quarta-feira, 21 de outubro de 2009

diluição






Parto de uma luz perto, de um candeeiro mesmo ao pé de mim. Encontro-me na janela, prestes a levantar vôo: quereria, quero (ou aquilo que escrevo quere-o por mim) chegar às árvores mais perto. Mas os ventos subitamente fortes do Outono arrastam-me para as nuvens, e uma espécie de dança começa. Uma dança inquietante, lenta, um levitar estranho porque não sei onde me leva e se (ou quando) poderei cair daqui. Lá em baixo vejo aquela luz cada vez mais a afastar-se. Não sinto frio nem medo, não tenho talvez tempo para isso. Lembro-me daqueles quadros enormes de outrora onde figuras mitológicas se alçavam entre brumas, nevoeiros, paisagens celestes, sem nunca perderem a compostura das túnicas, sublimes na sua imunidade quase nua aos elementos. Viajo para sul. Vejo lá em baixo a costa de Portugal, onde o mar vem bater com toda a força e o vento arrasta tudo para o estado de vultos e de escombros. Sempre Portugal foi isso, uma praia fustigada, de onde era preciso partir, uma tragédia que o melhor é enfrentar com a serenidade dos deuses celestes. Perco a consciência. Tenho agora de novo uma lâmpada ao pé de mim. Há uma lareira ao fundo crepitando, estou envolto num cobertor muito quente e fofo, há um chá (asiático?) que me chega aos lábios e escorre por mim dentro, uma prateleira com livros, uma lapiseira com umas aparas caídas no chão, e sinto que algo aqui, há muito tempo, me esperava para começar, embora não saiba bem o quê. Isto é o interior de qualquer coisa que dá para muitos interiores. Isto é Portugal dentro, muito dentro de si. Aqui podia ser a minha casa. Vejo uma cama desfeita, toda revolta em dobras e redobras de lençóis altos, como se um céu de nuvens nela assentasse. E nesses flocos me distendo, sentindo-me (ou será o correr da narrativa que me ajuda?) cada vez mais seguro de mim. Não quero mais ter medo, abandono-me. Parece que voltamos a subir para longe, longe, tão longe quanto a imaginação de uma lâmpada acesa permite. Digo “voltamos” porque te encontro abraçada a mim (diria confundida comigo, perdi a noção de onde começo e acabo), e com todo o aspecto de teres entrado agora neste rodopio lento, espantosamente lento e silencioso, como se estivesse pintado num quadro antigo: e encontro os teus olhos, dizendo – perdi um botão do pijama – e ouço-me a responder-te – não te preocupes, não vais precisar assim tanto dele. Os teus olhos, por onde tu começas. Os teus olhos diluem-me. Quereria diluir-me assim para sempre, viajar em flocos, em castelos de natas batidas como nuvens, fluir em batalhas e aventuras fantásticas contigo, perder a consciência sobre florestas negras de nevoeiro e sombras. Deixar cair os botões todos que me cosiam ao mundo de todos os dias. E um dia aparecer acima das nuvens, como um personagem jovem, como um jovem alexandrino, e poder caminhar para ti dentro de um quadro onde tu me estendias o braço sobre o mármore, à beira do mar pousado no seu azul horizontal, numa pose pré-rafaelita, com som de flautas.
























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fotos e texto voj out 2009, porto

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