Em Setembro de 1979, Abdulah Ibrahim e Johnny Dylani gravaram um disco com quatro composições chamado "Echoes From Africa". A quarta dessas composições designa-se "Zikr (Remembrance of Allah)". Este texto e foto (texto - porto; foto - marrocos 2008 voj) são uma homenagem (muito singela, como é costume dizer-se) a essa inpiração.
O disco está editado em 1990 pela Enja Records, Munique, Alemanha.
Há séculos (ou há milénios?) que percorrermos este mesmo corredor, interminavelmente. Sujeitos que estamos às leis do cansaço, às condicionantes do corpo, temos períodos de maior energia, em que parece andarmos muitos metros, para não dizer mesmo centenas de metros, ou quilómetros. Outros, porém, em que, ao contrário, parece entrarmos numa espécie de delírio, e então julgamos estar a começar do início, de novo; e, se calhar, estamos mesmo. O certo é que já muitos homens célebres (e algumas mulheres, excepcionais) percorreram este mesmo corredor, fascinados pela luz do fundo e por certas figuras que ela sugere, desfocadas. Mas morreram antes de lá chegar, o que não os impediu de ficar famosos, mas totalmente os inibiu de atingirem o fim em vista, quer dizer, de passarem da sombra para a luz total, a luz que torna a toga de um ser humano tão luminosa, que cega de imediato todos os circumpresentes.
Digamos que este corredor é a condição humana. O azulejo, o estuque, e as mais requintadas artes o adornaram; as mais belas mulheres ou homens se sentaram ao fundo, em plena luz. Mas jamais algum homem, ou mulher, ou seja o que for, foi capaz de as alcançar. E os que morreram pelo caminho, que foram todos antes de mim, infelizmente viram a sua própria boca apodrecer e ser comida pelos vermes como acontece a qualquer vulgar animal, antes de poderem ter pronunciado a palavra que daria a chave do que estamos a fazer aqui, de por que é que chegámos a este corredor e só temos este caminho – o de seguir em frente, até o corpo baquear num passo de dança para o solo e o sangue que contém embeber os azulejos e se misturar no seu verde, na sua cor.
Naturalmente que nos entretemos com imensas coisas, jogos, encontros, projectos, combinações, fantasias, desejos. E assim vamos gastando o tempo que nos foi dado para a decifração. Quando finalmente nos conseguimos libertar um pouco do corpo para começar a pensar, está perto já o momento de nos submetermos aos rituais de transfiguração em que, de vivos, passamos a ser dados como mortos, e em que, de seres que se agitam, passamos a estar parados. Essa última seria a condição talvez ideal, pois nos libertaria de tão grande empreendimento que nos confiaram, o de perceber que raio somos e o que estamos a fazer aqui. Acontece porém que a mesma noite que existia antes de abrirmos os olhos, nos volta a cobrir; e que as carnes se nos apodrecem rapidamente, provocando nojo aos nossos conterrâneos e familiares, que são compulsivamente levados a libertar-se de nós, até para o corredor ficar limpo, vazio para novos seres entrarem nele. Não há fuga nem liberdade possíveis assim: e aqueles alucinados que falaram disso acabaram tragicamente a babar-se e/ou a borrar-se todos às portas da morte, quer dizer, sem dignidade, como animais que estoiram, e deitam todo o conteúdo do corpo cá para fora no momento dessa exaustão.
Um só tipo de seres se salva nisso, e encontra talvez alguma luz no momento em que está quase a atingir o fim da viagem, essa ilusão suprema. São os artistas que trabalham o estuque, que fazem os azulejos, que consertam continuamente a terra de que o miolo das paredes é feita. Esses, estão entretidos; usam as suas mãos, mas não só – o corpo todo entra, e a sua imaginação, e a sua altivez. Porque há altivez nos artesãos que sabem trabalhar os materiais, transformar o corredor, pô-lo mais belo, travar a sua degradação. São esses homens e essas mulheres que acreditam. É uma questão de educação, e de bondade, respeitá-los. Vivem na unidade de si com o mundo, com a sua crença e o seu desígnio. Caminham como todos, e julgam estar sempre a chegar ao fim do corredor. Os falhanços não os esmorecem, antes reforçam a sua convicção e o seu entusiasmo, a sua crença. E esses sim, são felizes, e para eles está nesta terra o verdadeiro oásis.
Digamos que este corredor é a condição humana. O azulejo, o estuque, e as mais requintadas artes o adornaram; as mais belas mulheres ou homens se sentaram ao fundo, em plena luz. Mas jamais algum homem, ou mulher, ou seja o que for, foi capaz de as alcançar. E os que morreram pelo caminho, que foram todos antes de mim, infelizmente viram a sua própria boca apodrecer e ser comida pelos vermes como acontece a qualquer vulgar animal, antes de poderem ter pronunciado a palavra que daria a chave do que estamos a fazer aqui, de por que é que chegámos a este corredor e só temos este caminho – o de seguir em frente, até o corpo baquear num passo de dança para o solo e o sangue que contém embeber os azulejos e se misturar no seu verde, na sua cor.
Naturalmente que nos entretemos com imensas coisas, jogos, encontros, projectos, combinações, fantasias, desejos. E assim vamos gastando o tempo que nos foi dado para a decifração. Quando finalmente nos conseguimos libertar um pouco do corpo para começar a pensar, está perto já o momento de nos submetermos aos rituais de transfiguração em que, de vivos, passamos a ser dados como mortos, e em que, de seres que se agitam, passamos a estar parados. Essa última seria a condição talvez ideal, pois nos libertaria de tão grande empreendimento que nos confiaram, o de perceber que raio somos e o que estamos a fazer aqui. Acontece porém que a mesma noite que existia antes de abrirmos os olhos, nos volta a cobrir; e que as carnes se nos apodrecem rapidamente, provocando nojo aos nossos conterrâneos e familiares, que são compulsivamente levados a libertar-se de nós, até para o corredor ficar limpo, vazio para novos seres entrarem nele. Não há fuga nem liberdade possíveis assim: e aqueles alucinados que falaram disso acabaram tragicamente a babar-se e/ou a borrar-se todos às portas da morte, quer dizer, sem dignidade, como animais que estoiram, e deitam todo o conteúdo do corpo cá para fora no momento dessa exaustão.
Um só tipo de seres se salva nisso, e encontra talvez alguma luz no momento em que está quase a atingir o fim da viagem, essa ilusão suprema. São os artistas que trabalham o estuque, que fazem os azulejos, que consertam continuamente a terra de que o miolo das paredes é feita. Esses, estão entretidos; usam as suas mãos, mas não só – o corpo todo entra, e a sua imaginação, e a sua altivez. Porque há altivez nos artesãos que sabem trabalhar os materiais, transformar o corredor, pô-lo mais belo, travar a sua degradação. São esses homens e essas mulheres que acreditam. É uma questão de educação, e de bondade, respeitá-los. Vivem na unidade de si com o mundo, com a sua crença e o seu desígnio. Caminham como todos, e julgam estar sempre a chegar ao fim do corredor. Os falhanços não os esmorecem, antes reforçam a sua convicção e o seu entusiasmo, a sua crença. E esses sim, são felizes, e para eles está nesta terra o verdadeiro oásis.
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