quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Remotas arquitecturas paisagistas?


SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE ARQUITECTURA E ARQUEOLOGIA - FAUP 2008
INTERPRETAR A RUÍNA: contribuições entre campos disciplinares

Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 16, 17 e 18 Outubro 2008




Intervenção de Vítor Oliveira Jorge (DCTP- FLUP) (dia 16, 15 h.)


Remotas arquitecturas paisagistas?
Arqueologia de monumentos pré-históricos: investigação, explicação, valorização


Arquitectura e paisagem são, evidentemente, conceitos modernos, ocidentais. Mas é com essa consciência de relatividade de ponto de vista que temos de olhar para o mundo, e tentar compreendê-lo, mesmo que saibamos quão contingente é sempre qualquer conclusão, que abre para um milhão de perguntas. Mas a nossa consciência satisfaz-se com a resposta, com o edifício conceptual, embora tenhamos consciência de que nada há de mais problemático do que a sua estabilidade, como os arquitectos bem sabem. E entre estes dois pólos (contingência e certeza) vamos vivendo, tanto na vida de todos os dias, como na do pensamento, na da ciência ou na da arte. A vida é este exercício de des(equilíbrio).
Como igualmente se sabe bem, a ruína é tema antigo, revivescido pelo Romantismo, no que ela parece poder simbolizar de equilíbrio entre o cultural e o natural, entre o que decai e o que apesar de tudo resiste a essa decadência. E interminável será o debate sobre o que se deve preservar e como, e o que se deve destruir e como... tudo isso depende muito de factores subjectivos, e sobretudo de uma política de construção do espaço e de ordenamento do território. De maneira que tal debate só se tornará eficaz se cada um dos interlocutores assumir uma posição meta-teórica, explicitando de que ponto de vista se coloca, para afirmar ou defender este ou aquele ponto de vista. Quer dizer, a posição em que se está faz parte do problema, e se se ocultar essa necessidade está-se apenas a produzir ideologia, mais ideologia.
A pré-história, como o próprio nome indica, tem sido sempre considerada um simples átrio da história propriamente dita, a das sociedades civilizadas, estatais, para não dizer modernas. Claro que tudo depende do que entendamos que entra na história no sentido amplo, ou seja, onde começa a fronteira (problema talvez imaginário) entre o humano, ser produtor de história, e o não-humano, o animal, que viveria numa não-história. Conhecemos a esse respeito a distinção entre sociedades primitivas, frias (essa invenção preconceituosa da modernidade) e sociedades quentes, produtoras de inovação (as nossas, claro, nesta ideologia evolucionista e, em ultima análise, profundamente redutora, racista e escamoteadora da imensa variedade da riqueza humana).
Não custa assim a perceber que as arquitecturas da pré-história, com tudo o que essa expressão tem de discutível, tenham sido sempre umas parentes pobres da arqueologia, apesar da imensa curiosidade em torno de monumentos como Stonehenge, ou dos alinhamentos de Carnac, entre outros. Mas estes foram muitas vezes valorizados, obviamente, em função da defesa de interesses nacionalistas face ao imperialismo romano, à herança cultural mediterrânica, simultaneamente símbolo da perfeição idealizada, nomeadamente na sua versão grega/helenística, verdadeira matriz da nossa cultura (como ainda para Heidegger, por exemplo) ou índice de ocultação e subjugação de valores locais, de que a obsessão celtista é um dos exemplos. Um Atlântico ou Norte sombrio contra um Mediterrâneo iluminado. Este “amor do Mediterrâneo” (hoje massificado pelo turismo) pode aliás ter, no “culto” por parte de certos europeus da civilização islâmica e da sua arquitectura, uma manifestação bem típica, não nos fazendo esquecer o substracto que, por exemplo, no Norte de África, essa expansão religiosa e política veio abafar, nomeadamente no que toca aos povos genericamente designados berberes (a linguística histórica é responsável também, tal como a antropologia, etc., por muitos reducionismos...). Enfim tudo isso diz respeito a uma nostalgia orientalista que Said caracterizou muito bem.
O que é monumental atrai a atenção, dá imagem, bilhete postal, ilusão de auto-evidência: e por isso também os “pré-historiadores” têm tentado concentrar a sua atenção nesses faustos de um passado longínquo, aurados de mistério e, hoje, atractores de fluxos turísticos e delírios neo-pagãos, do tipo New Age. Todo aquele que estuda confunde-se um pouco com o objecto do seu estudo: e o seu desejo, ao estudar objectos ou construções de prestígio, é evidentemente partilhar desse prestígio, associá-lo a si, mimeticamente. Mas isso seria para uma psicanálise/sociologia/antropologia da arqueologia...
