Face da terra, face do ser humano: algumas nótulas impressionistas sobre arqueologia e sobre o "mundo" - para mim ainda largamente desconhecido -
das “ciências da psique” (*),
ou:
algumas caretas que nos faz a realidade
quando tentamos olhá-la de frente
das “ciências da psique” (*),
ou:
algumas caretas que nos faz a realidade
quando tentamos olhá-la de frente
“(...) o trabalho da verdadeira recordação (...) deve ser menos o de um relatório, e mais o da indicação exacta do lugar onde o investigador se apoderou dessas recordações. Por isso, a verdadeira recordação é rigorosamente épica e rapsódica, deve dar ao mesmo tempo uma imagem daquele que se recorda, do mesmo modo que um bom relatório arqueológico não tem apenas de mencionar os estratos em que foram encontrados os achados, mas sobretudo os outros, aqueles pelos quais o trabalho teve de passar antes.”
Walter Benjamin, “Imagens de Pensamento”, p. 220
Se me pedissem uma só palavra para definir a modernidade (o mundo em que simbolicamente vivemos nos últimos séculos), elegeria a palavra paradoxo. Esse seria até, pelo seu carácter sintético, o título que escolheria para um livro: Paradoxo. É que tudo, na modernidade, é feito de algo e do seu reverso. Duas faces contraditórias da mesma moeda que, depois, se multiplicam rizomaticamente por milhões de seus derivados.
A complexidade é enorme, e todo aquele que sai do seu pequeno campo disciplinar (onde aliás às vezes nem está, porque se estivesse a fundo, iria encontrar muitas “saídas”, muitas aberturas em todas as direcções, a partir desse infinitamente circunscrito) lança-se numa aventura sem fim e sem etapas certas. Perde o pequeno caminho que o orientava, e nem sequer voga num espaço pluridimensional, mas ainda controlável por si: lança-se na mais radical das aventuras, orientado-se de quando em quando por ténues sugestões. A intuição é o seu guia.
Confronto-me, entre múltiplos outros aspectos (como arqueólogo e como pessoa) com dois objectos, com duas realidades que (imagino que) estão perante mim (que de certo modo, reflectidamente, me fitam) e desejo perceber: a terra, o rosto. Ambos se me apresentam como “enigmas” (aparências com uma “espessura”, visibilidades que apontam para sombras, invisibilidades) e se tornaram, por qualquer razão, focos privilegiados da minha interrogação e curiosidade. Claro que as palavras utilizadas são convencionais: a terra ou o rosto são, na realidade, mesmo só para mim, muitíssimas coisas, que é impossível fixar numa imagem ou num milhão de imagens. Fazem parte do meio-ambiente em que estou imerso, meio esse percorrido por pequenas percepções ou imagens-nuas, para usar os termos de José Gil.
Posso considerá -los objectos num duplo sentido: realidades que estão perante mim, sujeitas à minha observação (modo muito especial, já, de percepção), a qual, como tais, os institui; e, ao mesmo tempo, apresentam-se (aparentemente, à primeira vista, e de acordo com o senso comum) como aquilo a que se chama normalmente “materialidades”, “fisicalidades”; são “corpos” expostos à vista e, eventualmente, ao tacto (pelo menos). Fazem parte, em suma, da realidade objectual que me rodeia.
Estão “ante” mim, mas este “mim” podia ser colectivo, isto é, o que visa é pensar o problema em abstracto: estão perante nós, se as encararmos com alguma atenção (a fixação do olhar, da atenção, não é nem inocente nem espontânea, nem depende do indivíduo – porque objectiva, segundo certas regras incorporadas, e assim sujeita (subjuga), o observado – torna-o meu/nosso objecto – de acordo com determinados protocolos).
Quero encontrar-lhes um nexo que escape às meras metáforas já gastas pelo uso do dia a dia, às analogias que não acrescentam nada, às ilusórias “relações” induzidas pelo discurso corrente (por exemplo, projectando na terra os meus supostos “estados de alma”, ou entendendo o rosto como expressando supostos “estados de alma” do outro). Quero sair da especulação gratuita para poder partilhar com outros a minha subjectividade.
Recuso, pois, uma pseudo-articulação ou identificação dos temas em termos de recursos retóricos correntes como seria, por exemplo, o de falar da “face da terra” e do que a ela subjaz; usando assim a palavra “face” no seu suplo sentido de superfície e de rosto, apelando para duas realidades que, pelo facto de serem olhadas interrogativamente por mim, me devolvem um olhar e uma interrogação. Trata-de de uma estética de gosto discutível e sobretudo conceptualmente irrelevante. Que o título deste texto, pois, não engane o leitor, eis o que espero.
