terça-feira, 16 de outubro de 2007

Os mortos concordam sempre - 1


A partir do século XIX, inícios do séc. XX, a "intelligentia" europeia inventa uma quantidade formidável de métodos de desvendamento, exumação, fixação e arquivamento de um mundo até então supostamente "invisível" à observação, num processo que continua hoje em expansão.
Essa descoberta e tentativa de absorção de algo perdido, enterrado, fugidio, ou aparentemente não permeável à ideologia e conhecimento ocidentais liga-se, entre muitíssimos outros aspectos, à antropologia (social ou cultural, conforme se designa no RU ou nos EU), à arqueologia (incluindo, claro, a chamada "arqueologia pré-histórica"), à fotografia (que não é como todos sabemos uma pura "técnica" - e o que seria uma "pura técnica, na verdade? -, mas instaura e reforça um modo de estar no mundo, baseado na centralidade do olhar, da visão), à própria psicanálise.

Trata-se de trazer à tona, de explicitar e de descrever/narrar o "quadro do mundo", dando-lhe pela primeira vez uma explicação total, científica, objectiva, quer dizer, da ordem da imanência e não da trancendência, e de uma imanência baseada no juízo permitido pela observação e pela reflexividade humanas, individuais, que Descartes inaugurou.

Este imenso empreendimento, típico da modernidade dentro da qual estamos inseridos, visa dar um sentido explicativo ao mundo, sentido esse que tem horror ao vácuo e que no fundo se quer substituir à "crença" e mais genericamente à religião, criando de facto novos sistemas "religiosos" com os seus rituais, as suas narrativas fundadoras, as suas hierarquias e, naturalmente, com os seus dogmas (ou axiomas, algo que se pressupõe - pelo menos em termos metodológicos - como provado ou evidente em qualquer tempo e lugar).

A crença na capacidade de distanciação entre o observador e o observado, o objectivo e o subjectivo, a razão e o sentimento, a natureza e a cultura, o dogma da verdade como realidade constatável e partilhável a partir do mundo estudado, a crença numa universalidade de valores que se estende a toda a humanidade e permite a própria ideia de "história universal", são sintomas desta postura que tende a disseminar-se na população europeia à medida que a educação (pelo menos básica) também se torna um sistema universal, uma disciplina de cidadania, e visa (tal como muitos outros produtos e descobertas) a sua exportação para todos os espaços/tempos concebíveis.
Naturalmente que tal desiderato centrado e colonial nunca se completaria nem completará, porque apesar dele ser o coração ideológico do expansionismo capitalista (desde a sua fase industrial à sua actual fase financeira), apoiado numa tecnologia e num poder económico e de armamento tremendos, está na sua própria lógica universalizante a criação de anti-corpos, dentro e fora da Europa.
Ou seja, a exportação de ideologias de libertação e de consumo, inerente à quebra de barreiras que são estranhas ao mercado, acaba por aprovisionar muitas bolsas de resistência dos mesmos meios, ou de meios relativamente comparáveis, aos do poder ocidental dominante. Por pequenos que aliás sejam, eles jogam na lógica da surpresa e da militância contra-atacante, imparável na sua solidariedade impetuosa perante um hedonismo que no ocidente tende no sentido oposto: o do individualismo e da tolerância, a ideologia neo-liberal, o "está-se bem", ou o "com o mal dos outros posso eu bem".
Por outro lado, como toda a gente sabe, a lógica da globalização não é da homogeneização a não ser em níveis muito mais aparentes que reais. Os objectos transmutam-se, as tecnologias também, mas as formas e as estratégias globais são recicladas ao nível local e regional, por forma a responderem à massificação, criando novos nichos, tradições, identidades, etnicidades, mitos de origem, etc, etc.
Ninguém sabe o que vai na cabeça de uma pessoa que se faz transportar de metropolitano numa das cidades contemporâneas, qualquer que seja a sua tez, postura, vestuário, língua, etc.
A ambiguidade (incluindo a da nossa consciência reflexiva, a de cada um de nós) é a nossa companheira de viagem. A heterogeneidade e a homogeneidade alimentam-se uma à outra, porque são produto da circulação intensificada, e da compressão do espaço-tempo, que não leva à destruição do "local", mas à sua proliferação desmesurada.
O "local" ("o típico") é na verdade um produto típico da globalização e da sua mais visível manifestação social, o turismo generalizado.

Sabemos como a retórica da perda está intimamente ligada ao património (por definição, este é algo que está sempre a ser alimentado e a escoar-se por qualquer lado, como uma tina que se procurasse encher de água e tivesse o fundo furado), e essa retórica da falta (de algo de completo que se não consegue, ou já se não quer, por inerência, atingir) é muito patente em antropologia, em arqueologia, em fotografia e também, claro, em psicanálise.
Só uma criança ou um ingénuo fazem certas perguntas na esperança de obter resposta, ou produzem certas afirmações sem terem a consciência do ridículo.
O saber moderno é cínico, porque sabe que saber é sempre algo de contingente, e que no próprio coração da retórica da profecia, ou da antecipação (planeamento, etc.) reside apenas um efeito mediático, cénico, contextual e contingente (auto-irónico, se não for totalmente imbecil).
A enunciação (de certezas ou não) é sempre, como é evidente, um efeito de discurso.