A arqueologia contemporânea, como qualquer outra ciência do território, lida com paisagens inteiras (convencionalmente conceptualizadas, claro, pois não fazemos ideia de quais as diferentes “fronteiras” que ao longo do tempo se foram fazendo e desfazendo), hoje auxiliada por muitas tecnologias de modelização informática, como é bem sabido. Aquilo que o arqueólogo pode aportar de mais importante aos outros intervenientes nesse território é, evidentemente, tornar visível o que eles não vêem, até ao mais pequeno traço ou vestígio. O que já se vislumbra é banal (embora possa não ser compreendido), mas a consciência da “estratificação temporal” (da temporalidade) de uma paisagem (como uma ampla rede de tarefas, de performances), de um sítio, de um objecto, essa o arqueólogo está talvez preparado como ninguém para tentar elucidar – e isso já não é tão fácil, nem óbvio, nem banal. De modo que é a monumentalidade do invisível aquilo que o caracteriza, que é, de certo modo, a mais-valia do arqueólogo. Claro que essa invisibilidade não deriva apenas nem das coisas (estarem soterradas, ou de algum modo escondidas), nem das pessoas (não terem olhos para ver, ou seja, não estarem preparadas para valorizar uma determinada realidade), mas das duas em inter-relação. Há sempre uma “moldura”, uma janela, que me precede naquilo que eu vejo, embora possa não ser muito rígida – sabemos isso desde o estruturalismo. Mas também há uma sugestão de “estrato inconsciente” naquilo que cada época e cada contexto torna visível ao observador, a cada observador na sua vivência única e intransmissível –sabemos isso desde Freud. Portanto, o que é ou não é importante no trazer à visibilidade em cada momento depende de muitos factores complexos, desde o mais subjectivo ao mais objectivável (dois pólos também sempre em interligação: cada regime de objectividade é também um regime gerador de subjectividades e vice-versa).
Leroi-Gourhan, um dos homens mais inteligentes que a França teve no século XX, escreveu que para conhecer o humano, a sua fronteira, a sua "definição", os modos de organização do espaço são talvez o critério mais importante. Se assim é, aquilo que chamamos arquitectura no sentido corrente (e não no metafórico) é muito importante, apesar do seu convencionalismo, para compreendermos outros tipos de racionalidade, outras ontologias, outras formas de explicar/vivenciar o mundo, que nos precederam. Essa tarefa, para as épocas mais cronologicamente remotas (mas que na maior parte do planeta chegaram aos nossos dias e que, de qualquer modo, pelo menos em termos quantitativos, são 99% da nossa história) é a tarefa do “pré-historiador da arquitectura”. Não se trata, obviamente, apenas e tão somente de compreender técnicas ou determinar funções. Isso seria muito bom, mas pouco ambicioso e mais uma vez profundamentamente redutor e eurocêntrico. Trata-se, sim, de tentar perceber de que forma certos modos de organização do espaço (desde a mais micro à mais macro escala) de certo modo indiciam possibilidades de compreender essas outras ontologias, esses modos de habitar o mundo, diferentes do nosso. Por modos de habitar o mundo quero referir-me a complexos em que acção e reflexão se não distinguem senão de maneira convencional: o que não significa atribuir aos “pré-históricos” um estatuto de não-reflexivos (seríamos nós agora que iríamos decifrar-lhes as estruturas inconscientes de comportamento, numa atitude “racista”), mas admitir que as formas de auto-reflexividade individual e colectiva tiveram miríades de expressões ao longo do espaço e do tempo. E não vale a pena estarmos a fazer o discurso da perda desses “patrimónios”. Porque a vida, para poder existir, implica essa face de perda, esse lado de morte. Só o nosso tempo, ajudado pela ciência, sonhou com uma longevidade dos indivíduos quase infinita, ou com uma lacagem de toda a realidade em museu, ou património, ou como se lhe queira chamar. Isto é: há uma exorbitação do arquivo, ou como diria Derrida, uma “febre arquivística”, agora ajudada pelas “novas tecnologias”, pela transformação do conhecimento em informação (produto, mercadoria) e pelas ciências cognitivas, que constituem uma galáxia ideológica (e política, claro, de forte cariz tecnocrático) que seria muito interessante de definir e eventualmente de (psic)analisar, o que aliás tem sido feito.
Por outro lado, nenhum discurso pode também legitimar o facto de uma sociedade deixar apenas aos que estudam a “pré-história” os restos de território que mais ninguém quer. É óbvio que sem meios de produção, de fabricação de saber, não se consegue passar da situação de subalternidade em que em geral esta faceta da arqueologia tem estado, com raras excepções. Mas, quem são os agentes públicos, os que fazem o território, que estão dispostos a abdicar de interesses fortíssimos a curto prazo para salvar da destruição o que poderiam ser testemunhos únicos para a compreensão da variabilidade da nossa espécie, isto é, de formas de organização do espaço que correspondem a ontologias extintas, constantemente em devir, e nunca "registadas" pela escrita (que é aliás um documento sempre muito enviesado, como sabemos).