Por que me interpelam estas realidades, que querem de mim? Espera(m)-se que lhes confira um (ou vários) sentido(s), uma interpretação? À terra, que lhe dê um tempo, um passado, uma narrativa; ao rosto, que lhe confira uma intenção, um carácter, uma emoção, uma alma, uma biografia – em suma, que destape o véu da materialidade, a realidade tal como se me apresenta à primeira vista, para descobrir nela, nesse espaço do visível, um invisível insinuado, que apenas espera o meu trabalho de decifração, de observação, de decapagem, de escavação, para vir à tona? Será assim tão fácil? As relações entre o visível e o invisível são., como se sabe, um antigo tema recorrente da nossa tradição filosófica, que eu evidentemente não tenho competência para abordar.
Ver o “profundo” por detrás (por debaixo) do superficial, tentar captar algo de originário, de inicial, de matricial (a verdade, por exemplo) e revelá-lo inteiro aos outros – eis a mitologia corrente, o desejo mais espalhado, num jogo de insatisfação sem fim.
Por isso se diz de tal ou tal autor que ele é mais ou menos “profundo”; mas, a contrapor a isso, haveria aquela frase célebre do poeta segundo a qual o que há de mais profundo é a pele, fronteira do eu... na verdade, na intenção do saber, que parte da pergunta, está sempre o desejo da resposta. Só que as respostas tornaram-se sedutoras esquivas: fogem e deixam em seu lugar novas perguntas.
Arqueólogo e psicólogo, ou arqueólogo e psicanalista – poder-lhes-ia (como aliás a qualquer um de nós enquanto cidadão interessado nessas formas de interpretar, ou por elas minimamente influenciado) ser atribuída essa missão decifradora, pacificadora, até certo ponto domesticadora.
Dizer o que quer dizer a terra, escondendo-o, dizer o que quer dizer a face, escondendo-o, eis o que tem a ver com o desejo de um segredo e com uma metafísica da sombra. Falar da sua pluralidade radical de sentidos, da fugacidade do meu encontro com ela(e)s, decifrar, contar histórias, fazer sentido (unívoco ou plural, facilmente entendível, ou exigindo descodificação), e provocando finalmente aquiescência, convicção.
Atribuir-lhes uma temporalidade, reconstituir-lhes uma “experiência” passada, uma verdade arcaica, primordial, por forma a explicar como podem ter acabado por se nos apresentar como realidades presentes, tal como parecem “estar aí”... – eis a missão suprema do sábio, ou cientista, ou artista, como sucedâneo do xamã, o comutador, o que re-liga a vida corrente, as aparências, com a vida subjacente, ou transcendente – com o sentido, com o “Grande Outro”, com a ordem simbólica.
É pelo menos na vivência habitual o que acontece, o que se nos pede: dizer o que “aquilo” é, perceber rapidamente o que aquela expressão significa, ver através de, tornar transparente (para guiar a nossa acção; nesse sentido, todos nos travestimos de arqueólogos e de psicólogos ou outros observadores da “psique”), decifrar a anomalia (o que resiste à explicação ou ao meu domínio) através do seu sintoma.
E, apressados, exigentes (pede-se muito, se não tudo, ao que messianicamente se apresenta como potencial portador da solução) os nossos interlocutores querem que nos expliquemos depressa e bem: uma solução clara e precisa, argumentativamente desenvolvida e chegando rapidamente a uma conclusão.
Estamos numa sociedade de flashes, de imagens e não de textos (ou então, se quiserem, também de textos que são quase-imagens) : de slides que entram pelos olhos dentro. Sobre ela já se disse tudo, numa dobragem sem fim; e no entanto há sempre novas abordagens, novas perspectivas, novas metáforas, parecendo que o novo se esgotou como anúncio do mesmo.
O saber já não é uma coisa que está ali: o saber é toda a minha experiência, o latejar do meu corpo. Só que o meu corpo, “sentido de dentro” por mim, tem um ruído subtil, quase imperceptível, de máquina (quando a dor não o vem afligir), apresenta-se-me por vezes como uma artificialidade estranha. As personagens dos “out-doors” parecem ter, ao sorrir-me, “mais vida” que muitas pessoas, mais vida que eu. Na verdade, a obsessão do corpo, nas suas infinitas aparições, como um objecto separado (o outro da alma) é bem moderna e ocidental.
