quarta-feira, 10 de setembro de 2008

algum trabalho para remover



eu não queria parar aqui.

nesta fronteira
cheia de cavalos cansados
e abismos de onde vem um hálito
de vazio.

eu queria ver as cabeças embalsamadas
marcando a margem até ao infinito:
ou seja, o outro lado, algo para lá do horror mais absoluto.

talvez incontáveis cabeças de camelos já verdes
pela antiguidade da sua morte,
escorrendo um sangue de estalagtites.

eu não queria parar no fim da estrada
na berma do abismo
onde expressões de angústia me confrontam
cada uma com o seu passado e a sua queixa.

seres nus, deambulando como espectros,
incapazes de segurarem a sua coroa.

estou cansado de vultos a lamentar-se:
que é o que sofrem comparado com o que já aconteceu
e acontece, e está para acontecer?

cantem as gaitas de foles junto a uma fronteira imensa
e milhares e milhares de seres levantem as saias
para o voo branco!

deita-te na areia
que a noite, uma cobra, um simples lacrau
hão-de chegar para acabar connosco,

e veremos o horizonte juntos,
rindo de agonia e dos miseráveis que querem a todo o custo
ter a vida arranjada, tudo em ordem,
e vivem como répteis
junto à sua própria comida e excremento, tudo perto.

se aceitas este pacto, vem comigo
até à fronteira para lá das fronteiras
sem qualquer garantia nem seguro,
sem qualquer previsão.

caminha apenas, enquanto puderes,
pois o sol e os bichos
que espreitam os exaustos
hão-de acabar connosco.

e enquanto tiveres forças
espalha no ar esta areia rósea,
levanta os lençóis da atmosfera,
as saias brancas.

não tenhas medo nem pena nem qualquer ansiedade,
o importante é conseguirmos no momento preciso
ter a mão de um escondida dentro da mão do outro.

e dentro dela, o baile dos deuses
transformados em anões, em brinquedos nossos,
ridículos seres humanos entregues ao tempo,
presas da expectativa,

enquanto algures alguém se ri disto tudo
desta corrida, deste percurso, desta viagem malvada
em que sem pedirmos nos meteram.

olha os olhos do camelo morto:
são sublimes as suas lágrimas de estalagtites
caindo sobre esta greda branca,
sobre este gesso virgem do deserto.

estou farto deste vai-vém
querendo sempre mais qualquer coisa,
vendo se mais algum sinal aparece,

rodeado de brutos, de filhos da mãe,
de gente medíocre
sempre a queixar-se,
ou a fazer alarde dos seus feitos

- tipos e tipas que apenas me pedem coisas,
me perguntam quem são e para onde hão-de ir.

pois dou-lhes o meu corpo,
que o venham buscar aqui na fronteira
colado com lava ao teu,
tornado fóssil negro, negro, e brilhante, e pesado

- algo que ainda lhes dará trabalho e sobretudo despesa
a remover!




2008 voj texto e foto (pôr do sol sobre as dunas de Merzouga, fronteira Marrocos-Argélia)

4 comentários:

Anónimo disse...

Está bom. Áspero e aveludado...

Anónimo disse...

Não sei se está poeticamente bom. Falará de alguma coisa que remotamente eu possa ter a ilusão de compreender?

Vitor Oliveira Jorge disse...

Este poema é-te dedicado.

Anónimo disse...

Ah.........