Quem permite, e em que condições, que “coisas” que não são espectaculares, que não são imediatamente visíveis, que não são imediatamente rentáveis, tenham tempo e meios para se tornarem visíveis, suficientemente inteligíveis para suportarem tentativas experimentais de restauro, de monumentalização e de visibilidade pública? Esta é a questão. É uma questão de política. Já se destruíu muito, muitas estruturas vernáculas, ou romanas, ou medievais, ou seja de que época sejam, porque não eram feitas de pedra, e não tinham carácter “monumental”. Poderíamos dizer “basta”, mas de nada nos servem arremedos de madona aviltada se não tivermos força – e não temos (e, já agora, quem é este "nós" que por mim fala?) – para nos contrapormos às forças que arrasam o mundo, as pessoas, as espécies, florestas inteiras, enfim, que transformam em uniformidade (a uniformidade do betão, por exemplo) a heterogeneidade da vida, de que as chamadas arquitecturas pré-históricas, as formas de construir espaços de há milhares de anos, também faziam parte.
A investigação de qualquer assunto jamais está completa; quando muito acaba uma das suas etapas. Por isso a arqueologia empresarial não pode, por si só, responder aos problemas acima enunciados; trabalha por tarefas e por orçamentos/temporalidades basicamente indiferentes às da pesquisa. O poder central, regional, e local, quer dizer, o conjunto de cidadãos, é que teria de tomar opções aqui. Dar tempo e espaço de manobra para se estudar sistematicamente aquilo que exige lentidão, formação de uma nova consciência de valor, trabalho de equipa, etc. Um mundo novo, um modo partilhado de fazer arqueologia. Como qualquer outra investigação científica. Com pressa de compreender mas sem pressa para destruir o que seriam os instrumentos dessa compreensão. Mas dizer isto, no mundo em que vivemos, parece já uma blasfémia: quem se interessa por estas questões? Serão elas puramente académicas, ou, repito, sobretudo políticas? E, neste caso, têm alguma margem para vingarem? Acho, infelizmente, que não, que não têm.
Só o óbvio é que se transmite. De modo que a comunicação, a explicação, a pedagogia, consiste em tornar comunitariamente, socialmente óbvio o que é apenas, de inicio, óbvio para uma minoria. Foi o que aconteceu com o Parque do Côa, ainda hoje em processo de afirmação. É o que seria preciso acontecer com certos recintos ou outros “monumentos” pré-históricos, por exemplo, agora em estudo (não me refiro a alguns já musealizados ou em vias disso). Resta-nos pelo menos a consciência desse espaço de perda, que nos compete de-monstrar. Uma perda obsessiva, mais uma vez? Talvez, mas não podemos calar-nos em função de uma relativização de tudo. Quando o mundo estiver todo betonizado, e cada vez mais pessoas sentirem a nostalgia (evidentemente mitificada, como todo o processo memorial), do que (não) havia antes, hão-de, como me diziam quando era miúdo, “torcer a orelha mas esta já não deitará sangue”. É preciso actuar em dois patamares: a consciência da precaridade do conhecimento não pode transformar-se na justificação da precaridade da afirmação pública de novas formas de conhecimento, e portanto no abandono do terreno aos tecnocratas, que já o detêm todo.
Estudar e valorizar alguns locais numa paisagem em patchwork, para admiração dos turistas, é suficiente? Naturalmente que não. Mas algo tem de ser feito antes que tudo esteja em situação irreversível.
Veja-se por exemplo o que está a acontecer na área de Stonehenge, envolvendo projectos de milhões de libras. É que não é apenas esse recinto, ou a “avenida” que dele sai, ou os muitos montículos que existem em toda a paisagem em redor, ou o recinto com fossos (e portanto actualmente sem monumentalidade alguma) e a “avenida” que dele sai, que são importantes: é toda a realidade ali existente, cujo eixo é evidentemente o rio Avon. Foi provavelmente esse rio, um troço desse rio, e sua envolvente, que os “pré-históricos” quiseram “monumentalizar”, como também acontece no vale do Boyne, na Irlanda, e em tantos outros sítios. Esses “pré-históricos”, que não eram cartesianos, nem muito menos gregos, pensavam a sua relação com o mundo de um modo provavelmente muito diferente do nosso, sem a separação natureza/cultura, ou natural/artificial, que nos caracteriza. “Reconstituir” essa(s) ontologia(s) hoje há muito desaparecida(s) (e não períodos pré-históricos tipificados por objectos e fossilizados em pretensas “culturas”), ah, isso sim, isso é o que torna a arqueologia aliciante, e a sua “démarche” insubstituível no mundo contemporâneo. Um mundo que não é, evidentemente, “pós-histórico”, mas que tem de recolher na especificidade dos gestos de cada sítio e de cada momento, exaustivamente, os traços de uma vivência que já não é a nossa. Ou, se quisermos dizer em termos mais precisos e menos convencionais ou de senso comum: tem de construir uma “pré-história” do século XXI, e não à maneira do séc. XIX ou XX.

Nem que isso aconteça apenas numa só região, como aconteceu no Côa, é muito importante que isso aconteça. É um precedente inquietante (no bom sentido) para o muito que estamos a perder, tapando os olhos, os ouvidos e a boca.

Porto, Outubro de 2008

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