Estamos numa sociedade que voga mergulhada (no mito d) n(a) evidência, da transparência, do acesso, da horizontalidade, da fluidez. “Trazer para a frente” é um dos comandos de um programa qualquer de computador. A frente: o écrã, o rosto, a superfície do terreno – o que terão escondido? O espectador compulsivo que somos passa o tempo a olhar, a monitorizar, a tentar captar pequenos sinais, vive sob o regime da vigilância. É um monitor de video-segurança virado para dentro de si.
É também o que parece advir de tanto a arqueologia como a psicologia ou psicanálise (como em geral as ciências ou formas de saber) derivarem todas da mesma “episteme” moderna (bem nítida no séc. XIX, princípios do séc. XX) que consiste, entre múltiplos aspectos, numa valorização da profundidade “versus” a superfície (Thomas, 2004). Numa obsessão pela visão, tão patente na fenomenologia de um Merleau-Ponty, por exemplo.
Mas não nos enganemos: o objectivo mítico último seria, para muitos, desvelar essa “profundidade” ficcionada numa conclusão óbvia: a “descoberta” da interioridade radical de cada ser, que vai a par da sua progressiva “objectificação” – sou sujeito nos dois sentidos, isto é, sujeito como realidade individual e sujeito como objecto da observação de um Estado implacável – teve tantas ramificações, que, hoje, falar em psicanálise, por exemplo, é entrar num oceano de muitas correntes e derivas, onde (aos olhos do leigo) muitos parecem andar (arriscaria dizer: andam mesmo) perdidos. E ainda pagam (muito bem), testemunho do seu empenhamento: para serem analisados, eventualmente para poderem ser futuros analistas. A linguagem da psicanálise e das ciências “psi” está cheia de “economia”: é o investimento do desejo, é a economia libidinal, é a gestão do tempo da sessão, etc.
A visão é então privilegiada em relação a outros sentidos, e tanto em medicina, como em arqueologia, o importante seria, a partir do “sintoma”, da aparência, do vestígio, ver a causa ou a realidade subjacente, contemplar a totalidade, tornar o opaco transparente, desmontar as peças e voltar a remonta-las, ver como funciona. É atrás disso que anda a inteligência artificial, a robótica, as neurociências, a própria biologia com o mito da programação genética.
Freud, por exemplo, foi um grande amante de arqueologia e coleccionador de objectos, como muitos homens do seu tempo. Mas também foi um dos homens que mais contribuíram para desmistificar essa visão intuitiva, corrente, do conhecimento como algo centrado de si a si mesmo, na consciência do indivíduo. Costuma-se a esse respeito falar das feridas narcísicas que a modernidade trouxe, e que seriam, além desta, a “revolução” de Darwin (o ser humano decorre de um “jogo cego” da “natureza” e não de um “plano de Deus”) e a “revolução” de Marx (o que eu digo, faço, e sinto provém de uma “fonte” – a minha condição social – que eu estou longe de consciencializar ou de controlar, porque a maior parte das vezes é uma “falsa consciência”). Mas muitas outras se poderiam mencionar (segundo o estruturalismo de um Lévi-Strauss os mitos falam entre si, segundo Foucault o sujeito está inscrito numa ordem do discurso que fala por ele-sujeito, etc.).
Todas estas “feridas narcísicas” vieram instalar inquietação na doce paz de um conhecimento centrado e doméstico, todo-poderoso: seja o que for que eu sou, ou faço, isso não é o que julgo ser ou fazer, o que é “evidente” decorre de algo de mais estrutural que está subjacente, de algum modo, às aparências, e que por vezes frontalmente as contraria.
Face ao saber comum, temos a “era da suspeita”; a instalação da pergunta, da distância, como valor crucial, face à resposta ou acção imediata. O ser humano “descola-se” de si próprio, vê-se a si mesmo como um objecto, no sentido de algo exterior que pode analisar, e no sentido da carnalidade do seu corpo físico.
