Comecemos a analisar então, para concretizar ideias gerais, um texto exemplar de uma colega irlandesa muito inteligente, Joana Brück (UC, Dublin) -
ver: http://www.ucd.ie/archaeology/
staff/bruck_joanna/index.htm
datado de 2001 e integrado no livro pela mesma dirigido, “Bronze Age Landscapes. Tradition and Transformation” (Oxford, Oxbow Books). O texto é o cap. 14 do livro (pp. 149-160) e chama-se “Body metaphors and technologies of transformation in the English Middle and Late Bronze Age”.
Não estamos aqui perante uma tradição continental de pensamento arqueológico, mas tipicamente britânica, a qual é, do meu ponto de vista, e muito em geral, mais interessante e apelativa, nas suas infinitas variantes, como decerto já se percebeu através dos meus textos, aulas, conferências, etc.
Este texto é... apenas um dos muitos textos da autora. Não quer pois dizer que o que nele se afirma, o u nele critico, seja válido para o conjunto do trabalho da mesma, tanto mais que sobre um texto publicado em 2001 já passaram, num mínimo, uns 7 anos.
Limitar-me-ei apenas a alguns tópicos, pois o desenvolvimento de outros será feito em próximos textos.
A autora propõe-se dois objectivos temáticos:
1 – O que chama “conexões metafóricas” entre pessoas, casas, vasos cerâmicos e moinhos manuais durante a Idade do Bronze Média e Final (c. 1500-700 AC) (p.149).
2 – A “fragmentação física” de realidades materiais, tais como objectos e casas, como metáforas do tempo (em particular da morte e regeneração da vida) (ibidem).
Ora, desde logo se levanta um conjunto de problemas (perguntas que gostaríamos de fazer à autora, eventuais objecções):
1- o que nos autoriza a falar de metáforas, ou conexões metafóricas, relativamente a realidades sociais/pessoas/sistemas de pensamento que terão existido há 3.000 anos ou mais, em Inglaterra? Como não conhecemos directamente essas realidades sociais/pessoas/sistemas de pensamento, temos de inferir que a autora ACREDITA que os chamados “testemunhos arqueológicos” são susceptíveis de proporcionar tal informação. Trata-se de uma simples HIPÓTESE, dir-se-á. Pois bem, deixemos para outra altura a sua discussão extensa, pois ela se apoia numa CRENÇA muito espalhada em arqueologia (para não afirmar que este é o seu axioma fundador), crença que pressupõe uma determinada filosofia: a de que há um “mundo material” (o da arqueologia) que REFLECTE o “mundo não material” das ditas realidades sociais/pessoas/sistemas de pensamento. ESPELHO (l. “speculum”), ESPECULAR, ESPECULAÇÃO – palavras aparentadas etimológica e semanticamente – vêm evidentemente logo à nossa memória. Diria mesmo, mais em geral, que muita da arqueologia que se escreve e faz pressupõe uma vivência/discursividade/retórica de especularidade alucinada: simplificando, o tomar por certo (a “realidade do passado”) o que se vê no seu suposto espelho (“a realidade arqueológica”). Questão sobre a qual a psicologia, e sobretudo a psicanálise talvez tivesse algo de interessante a dizer.
- de 1500 a 700 AC distam 700 anos, que são tratados como um bloco. O que nos autoriza a supor que durante esse tempo, em toda a Inglaterra, houve uma unidade tal nas ditas realidades sociais /pessoas/sistemas de pensamento que nos permita tratá-las assim? É que fazê-lo implica ou ACREDITAR que não houve história (isto é, mudança, variabilidade no espaço e no tempo) nesse bloco, ou que tal história/mudança/variabilidade é DISPICIENDA, secundária para o problema em causa. Não adianta argumentar com o velho recurso de bolso positivista da “falta de dados para ir mais longe”. A questão é que a autora escreveu o texto, fazendo propostas interpretativas para esse bloco. Assim, implicitamente, colocou as realidades sociais/pessoas/sistemas de pensamento em causa FORA DA HISTÓRIA. Assumiu que tudo quanto existiu dentro desse bloco espacio-temporal era basicamente semelhante, ou seja, em toda a Inglaterra, durante 700 anos, houve uma repetição constante das mesmas básicas realidades. Não será esta atitude (tão frequente entre os arqueólogos, “pré-historiadores” em particular) uma variante do modo ocidental de fixar os “primitivos” fora da história, num “tempo sem tempo” que não é mais do que uma nossa projecção mítica, o nosso fantasma de eternidade?
