domingo, 25 de outubro de 2009

o pêssego




Paul Cézanne (1890)




O pêssego no meio do prato. Com a sua pelagem muito fina, que é afinal a sua epiderme nua. Toca-lhe a luz. Ao longo do dia. Pode avistar-se de longe, na casa, sobre a mesa da cozinha, sobre a mesa da sala, cada vez mais longe, cada vez mais perto. A sua promessa é a polpa, a carne que se contrai e distende entre o caroço duro, desejoso de se concentrar, e a pele nua, desejosa de explodir para fora de si mesma. O pêssego pode concentrar todas as expectativas da casa, de alguém que o pôs no meio de um prato com faca ao lado, da boca, ávida da polpa, que imagina que é para ela que ele ali está, que ele ali foi posto. Tudo converge e tudo diverge em fluxo continuo até à chegada do pintor, que faz da cena uma natureza morta. E aí, o pêssego, já antes tirado da árvore, falece pela segunda vez, e os pêlos crescem nele, invadem o prato, estendem-se sobre a mesa, irradiam na cozinha ou na sala, conforme, e, então sim, a memória surpreende-se pela sua extraordinária capacidade de retenção, pela sua não menos extraordinária capacidade de transfiguração. O pêssego está de novo no meio do prato, intacto, com o seu pêlo curto e luzente, com a sua pele sensual, na cozinha, ou na sala – e também na tela do pintor, que sorri para ele e diz para si mesmo: hoje o pêssego saíu-me bem. E senta-se em frente da obra a ver como a luz, ao longo do tempo, a vai transformando. É neste sistema de transformações que reside algum mistério, a havê-lo.

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