Pois é claro que as coisas não são assim tão simples quanto muitas pessoas (incluindo os “utentes” ou destinatários do trabalho dos arqueólogos e dos multímodos “tratadores da psique”), na sua prática corrente, imaginam, ou exigem. A vulgarização da actividade da psicanálise nos EU, tornada prática terapêutica consumista de tipo “ginásio”, é bem característica disso. Não é essa “psicanálise” terapêutica light, banalizada, que me interessa, nem a arqueologia comercial banalizada que me interessa – a psicanálise levanta problemas básicos da filosofia, que interessam a todos, na medida em que todos deveríamos sentir a obrigação de “ser filósofos”, isto é, de incorporar os conceitos básicos que, na perspectiva de cada um, lhe permitiriam escapar à tirania das evidências, tanto mais tirânica quanto naturalizada, e portanto não problematizada. Este é um dever e um direito fundamental de cidadania: pensar, sair da preguiça, sobretudo quando se pode, quando se tem os meios para o fazer, e para ser útil, a si e aos outros. Há uma ética anti-hedonista que temos que “violentamente” contrapor à ética do “fique bem” desta sociedade. Nesse aspecto subscrevo e aplaudo entusiasticamente muito do que escreve Slavoj Zizek.
Há de qualquer modo, tanto em arqueologia (ou história) como em psicologia (ou psiquiatria, ou psicanálise, apesar das profundas divergênciuas entre estes três últimos “campos”) uma vontade de suturar feridas, inquietações, interrogações identitárias. Quem somos e de onde viemos, qual a razão de estarmos aqui e agora a sentir e a vivenciar assim, como conjugar a nossa individualidade e solidão radical com a necessidade profunda do outro, do que pode conter a explicação, a redenção, até como objecto do meu desejo? Como suportar o abismo entre esse desejo e a sua insatisfação, que permanentemente o alimenta, como querer continuar a precisar de um mito sabendo-o mito, como aliviar esta nostalgia da perda, do desencanto? É ela algo de especificamente ocidental, ou há uma interioridade reflexiva (“self-awareness”) em todo o ser humano, como parece acreditar, por exemplo, H. Moore (bibliog., p. 33)?
A ontologia ocidental é dualista; separa, desde os gregos, matéria e espírito, corpo e alma, biologia e cultura, forma e conteúdo, aparência e realidade (Ingold, 2002). Freud era obviamente dualista também, como escreve Pontalis: “(...) o pensamento freudiano, pensamento dualista por excelência, pensamento do conflito e do par de opostos”, acrescentando porém que “não se deixa encerrar num isto ou aquilo”. O nosso reino é o do entre-dois (...)” (ver bibliog., p. 11).
Aqueles pares de opostos desdobram-se em dezenas de outros – são estruturantes do nosso modo de pensar e de agir. Pertencem ao mundo da ilusão incontestável – daquilo que ainda alguns chamam a ideologia (ou seja, o que é tido e crido como natural, e portanto não se pode pôr sequer em dúvida; nomeadamente para o tal realismo espontâneo, que é o que reina na nossa experiência diária, o que se pensa coincide, ponto por ponto, com a realidade). É a falta de consciência da ordem simbólica em que estamos inscritos.
Tal ocorre mesmo – e às vezes sobretudo – quando se insiste em que são aspectos inextricáveis, que se não podem apartar (nunca ninguém viu um corpo – pelo menos vivo – sem uma alma, ou vice-versa); esse discurso repete afinal, em sinal contrário, e por complementaridades desejadas, oposições efectivas.
A esta dicotomia poucos, pois, escapam, se é que é mesmo possível, utilizando a nossa linguagem, escapar-lhe. Obviamente que muitos autores não vêem qualquer interesse nesse esforço de superar tais dicotomias, esforço que se tem notado mais na linha filosófica fenomenológica (Heidegger, Merleau-Ponty, etc.), cuja motivação principal é restituir, se possível, a experiência humana na sua totalidade vivida, imersa no mundo, e não apenas sobreposta a ele, ou actuando sobre ele. Há em Merleau-Ponty, por exemplo, ao valorizar a actividade do fazer (por exemplo, a arte do pintor) sobre a do feito (o quadro pronto) uma espécie de recuperação de algo primordial, pré-linguístico. Algo que lembra a poesia, o seu radical paradoxo: dixer o indizível, dizer o silêncio que precisamente o dizer perturba.
Em termos muito esquemáticos a perspectiva corrente – a que a fenomenologia se tem procurado contrapor, revalorizando a experiência sensível até ao seu mais ínfimo detalhe – a matéria, o mundo físico, o corpo, seriam realidades mais ou menos inertes (ou animadas, mas por factores mecânicos, repetitivos), sujeitas a leis, do domínio do quantitativo. A cultura seria um manto que viria cobrir com diferenças e especificidades esse universo in-diferente.
A natureza pertenceria ao tempo lento (universo, geologia, etc.) ou à evolução (das espécies); a cultura, o mundo humano, estaria na história, que seria a narração da evolução cultural, quer dizer, do progresso, até à sociedade civilizada contemporânea (leia-se ocidental).
