sábado, 17 de outubro de 2009

delicadamente
















Gosto do teu corpo. O que desejo é acariciá-lo, sem outra intenção prévia. Poder começar por onde calhar. Talvez pelos pés, gosto dos teus pés. Talvez pelos joelhos, com o pretexto de te aquecer do frio do chão, ou de os limpar da gordura deste palco: um palco já muito pisado, de um teatro velho, cheio de sarro das muitas peças já aqui representadas. Levar-te para uma banheira cheia de água quente, lavar-te como se lava uma menina, a começar pelo cabelo, algo de tão importante numa mulher. Prometo ser carinhoso, e chegar a cada parte do teu corpo com a mesma delicadeza, e sempre numa esponja cheia da espuma que te irá acalmando nesse teu aparente desassossego. E por fim ver-te o rosto, finalmente ver-te, no teu olhar de menina (espero), que é sempre o olhar da amante que suplica silenciosamente, nesse grande silêncio que se faz sempre no início. Abrir-te por fim o cenário por detrás do palco: afinal, vê, é manhã num campo onde florescem imensas plantas silvestres que tapam a tua nudez até à cintura, e onde tenciono esconder os traços da minha própria velhice. Perdermo-nos no meio de tão alto e inesperado passeio. Sem outra intenção do que a de fazer o contrário de toda a gente, que corre todos os dias atrás de tarefas e desejos inadiáveis e também de doenças mais que previsíveis. Antes comer aqui contigo uns legumes frescos colhidos à beira de um regato, um peixe que eu talvez tenha a habilidade de arpoar nestas águas, do que prosseguir nesse trajecto de loucos, cheio de sarro e sangue, em que a vida quotidiana se tornou. Mesmo assim, ainda conservo aquele velho pistolão que um antepassado me legou, e que tão útil me será em caso de ataque. Quem nos queira lixar, pelo menos o primeiro deles, verá antes a luz entre os olhos pelo buraco de uma bela bala de colecção. Uma bala de prata. Mas agora está tudo calmo, deita a tua infância ao meu lado, conta a tua história, as estórias que nunca ninguém te ouviu. Não começa sempre tudo por uma longa narrativa? Assim aprendi. Aqui entre as ervas altas há ainda muito tempo. Hão-de notar pela minha falta no teatro velho: que se lixem. Quero antes de morrer apreciar a companhia do teu corpo, da tua voz, e, com um pouco de sorte, acariciar o teu rosto, acolher com um afago de pétalas a tua alma. Perdi a consideração por tudo o que me rodeia, só tu existes entre estas ervas altas, altas, longe de qualquer outra pessoa, longe de qualquer lugar, por detrás de todos os cenários em ruína. Juntarmos aqui três respirações em uníssono: a tua, a minha, a da terra que nos acolhe tão delicadamente. É impressionantemente simples. Questão de alguma habilidade, que infelizmente só se aprende depois de representar muito, muito, sem dúvida demais.






Imagens: Ernesto Timor
site: http://www.ernestotimor.com/
texto: voj porto out. 2009

1 comentário:

Blogat disse...

Ah!...tanta coisa...