domingo, 5 de outubro de 2008

por dentro


Escreveria sob a tua pele
O recado que não sei qual é.

Por dentro da tua pele, como
Se habitasse o teu corpo,
E a sua parede interior fosse o limite
Do meu universo,
A superfície deste bordado,

E nele escrevesse como quem pinta
Num muro o signo indecifrado
Ou inscrevesse com a grande agulha
Aguçada e fina, por dentro,
De lá para cá, sem saber o que verdadeiramente faz.

Pois seria preciso ir até ao coração
E dele partir para os pulmões, e de lá
Para o lado interior da epiderme
Sempre tacteando o caminho
Com uma certeza enorme.

Segurando o cálamo, erguendo
A ponta com que te escreveria, realidade,
Linha a linha, poro a poro perfurado,
Com habilidade caligráfica
Poema que está dentro do corpo.

Mas que poema, se já todas as canções
Foram entoadas
E as flautas se esgotam sobre as dunas
Intermináveis, sob as quais estão sepultados
Os textos escritos pelos mortos
Ao contrário, quando se viram do outro lado
E comunicam connosco com as suas penas afiadas,
Cheias de tinta escura, feita de sangue negro.

Vê: este o meu banco, este o meu códex,
Estes os frascos com que escreveria, e estas
As essências com que apagaria, para deixar só impressões,
Ondulações de duna, pegadas que estão por dentro
Da pele nua dos pés descalços,
Um sentido que saísse do espelho e se virasse para mim, atónito.

Objecto indecifrável! As tuas veias verdes
Concrecionadas pelo tempo interior.
E este meu esforço imaginado de caminhar por ti dentro,
De te sair dos pulmões, prosseguir até ao fígado,
Até à pele, mas por dentro

Para aí inscrever o signo.
Sem sentido que fosse para além deste cântico
Sem dúvida insensato, repetitivo, crescente,
Até furar os tímpanos,
Enquanto as saias rodam como magnólias celestes:

Ela, ela, ela, ela, ela, ela, ela:
Repetida até ao enlouquecimento.

Até as tatuagens te saírem de dentro
E aflorarem ao ar, à superfície deste mundo exterior
Indecifrável.

Repete, dança, escreve, move as ancas,
Olha com os dois seios macios, concentrados;

Espera pelo momento
Em que a palavra
Soberana, apagada de si mesma,
Simples anúncio da sua mesma ausência,

Te há-de sair do corpo,
De sob a pele.

Ou estarei radicalmente esganado?
Falo eu apenas de raizes que se espalham ou concentram
e jamais saem até ao oxigénio
do sentido, da respiração
cá de fora?

veias incomunicáveis, verdes,
epígrafes que jamais tiveram ou terão um sentido,
caligrafias totalmente
abstractas?


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Foto: Sacha Federowsky
Site: http://www.sachafedor.eu/index.html
Texto: voj 2008

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