É daqui que deriva a noção de “cultura material”, muito comum ainda hoje no mundo anglo-saxónico (“material culture studies”): os objectos, sendo matéria (inerte) e cultura (gosto, estilo, tradição) sobrepostas, servem para entender a vida corrente e são por vezes mesmo motivo quase exclusivo da atenção dos arqueólogos. Um fetichismo banal?...
Medeiam entre o presente em que sobrevivem, fragmentados, transformados em vestígios (o vivo) e o passado que representam, e que a partir deles se pode extrair (reconstituir) e até fazer reviver (o morto ressuscitado).
Neste sentido, a atitude “científica” tem um efeito securizante, que desemboca na paranóia patrimonial, compensadora do sentimento de perda, e particularmente no museu, o asilo do inútil-não funcional para passar a ser útil-contemplativo (ver por exemplo Guillaume, 2003). O passado pode ser recuperado no seu essencial, numa escatologia que evidentemente herda a ideologia judaico-cristã que nos é matricial. A forma e o conteúdo sobrepor-se-iam. Ao guardar tudo, preparamo-nos para uma espécie de dia do juízo final, em que as almas se juntarão aos corpos, num delírio universal da harmonia. Os objectos sairão das vitrinas e voltarão a encontrar os seus utentes, finalmente felizes para sempre, como no fim dos contos infantis. A psicanálise permitiu-nos perceber como permanecemos infantis ao longo da vida toda e, ao nível da sociedade, como esta se estrutura sobre um conjunto de forças que não são, afinal, muito diversas, desde há milénios (pelo menos na “nossa civilização”).
Durante muito tempo, e até praticamente hoje no senso comum ou nas práticas, certas realidades ocuparam um espaço de limbo, de limiar, entre o natural e o humano: por exemplo, a mulher, a criança, o primitivo (selvagem ou pré-histórico). Foram todos formas de representar o Outro do pensante (ser masculino adulto, activo e educado). A mulher dá à luz, nutre a vida, gere o quotidiano doméstico, tem um comportamento imprevisível, indecifrável ou temível, histérico; a criança é uma miniatura do adulto, sem grande estatuto ontológico; o primitivo ou selvagem faz a ponte entre nós e os animais, estando submetido às leis naturais, as quais procura defrontar com uma tecnologia rudimentar e com formas mítico-mágicas de actuação, em tudo opostas ao racionalismo ocidental que começou a despontar no séc. XVII com Descartes ou Bacon, e veio a consumar-se na revolução francesa e nas suas sequelas, até agora.
A psicanálise – tal aliás como a arqueologia – tem ainda hoje um estatuto um pouco ambíguo, ou diminuto, face à psiquiatria ou mesmo à psicologia (a arqueologia é também “parente pobre” relativamente à história, da qual, na visão de alguns, nunca se devia ter “separado”).
Na verdade, tendo arrancado da medicina, e de todo o movimento de objectificação e de “saneamento” do corpo e alma que vem do século XIX, a psicanálise é uma prática que pode ser subversiva, e se funda numa relação muito particular entre observante (sujeito) e observado (objecto), na medida em que implica que, com o tempo, se dê uma transferência, conceito complexo do qual não estará obviamente isenta uma erótica relacional (con-fusão) entre os dois. De facto, num ambiente ainda hipocritamente puritano (“vícios privados, públicas virtudes”) um dos grandes méritos de Freud foi “erotizar” toda a perspectiva que temos do mundo relacional humano, desde a mais pequena infância. Por assim dizer, nenhum de nós é “inocente” – somos todos seres clivados.
O que há de mais interessante nesta abordagem é pois o seu estatuto ambíguo, vivo, sempre em desenvolvimento, desde a sua criação por Freud. Este, como é sabido, reformulou quase constantemente a sua teoria, e os seus “discípulos” (ou os que nele de algum modo se inspiram, mesmo para o contradizer) constituem um universo muito heterogêneo, conflitual mesmo. Os grupos de psicanalistas, incluindo Lacan e tantos outros, caracterizam-se precisamente pelas suas contínuas dissidências. O facto de cada um deles passar também pela situação de analisado antes de ser analista, e a relação muito especial (oposta à da psicologia tradicional; da psiquiatra é melhor nem falar) que se estabelece entre analisante-analisado mostram bem o carácter, por assim dizer, subversivo deste saber e desta prática, a que já aludi (bem longe do panorama corrente, também atrás aflorado, perfeitamente corriqueiro e doméstico, tipicamente americano, de se frequentar o psicanalista, para a “alma”, como se vai ao ginásio, para o “corpo”). Com a “americanização” da sociedade estes hábitos tornaram-se típicos das classes médias ocidentais, como todos sabemos. É um sinal de distinção de classe.
