atravessamos uma grande noite, como um cobra que fosse rastejando ao longo do deserto ao modo de um comboio, penetrando sempre mais e mais no escuro, e emitindo pequenos lampejos verdes.
e, depois de dias, meses de viagem, quando chegamos àquele sítio que identificávamos como a nossa casa, agarramo-nos aos álbuns de família, acendemos um pouco de incenso, procuramos um beiral de carinho. em vão?
não sei. por detrás das fachadas verdes parece que não há nada de verdadeiramente importante.
a mãe morreu há muito no terraço das traseiras, o pai jaz numa fotografia ao lado do cruxifixo, os irmãos nem uma mensagem deixaram.
há, sim, centenas de avisos a recordarem obrigações, horários, calendários, a pontualidade de todos os nadas, a imperatividade de todos os vazios, os prazos com que nos vão balizando o tempo que nos resta.
os próprios livros que tanto amávamos nos dizem: daqui desertou o amor e o ódio, não há nada que te espere a não ser o pijama e a insónia, e não saberás em que rua dormes. não poderás juntar as mãos em torno de uma vela, entrar dentro do perfume florestal de uns cabelos longos, mergulhar os lábios secos numa tina de essências.
como é possível tanta crueldade? pergunta-se com assombro.
um viajante, desde que a humanidade é humanidade, tem sempre algo ou alguém à espera, nem que sejam os seus animais de capoeira, uma sopa fria deixada há séculos no frigorífico, um bilhete descolorido a dizer: tive de sair, volto já.
mas, aqui, aparentemente, nada.
não se trata de um ausência, porque uma ausência é sempre algo forte, e que impregna as paredes e os lençóis, o espaço entre os móveis, espalha chamas a arder sobre uma ou várias bacias de cobre.
não. esses são tempos revoltos. a realidade perdeu a paciência para nós, não está para se maçar mais com quem se desloca, e julga trazer, além dos desabafos, algumas notícias, alguma esperança, algum livro precioso, de folhas iluminadas, para começar a ler no dia seguinte, um fósforo com que riscar a miséria da noite, cindir com uma pequena lâmina de barba o conforto dos seres já deitados.
de certo modo não há dia seguinte, este novíssimo tipo de tédio não tem cronologia; a indiferença, quando é mesmo a sério, é geológica, e sem falhas, indescritível segundo os manuais: não brota dela nem pinga de sangue nem de qualquer espécie de matéria orgânica. está bloqueada dentro de si mesma, virou-se para o lado de onde os rostos não assomam mais, nem no dia do Juízo. é atemporal.
o viajante tornou-se um inquilino que volta de um quarto de hotel para uma habitação, de uma habitação para um quarto de hotel, atravessando assombrado os corredores de algo que está para além da solidão ou do desespero: apenas vê as cortinas das janelas, e de tantas em tantas horas, alguém que as fecha ou as abre; alguém que apaga ou acende luzes detrás de janelas.
de certo modo atravessa o espaço sabendo que já não é ele que ali vai, nem sequer o seu espectro, apenas a imagem de um filme que está a passar num dos vários canais de televisão, a horas perdidas, para meia-dúzia de sonâmbulos.
os olhos do que chegou são assim duas janelas de vidros quebrados olhando para as paisagens do Desconhecimento.
do outro lado, sobre um muro meio iluminado, cinzento, alguém pintou em eslavo ou em alemão a palavra Desconfiança.
o que se vai deitar despe-se devagar, enfia-se na cama entre duas mesinhas de cabeceira, ouvindo o tique-tique do relógio, entre dois tapetes escarlates. quais são as minhas obrigações para amanhã? pergunta-se, numa última ilusão de ordem, num delírio de vida normalizada.
no extremo da rua, sem que ele o possa saber, abriram-se as luzes, luzes pálidas que dão para a calçada, de um clube privado de swing. alguns carros entram discretamente, transportando casais que deram as doses convenientes às crianças para não serem incomodados durante umas horas.
cá fora outras classes sociais aglomeram-se em cachos de bichos feios, injectando mutuamente o mercúrio que lhes vai no desejo. estão todos mortos, mas continuam sempre a mexer-se, como se não dessem por isso.
a grande noite é democrática, e liberal: tem um lugar para todos, enquanto o Assombro Municipal não vem esvaziar os ecopontos, e as primeiras crianças não começam a sair das casas, já de manhã, todas iguais nos seus uniformes, segurando as canetas da escola.
voj copyright 2007
Foto ("The Green House"): Natasha Gudermane (rep. aut.)