Não me vou deter sobre cada um de tão vastos campos de reflexão como os acima mencionados. Refiro apenas como em antropologia social e em arqueologia pré-histórica é a própria figura inventada do Outro, na sua excelência "primitivo", que estamos sempre a dizer que nos "escapa" na sua inteligibilidade.
É "bem feito", porque fomos nós que inventámos o problema, a arena onde agora damos o espectáculo (por vezes pungente) de andarmos às voltas, isto é, de querermos encontrar por todo o lado aquilo que há muito sabíamos, ou de que fomos inventando os pormenores, a partir do séc. XIX para cá.
Ou seja: de que a realidade (como cada pessoa) é de uma fluidez de enguia, jamais se deixando aprisionar em esquemas passivos.
Ainda se podia acreditar nessa estabilidade nos meados-finais do séc. XIX ou nos princípios do séc. XX, quando outras formações económico-sociais (outros "estádios" do capitalismo) nos regiam.
Mas hoje, depois de tudo o que se passou, acreditar em algo de estável, de certo, é matéria de fé. E, todavia, paradoxalmente, talvez "fé" (no seu sentido mais geral de convicção inabalável) seja aquilo que mais nos mantém vivos (mesmo que seja a fé em que um sentido unificado para as coisas é algo de imprudente, para não dizer de impúdico).
Não sem razão os santuários estão cheios e o turismo religioso prospera.

Vamos então ver, em próxima postagem, como em arqueologia (em particular pré-histórica) um conjunto de crenças tem suportado (particularmente no mundo anglo-saxónico, muito influente devido ao poder crescente do inglês) sucessivas narrativas, normalmente orientadas pelo evolucionismo cultural do século XIX, depois pelo histórico-culturalismo da primeira metade do século XX, a seguir pelo pensamento processual (anos 60 em diante) e, mais recentemente (anos 80 em diante), por todo um conjunto complexo de reavaliações do nosso conhecimento, que põem em causa (ou tentam esclarecer) as próprias bases e axiomas em que a arqueologia tem laborado, desde os seus inícios, como uma construção essencialmente europeia.
Claro está que estas múltiplas tentativas, mais recentes, que ampliam a interdisciplinaridade e a porosidade que sempre se verificou em arqueologia, acabam por criar uma plêiade imensa de construções mitológicas, que, ao procurar descontruir mitos anteriores, geram uma proliferação infinda deles.
Muitos arqueólogos reagem mal a esta complexidade e multiplicidade, ou refugiando-se em rotinas passadas, ou modernizando as tecnologias ao seu dispor sem discutir um momento para que é que de facto servem, e/ou colocando sobre o confortável guarda-chuva de uma desdenhada "pós-modernidade" uma unidade que só existe na cabeça (já confusa, creio) deles mesmos. Têm o gesto primário que não querer ouvir, ver, nem sentir o que os perturba ou assusta.
Compreensível reacção de defesa numa realidade onde cada um diz o que lhe parece mais correcto sobre o chamado "passado" ("fantasma"- no sentido psicanalítico - maior da arqueologia), e encontra as exaustivas "provas" disso mesmo, escolhendo maravilhosas exemplos para ilustrar que ele, e só ele, tem razão.
A tautologia deste procedimento é óbvia e leva muitos à desconfiança ou a "arrumar as botas" relativamente à chamada discussão teórica, para a qual não têm (não temos) em realidade formação adequada.
Alguns mais afoitos (tanto quanto tendencialmente ridículos, eu talvez incluído, quem sabe, em parte ou em muito do que escrevi) sobrepõem filosofias mal assimiladas "à la page" à arqueologia, como por exemplo a fenomenologia, a teoria do actor-rede (Latour), a semiótica (de Peirce e outros), a antropologia do espaço, do corpo, ou do ritual, ou a teoria da performance, etc, como antes era de uso usar-se o estruturalismo ou o marxismo (nas suas versões também, muitas vezes, de compêndio).


"Alto e pára o baile", apetece dizer a toda esta mascarada, que dança sobre um cemitério de conceitos e sobretudo sobre um cemitério de humanidades que já viveram e que vamos vestindo, ao gosto do tempo, as mais desvairadas máscaras.
Elas concordam sempre, por definição, por voto de mudez, com o carnaval que, sobre os seus restos, celebramos.

Foto: Barbara Cole ("Manequins")
Fonte:
http://www.barbaracole.com/
bcIndex.php?com=home

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