Ora tal atitude matricial da “boa” psicanálise é, ou era até há bem pouco tempo, absolutamente proibida pela ciência, que se baseia na divisão entre um sujeito neutro e um objecto distanciado, por forma a permitir o conhecimento objectivo, produzindo resultados independentemente do autor (é este carácter despersonalizado que sacraliza a ciência, e que tem como contraponto a personalização romântica do artista como génio, faces positiva e negativa da mesma realidade, própria das sociedades laicas, isto é, não governadas pelo Transcendente. Ou seja, trata-se de uma religião do humano como autor do seu destino, liberto dos projectos ou dos ditames de Deus).
Por outro lado, a psicanálise introduz o desejo (no seu sentido mais geral, mas também sexual, como é bem sabido), factor perturbador de uma certa “ordem”, como elemento estruturante do humano. Em última análise, parte da assunção de que todos temos algo de neurótico ou de psicótico, porque o meu eu não é presentificável a mim próprio, nem eu sei, de facto, quem sou, uma vez que existe (para não irmos mais longe) a instância do inconsciente, que me descentraliza de mim mesmo, que me obriga a “olhar de lado” (quer seja analisado, quer analista). Ninguém é “normal” apesar dos esforços de normalização higienista que, em regimes extremos, deram os resultados conhecidos.
Talvez sem a psicanálise não tivesse sido possível toda a emergência da mulher no “palco da história”, e a progressiva “legalização” de comportamentos que antes as leis se esforçavam por contrariar, como sejam todos os conceitos e práticas que ligam o sexo à procriação, à família, ao casal heterossexual, etc., como a norma social aceitável, até para a própria reprodução da espécie (e portanto inscrita na ordem natural) e da sociedade. Feminismo, psicanálise, antropologia emergem coetaneamente, embora mantenham entre si muitas vezes relações conflituais, ambíguas, ou de rejeição.
Ora, na modernidade, todos os saberes ou práticas “sérios” se procuram apresentar como desinteressados ou reportando-se a valores “elevados”, morais ou éticos, que os transcendem, que são o sustento da respectiva acção. Veja-se o caso do direito, que também se não pode considerar “ciência exacta” (é mais que todos um campo óbvio de jogo de poderes), mas que visa alcançar o supremo bem de administrar a justiça, um direito intrínseco a uma realidade que a modernidade criou, o cidadão. Assim, a introdução do corpo, das suas pulsões e “materialidades” (simbolizadas, claro) no próprio coração das chamadas ciências sociais e humanas, não poderia deixar de causar algum mal-estar, que todavia é, como o interesse pelo passado e pela terra que o “contém”, elemento típico da modernidade, toda feita de paradoxos, de contradições, como disse. A psicanálise não foge às regras desse saber moderno (muito ao contrário, visa sondar as profundezas do ser) mas desorienta as suas formas mais extremas e maquínicas, ultrapassando de longe a mera funcionalidade de “curar”, isto é, de apaziguar, de acomodar o “desviante” à regras em vigor.
Também aliás a antropologia (com a qual, repito, tanto a arqueologia como a psicanálise frequentemente se têm cruzado, desde os precursores) teve um papel algo contraditório (na linha do que direi a seguir), pois sempre oscilou entre as noções de bom e mau selvagem, entre o colonialismo e a troca entre pares supostamente iguais (abertura ao outro para melhor, mais inteligentemente, o invaginar, absorver, e dissolver). Todo o poder perdurável foi sempre feito de tolerâncias para com as diferenças, subsumidas no seu poder maior. O neo-liberalismo contemporâneo e a libertação de costumes são sintoma disso: estamos todos bem controlados para nos poderem dar a liberdade (autonomia individual) como motivação e sonho.
A modernidade – que, como já disse, se caracteriza por instalar uma série de paradoxos de difícil solução, como seja a do incremento paralelo dos indivíduos, quer dizer, do princípio do prazer hedonista, e das regras sociais, ou seja, da necessidade de obedecer a normas cada vez mais estritas e controladas por via tecnológica – implicou uma reformulação global do mundo humano, e ainda hoje está em curso, não só devido ao processo de expansão mundial (globalização) da tecnologia ocidental, mas sobretudo devido às inúmeras remodelações locais que esse processo despoleta (novas “localizações”, etc.). Por isso (como Latour) se afirma que não hegamos a ser “modernos”, ou que a modernidade tardia (“pós-modernidade”) é apenas um momento de um processo de longo alcance.