Fonte: http://photo.net/photos/gudermane
e, depois de dias, meses de viagem, quando chegamos àquele sítio que identificávamos como a nossa casa, agarramo-nos aos álbuns de família, acendemos um pouco de incenso, procuramos um beiral de carinho. em vão?
não sei. por detrás das fachadas verdes parece que não há nada de verdadeiramente importante.
a mãe morreu há muito no terraço das traseiras, o pai jaz numa fotografia ao lado do cruxifixo, os irmãos nem uma mensagem deixaram.
há, sim, centenas de avisos a recordarem obrigações, horários, calendários, a pontualidade de todos os nadas, a imperatividade de todos os vazios, os prazos com que nos vão balizando o tempo que nos resta.
os próprios livros que tanto amávamos nos dizem: daqui desertou o amor e o ódio, não há nada que te espere a não ser o pijama e a insónia, e não saberás em que rua dormes. não poderás juntar as mãos em torno de uma vela, entrar dentro do perfume florestal de uns cabelos longos, mergulhar os lábios secos numa tina de essências.
como é possível tanta crueldade? pergunta-se com assombro.
um viajante, desde que a humanidade é humanidade, tem sempre algo ou alguém à espera, nem que sejam os seus animais de capoeira, uma sopa fria deixada há séculos no frigorífico, um bilhete descolorido a dizer: tive de sair, volto já.
mas, aqui, aparentemente, nada.
não se trata de um ausência, porque uma ausência é sempre algo forte, e que impregna as paredes e os lençóis, o espaço entre os móveis, espalha chamas a arder sobre uma ou várias bacias de cobre.
não. esses são tempos revoltos. a realidade perdeu a paciência para nós, não está para se maçar mais com quem se desloca, e julga trazer, além dos desabafos, algumas notícias, alguma esperança, algum livro precioso, de folhas iluminadas, para começar a ler no dia seguinte, um fósforo com que riscar a miséria da noite, cindir com uma pequena lâmina de barba o conforto dos seres já deitados.
de certo modo não há dia seguinte, este novíssimo tipo de tédio não tem cronologia; a indiferença, quando é mesmo a sério, é geológica, e sem falhas, indescritível segundo os manuais: não brota dela nem pinga de sangue nem de qualquer espécie de matéria orgânica. está bloqueada dentro de si mesma, virou-se para o lado de onde os rostos não assomam mais, nem no dia do Juízo. é atemporal.
o viajante tornou-se um inquilino que volta de um quarto de hotel para uma habitação, de uma habitação para um quarto de hotel, atravessando assombrado os corredores de algo que está para além da solidão ou do desespero: apenas vê as cortinas das janelas, e de tantas em tantas horas, alguém que as fecha ou as abre; alguém que apaga ou acende luzes detrás de janelas.
de certo modo atravessa o espaço sabendo que já não é ele que ali vai, nem sequer o seu espectro, apenas a imagem de um filme que está a passar num dos vários canais de televisão, a horas perdidas, para meia-dúzia de sonâmbulos.
os olhos do que chegou são assim duas janelas de vidros quebrados olhando para as paisagens do Desconhecimento.
do outro lado, sobre um muro meio iluminado, cinzento, alguém pintou em eslavo ou em alemão a palavra Desconfiança.
o que se vai deitar despe-se devagar, enfia-se na cama entre duas mesinhas de cabeceira, ouvindo o tique-tique do relógio, entre dois tapetes escarlates. quais são as minhas obrigações para amanhã? pergunta-se, numa última ilusão de ordem, num delírio de vida normalizada.
no extremo da rua, sem que ele o possa saber, abriram-se as luzes, luzes pálidas que dão para a calçada, de um clube privado de swing. alguns carros entram discretamente, transportando casais que deram as doses convenientes às crianças para não serem incomodados durante umas horas.
cá fora outras classes sociais aglomeram-se em cachos de bichos feios, injectando mutuamente o mercúrio que lhes vai no desejo. estão todos mortos, mas continuam sempre a mexer-se, como se não dessem por isso.
a grande noite é democrática, e liberal: tem um lugar para todos, enquanto o Assombro Municipal não vem esvaziar os ecopontos, e as primeiras crianças não começam a sair das casas, já de manhã, todas iguais nos seus uniformes, segurando as canetas da escola.
voj copyright 2007
Foto ("The Green House"): Natasha Gudermane (rep. aut.)
Fonte: http://photo.net/photos/gudermane
1 comentário:
Caro VOJ :))
Desculpe a ousadia, mas este seu texto empolgou-me ! Não sei ainda porquê ... mas não consegui passar à frente. Encalhei nele ...
Debruço-me nesta janela para lhe dizer o quanto aprecio a sua forma de " Trans-ferir ", blogueando ...
e pedir-lhe se me autoriza (com TODOS os créditos que lhe são devidos !) a publicá-lo no meu discreto " Caderno ", que é mais uma sebenta de coisas de aqui e d` acolá que me dão prazer.
Um beijo
da isabel
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