"E é também Heidegger que permite pensar esta facticidade do passado herdado, este facto de eu herdar um passado que não vivi, que pode muito bem não ser o dos meus antepassados, e que contudo se torna o meu passado à medida que eu me transformo em futuro."
Bernard Stiegler,
La Technique et le Temps. 3. Le Temps du Cinéma et la Question du Mal-être,
Paris, Galilée, 2001, p. 142
Toda a vida tenho procurado a interdisciplinaridade.
A interdisciplinaridade, como é evidente, só se consegue ir adquirindo a partir do domínio de uma disciplina.
Uma disciplina foi aquilo que tive de aprender a fazer bem (numa micro-área dela) para me doutorar.
Sou estruturalmente arqueólogo, não porque essa seja qualquer essência minha, mas porque me fiz assim.
E é a partir dessa experiência académica (foi sempre), e à medida que ela se reforçava, que o feixe de interesses por outros temas se desenvolveu: mas esse feixe de interesses não leva necessariamente à dispersão, mas ao enriquecimento da experiência própria, basicamente de arqueólogo.
Por que é que esta experiência de base é tão importante e instituidora de uma certa identidade e permanência, sem a qual só há deriva e gesticulação inconsequente? Porque ela une saber e saber fazer, implica ter "mão" no que se faz, ter segurança. Essa segurança só se vai obtendo ao longo de uma vida.
Esquematicamente, parte-se de um ponto para um feixe para se fazer convergir esse feixe num ponto, e deste ponto para outro feixe, etc. Sucessivamente.
Digo isto aqui porque há hoje em todos os aspectos da vida uma plasticidade que leva as pessoas a pensar que podem fazer tudo, abarcar tudo, realizarem-se em diferentes domínios e mudarem de personalidade e de identidade com a facilidade de uma operação plástica. Vão assim na ilusão pós-moderna (no sentido negativo) do fluxo, do curto prazo, do êxito fulgurante e fugaz, sem curar de obter uma base sólida que resista a essa sucessão estonteante de experiências a que nos conduz a ideologia neo-liberal capitalista.
Sem a incorporação de uma especialidade, profunda, não há abertura possível à interdiscipliaridade. Não é um processo sucessivo, bem entendido, aqui estou a esquematizar muito para ir ao essencial. Mas sem se saber bem FAZER, PRATICAR (não é falar acerca de) bem uma actividade, não se sabe mais nada, só impressões desgarradas e desconexas, em que muitas pessoas se arriscam a perder hoje com o ensino "fast food" e com toda a sociedade a viver na base da aceleração e do curto prazo, que esmaga o processo de individuação dos indivíduos, tornando-os em entidades frenéticas, egoístas, deprimidas e sem quaisquer laços estáveis seja com o que for, encaminhados como foram pela ideologia do empreendedorismo individual. O seu processo de individuação foi parasitado pelo individualismo, um cancro social, na medida em que impede a formação do sentido de comunidade. Em vez deste, aparecem as novas tribos, por vezes com aspectos selvagens, como se vê em determinadas claques, grupos minoritários sem programa nem espessura, ritos de toda a espécie que despertam sempre nas pessoas o que nelas há de mais básico, não sob uma forma que as realiza, que as individualiza, mas sob uma forma que as desindividualiza, integrando-as na massa de consumidores ávidos, insatisfeitos e, se muito contrariados, tendencialmente agressivos, porque se afirmam contra os outros, quer dizer, de forma tribal.
Tudo isto é mais que sabido e está mais que diagnosticado.
É certo que nenhuma pessoa, por mais que o sistema escolar e a educação em geral (o que acontece em casa é decisivo, desde a mais antiga experiência da criança) a "discipline", é monolítica, mas antes um ente em permanente devir e em permanente procura, com muitas derivas, experiências, erros - nada se faz, uma pessoa não se faz, segundo linhas rectas (à maneira cartesiana) mas mais segundo curvas, ou pregas, à maneira barroca, se me é permitida esta analogia simplista. Todos navegamos à bolina. Todos recalcamos ou adiamos muitas coisas que gostaríamos de ser e de fazer.
No meu caso, a literatura, entre outras, e nomeadamente a poesia, foi sempre uma atracção muito grande. E embora tenha sempre lido e escrito, e tenha até pensado na possibilidade de seguir por aí (como pelas ciências naturais, a certa altura, ou pelo cinema, etc - enfim, estas utopias típicas da adolescência, que são saudáveis). Mas nunca fui propriamente o escritor, ou o literatura típico, se é que isso existe. Recusei sempre o universo das letras, as referências da vida filtradas pela literatura. Queria a experiência manual, essa atracção de mexer no mundo (numa realidade minúscula que a ele pertence pelo convencionado processo de objectivação) que precisamente a ciência nos dá. E por isso, sempre lendo poesia e escrevendo o que fui podendo, e até publicando, só nos últimos anos me atrevi a auto-designar-me como poeta. É um pouco como aquele pudor que leva muitos estudiosos de filosofia a não quererem intitular-se filósofos, por pensarem, ou intuírem (mesmo que não estejam certos, mesmo que os outros não os vejam assim) como detentores de um pensamento próprio, de algo que faça sistema e que resulte da sua experiência continuada da leitura e reflexão do que os outros escreveram.
Para ter sido poeta de corpo inteiro, precisaria talvez de não ter tantas actividades e ocupações profissionais, e de poder, a um nível mais abstracto, raciocinar melhor a relação entre a poesia e a arqueologia, e explicar-me a mim próprio melhor (não é que o não tenha feito, algo porfiadamente, mas...não me satisfaz) por que razão essas duas formas de criatividade sempre me atraíram. A autoridade que, mesmo numa área limitada, sinto em arqueologia, até porque me prestei toda a vida a provas públicas nesse nicho, e esse aspecto da consagração social é fulcral nos indivíduos, não sinto em falar de poesia. Sinto por vezes ao escrevê-la, sem dúvida. E parece-me que essa autoridade é algo que resulta, afinal, de um trabalho aturado que durou décadas, a partir e em relação com a minha experiência arqueológica. Apesar de tudo, em ambos os campos, gostaria de ter ainda uns anos de lucidez (desprezo a vida vegetativa, não a quero, não a quereria) para poder prosseguir os caminhos da disciplina a que me habituei e em que me sinto em casa, e da interdisciplinaridade que sempre tanto me seduziu, e em que me sinto no prazer e na ansiedade (boa) da aventura.
Foto: Ernesto Timor
Site: http://www.ernestotimor.com/
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