A arqueologia e a psicanálise de algum modo “nobilitaram”, trazendo à visibilidade, muitas realidades que estavam recalcadas, reprimidas, no saber e na prática (ou, melhor, que eram praticadas mas não tinham sido alvo de um processo de objectificação como saberes; sabemos mais uma vez, desde Foucault pelo menos, o carácter ambíguo destas objectivações). Elas integram-se matricialmente (embora muitos praticantes digam que não) na lógica iluminista de tudo presentificar, de tudo escavar, de tudo exumar.
Ambas visam revelar, trazer à superfície, algo de “invisível” – na terra e no corpo, no ambiente e no ser humano. Algo que eventualmente poderia ser subversivo, isto é, produtor de novidade num sentido diferente da moral mais conservadora e da forma mais oportunista de desvalorização de bens tão importantes como o do meio ecológico e da felicidade dos indivíduos (“qualidade de vida”, como hoje se diz).
A complexidade é enorme, e todo aquele que sai do seu pequeno campo disciplinar (onde aliás às vezes nem está, porque se estivesse a fundo, iria encontrar muitas “saídas”, muitas aberturas em todas as direcções, a partir desse infinitamente circunscrito) lança-se numa aventura sem fim e sem etapas certas. Perde o pequeno caminho que o orientava, e nem sequer voga num espaço pluridimensional, mas ainda controlável por si: lança-se na mais radical das aventuras, orientado-se de quando em quando por ténues sugestões. A intuição é o seu guia.
Confronto-me, entre múltiplos outros aspectos (como arqueólogo e como pessoa) com dois objectos, com duas realidades que (imagino que) estão perante mim (que de certo modo, reflectidamente, me fitam) e desejo perceber: a terra, o rosto. Ambos se me apresentam como “enigmas” (aparências com uma “espessura”, visibilidades que apontam para sombras, invisibilidades) e se tornaram, por qualquer razão, focos privilegiados da minha interrogação e curiosidade. Claro que as palavras utilizadas são convencionais: a terra ou o rosto são, na realidade, mesmo só para mim, muitíssimas coisas, que é impossível fixar numa imagem ou num milhão de imagens. Fazem parte do meio-ambiente em que estou imerso, meio esse percorrido por pequenas percepções ou imagens-nuas, para usar os termos de José Gil.
Posso considerá -los objectos num duplo sentido: realidades que estão perante mim, sujeitas à minha observação (modo muito especial, já, de percepção), a qual, como tais, os institui; e, ao mesmo tempo, apresentam-se (aparentemente, à primeira vista, e de acordo com o senso comum) como aquilo a que se chama normalmente “materialidades”, “fisicalidades”; são “corpos” expostos à vista e, eventualmente, ao tacto (pelo menos). Fazem parte, em suma, da realidade objectual que me rodeia.
Estão “ante” mim, mas este “mim” podia ser colectivo, isto é, o que visa é pensar o problema em abstracto: estão perante nós, se as encararmos com alguma atenção (a fixação do olhar, da atenção, não é nem inocente nem espontânea, nem depende do indivíduo – porque objectiva, segundo certas regras incorporadas, e assim sujeita (subjuga), o observado – torna-o meu/nosso objecto – de acordo com determinados protocolos).
Quero encontrar-lhes um nexo que escape às meras metáforas já gastas pelo uso do dia a dia, às analogias que não acrescentam nada, às ilusórias “relações” induzidas pelo discurso corrente (por exemplo, projectando na terra os meus supostos “estados de alma”, ou entendendo o rosto como expressando supostos “estados de alma” do outro). Quero sair da especulação gratuita para poder partilhar com outros a minha subjectividade.
Recuso, pois, uma pseudo-articulação ou identificação dos temas em termos de recursos retóricos correntes como seria, por exemplo, o de falar da “face da terra” e do que a ela subjaz; usando assim a palavra “face” no seu suplo sentido de superfície e de rosto, apelando para duas realidades que, pelo facto de serem olhadas interrogativamente por mim, me devolvem um olhar e uma interrogação. Trata-de de uma estética de gosto discutível e sobretudo conceptualmente irrelevante. Que o título deste texto, pois, não engane o leitor, eis o que espero.