- Ao longo do texto a palavra “may” (pode, poderá) e a palavra “suggest” (sugere) – isto é, enunciações feitas no modo condicional, como possibilidades e não certezas – são frequentemente utilizadas. Porém, num recurso retórico muito usado por nós, arqueólogos, o que é apresentado num certo momento como possível ou provável é depois, logo a seguir, na sequência da argumentação, tomado como certo ou provado, no que eu chamaria o método de raciocínio do “baralho de cartas”, com toda a óbvia fragilidade inerente. Vamos montando hipóteses sobre hipóteses, assumindo que as hipóteses mais antigas no decurso da argumentação, por um efeito retórico de certo modo “mágico”, se transformam em quase-certezas, ou pelo menos em fortes probabilidades. Ora, o problema não está em levantar hipóteses, que são inerentes a todo o trabalho científico. Está sim na CONFUSÃO entre hipóteses e certezas, que nos deixam um sentimento/sabor agri-doce estranho: podemos achar a hipótese fascinante, mas ficamos desiludidos por a não podermos aceitar como certeza, isto é, por percebermos o carácter essencialmente “ilusionista” (tirar coelhos de cartolas antes assumidas) de todo o processo. Trata-se mais de magia, e menos de um procedimento intelectual de tipo “racional”, digamos.
- nota-se por vezes uma evidência ingenuidade quando se recorre a certas generalizações. Por exemplo, logo na primeira coluna (p.149), que significa afirmar (indo recorrer a um livro famoso mas já antigo dos antropólogos Bloch & Parry, 1982), que “em muitas sociedades a vida é considerada um bem limitado (...); só quando o mundo dos antepassados recebe um membro novo é que uma outra vida humana pode ser “libertada” para a sociedade dos vivos.” ? “Muitas sociedades” não é um conceito operacionalizável, é uma generalização sem conteúdo. Por outro lado, as “ideias” de “vida” e de “morte” não são universais trans-históricos, dados “a priori”, que depois se pode historiar, verificando as suas diferentes “simbolizações” no espaço e no tempo. Há aliás que ter extremo cuidado com a questão dos universais, pois todo o desejo de cada autor (sobretudo se é inteligente) é o de estabelecer perspectivas novas e mais abrangentes, ideias gerais e conexões inesperadas que são sempre fascinantes. Parece muitas vezes que há como que dois níveis sobrepostos em arqueologia. Um, o da mera descrição e acumulação de “dados”, entendida como um processo isolável, com valor próprio; o outro, o das hipóteses interpretativas, cada vez mais audazes, que vão buscar pretensos “casos concretos” para a sua ilustração. Esta dicotomia entre dois níveis de produção tende a ser perversa, afastando o arqueólogo-comum (que trabalha para sobreviver ou para “fazer curriculum”, e muitas vezes se considera um “técnico”), do arqueólogo-autor, o pretenso “sábio”, cujos livros – sobretudo se se tratar de professores de universidades anglo-saxónicas - entram nos grandes circuitos internacionais e são guias de estudo nas universidades. Entretanto, há uma geração que não quer cair nessa dicotomia perversa e oscila na prática e no sonho entre uma imagem e outra, quando seria na colmatação deste abismo absurdo que teríamos todos de trabalhar.
(continua)
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