mesmo ao fundo do movimento,
onde este se perde na bruma do silêncio
e as coisas do mundo comum se esfumam e deformam
até se tornarem abstractas, resumidas a um ponto,
a um fundo de rua pontuado de algumas árvores.
estas chamam os pássaros e o vento,
por vezes as cordas de chuva que avançam, e param,
deixando lugar ao sol imóvel, com as suas cores misturadas
no fundo da rua, onde como, durmo, acordo, leio, escrevo coisas,
e tento, de divisão em divisão da casa, cruzar-me contigo.
evito as notícias e os acontecimentos: isso foi uma vida anterior,
em que se não podia pensar, quer dizer, sentir fosse o que fosse,
porque o sentimento começa quando as paixões se acalmam
e o animal que está no nosso interior se senta, magnífico e saciado.
esta rua sentou-se no fim do tempo,
com desejo que não lhe telefonem, que não a interrompam,
porque há aqui uma tarefa, um artesanato, um país distante,
um tear em funcionamento, gatos que deslizam
e nos olham à espera do que só eles podem saber.
vivo neste mundo desfocado. tenho por vezes de fazer incursões/
no exterior, falar com gente, praticar acções de que depende a vida,/
o salário, essas coisas práticas que ocupam tanto tempo, e me obrigam/
a sair deste fundo de um espaço que assiste às horas, à mudança das cores,/
à sucessão das estações, às frases que se me entrelaçam no tear, por vezes/
com a sensação de que fazem um pano resistente, e iluminado,/
cheio de figuras e capaz de animar longamente uma parede.
tacteio, escuto, ouço a correria dos carros ao longe, as sirenes.
está-se bem aqui, as palavras dos outros vão pousando no início da rua/
e acabam por se escoar como a água ou as folhas varridas;
e tudo está então certo, e não é preciso nem fadas, nem arlequins,/
nem festas, nem ruído, nem mesmo água.
só este fundo de rua.
esta continuação parada.
este refúgio, esta toca,
onde emergem os focinhos dos gatos em volta da tua cara dormindo,
bela como sempre foi.
que paz infinita.
os dois sentados sobre a almofada bordada,
com um signo entrelaçado ao centro, em ouro.
ungidos em essência de jasmim, completos.
rodeados de dunas até ao infinito
em que tudo se esfumou, sem mais começo
nem fim.
voj texto e foto (Merzouga, Marrocos) 2008
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Nota: o traço / é a divisão de versos, que se deforma quando a "mensagem" é publicada.
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