mesmo tempo equivocado e reaccionário, expressão ele próprio de um mal-estar actual
Industrialização da memória
Integração funcional das indústrias do símbolo (alfabético e analógico) e da logística (numérica) – é o que permite hoje um controlo total dos mercados, a exploração sistemática e ilimitada das consciências como condição de “acesso aos mercados”. Perda da individuação (Simondon)
Mal-estar actual – consiste na impossibilidade de discernir ou isolar uma fonte ou locus criticável do mal, porque ele está disseminado, por toda a parte, como o próprio material do devir – daí a desorientação dos discursos, por mais distanciados e críticos que se procurem mostrar ou ser. Há um bloqueio do pensamento, uma espécie de tempo que não passa, que não encontra passagem, quando o tempo é acima de tudo passagem
Management
Máquina-utensílio – século XIX. O trabalhador é substituído pelo “indivíduo técnico”, proletarizado, privado da possibilidade de se individuar, pois o seu saber está exteriorizado na máquina
Mecanologia – para Simondon, a perda de individuação do século XIX dá origem a este novo processo de individuação.
Mercados – são, antes que tudo, consciências; conjuntos de fluxos temporais que se trata de sincronizar
Novo comércio – é necessário lutar por ele, tentar impedir a decomposição
Objectos temporais industriais
Orientação do pensamento – no momento em que o pensamento se tornou tecnociência: é preciso decidir entre possíveis que são também ficções, através do estabelecimento de uma diferença na indiferença ontológica. A questão da orientação torna-se central. A questão da orientação e da desorientação reactiva a questão kantiana do princípio subjectivo de diferenciação, e o fundo teológico inerente a ele
Perda de individuação – a que conduzem o desenvolvimento e a integração das tecnologias da logística e do símbolo. O eu é um vazio, um “on” (em francês), porque se não constitui em função de um nós, mas em função de uma série de “eus” igualmente. abstractos e vazios, mercantilizados na sua consciência
Processo de acontecimentalização
Processo de numerização
Produção industrial dos objectos temporais – o processo de proteticização da síntese (no sentido kantiano) em que consiste sempre a unificação do fluxo de uma consciência, atinge neste estádio um grau tal que a transformação da consciência pode levar à sua destruição pura e simples
Proteticidade – afecta as condições do esquematismo (termo kantiano)
Proteticidade originária
Proteticização actual das consciências – industrialização sistemática do conjunto dos dispositivos retencionais
Reactividade
Retenção primária (Husserl)
Retenção secundária (Husserl)
Retenções terciárias – inscrições materiais das retenções de memória em dispositivos mnemotécnicos
Síntese – unificação do fluxo de uma consciência (Kant). Com o processo de proteticização da síntese, com a produção industrial dos objectos temporais chega-se a um estádio tal que pode levar à destruição das consciências
Sistema de tele-acção – deriva do sistema de televisão da segunda metade do séc. XX. Processo de transformação profunda da própria actividade da consciência
Sistema de televisão – sistema hegemónico afectando ao mesmo tempo milhões de consciências através dos mesmos objectos temporais industriais – processo de transformação profunda da própria actividade da consciência. Acabou por, nos finais do séc. XX, um sistema de tele-acção
Sistema técnico – há um sistema técnico próprio de cada época (B. Gille)
Sofrimento existencial, mal-estar – resultante da perda de individuação
Temporalização industrial das consciências
Tendências, estruturas meta-estáveis, objectos ideais – podem manter- se através das evoluções (transformações) das consciências, embora estas sejam sobretudo temporais
Terminal de tele-acção (écrã)
Base(s) bibliográfica(s)
Bernard Stiegler, La Technique et le Temps. 3. Le Temps du Cinema et la Question du Mal-être, Paris, Galilée, 2001.
2 comentários:
A deglutir ainda, vou, se me permite, reproduzir este post em De Rerum Natura, a propósito de um debate sobre o sitema educativo.
Manuel
Olá
Com todo o gosto, embora continue e hei-de continuar por muito tempo a apurar este primeiro "borrão".
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