Por que me interpelam estas realidades, que querem de mim? Espera(m)-se que lhes confira um (ou vários) sentido(s), uma interpretação? À terra, que lhe dê um tempo, um passado, uma narrativa; ao rosto, que lhe confira uma intenção, um carácter, uma emoção, uma alma, uma biografia – em suma, que destape o véu da materialidade, a realidade tal como se me apresenta à primeira vista, para descobrir nela, nesse espaço do visível, um invisível insinuado, que apenas espera o meu trabalho de decifração, de observação, de decapagem, de escavação, para vir à tona? Será assim tão fácil? As relações entre o visível e o invisível são., como se sabe, um antigo tema recorrente da nossa tradição filosófica, que eu evidentemente não tenho competência para abordar.
Ver o “profundo” por detrás (por debaixo) do superficial, tentar captar algo de originário, de inicial, de matricial (a verdade, por exemplo) e revelá-lo inteiro aos outros – eis a mitologia corrente, o desejo mais espalhado, num jogo de insatisfação sem fim.
Por isso se diz de tal ou tal autor que ele é mais ou menos “profundo”; mas, a contrapor a isso, haveria aquela frase célebre do poeta segundo a qual o que há de mais profundo é a pele, fronteira do eu... na verdade, na intenção do saber, que parte da pergunta, está sempre o desejo da resposta. Só que as respostas tornaram-se sedutoras esquivas: fogem e deixam em seu lugar novas perguntas.
Arqueólogo e psicólogo, ou arqueólogo e psicanalista – poder-lhes-ia (como aliás a qualquer um de nós enquanto cidadão interessado nessas formas de interpretar, ou por elas minimamente influenciado) ser atribuída essa missão decifradora, pacificadora, até certo ponto domesticadora.
Dizer o que quer dizer a terra, escondendo-o, dizer o que quer dizer a face, escondendo-o, eis o que tem a ver com o desejo de um segredo e com uma metafísica da sombra. Falar da sua pluralidade radical de sentidos, da fugacidade do meu encontro com ela(e)s, decifrar, contar histórias, fazer sentido (unívoco ou plural, facilmente entendível, ou exigindo descodificação), e provocando finalmente aquiescência, convicção.
Atribuir-lhes uma temporalidade, reconstituir-lhes uma “experiência” passada, uma verdade arcaica, primordial, por forma a explicar como podem ter acabado por se nos apresentar como realidades presentes, tal como parecem “estar aí”... – eis a missão suprema do sábio, ou cientista, ou artista, como sucedâneo do xamã, o comutador, o que re-liga a vida corrente, as aparências, com a vida subjacente, ou transcendente – com o sentido, com o “Grande Outro”, com a ordem simbólica.
É pelo menos na vivência habitual o que acontece, o que se nos pede: dizer o que “aquilo” é, perceber rapidamente o que aquela expressão significa, ver através de, tornar transparente (para guiar a nossa acção; nesse sentido, todos nos travestimos de arqueólogos e de psicólogos ou outros observadores da “psique”), decifrar a anomalia (o que resiste à explicação ou ao meu domínio) através do seu sintoma.
E, apressados, exigentes (pede-se muito, se não tudo, ao que messianicamente se apresenta como potencial portador da solução) os nossos interlocutores querem que nos expliquemos depressa e bem: uma solução clara e precisa, argumentativamente desenvolvida e chegando rapidamente a uma conclusão.
Estamos numa sociedade de flashes, de imagens e não de textos (ou então, se quiserem, também de textos que são quase-imagens) : de slides que entram pelos olhos dentro. Sobre ela já se disse tudo, numa dobragem sem fim; e no entanto há sempre novas abordagens, novas perspectivas, novas metáforas, parecendo que o novo se esgotou como anúncio do mesmo.
O saber já não é uma coisa que está ali: o saber é toda a minha experiência, o latejar do meu corpo. Só que o meu corpo, “sentido de dentro” por mim, tem um ruído subtil, quase imperceptível, de máquina (quando a dor não o vem afligir), apresenta-se-me por vezes como uma artificialidade estranha. As personagens dos “out-doors” parecem ter, ao sorrir-me, “mais vida” que muitas pessoas, mais vida que eu. Na verdade, a obsessão do corpo, nas suas infinitas aparições, como um objecto separado (o outro da alma) é bem moderna e ocidental.
Estamos numa sociedade que voga mergulhada (no mito d) n(a) evidência, da transparência, do acesso, da horizontalidade, da fluidez. “Trazer para a frente” é um dos comandos de um programa qualquer de computador. A frente: o écrã, o rosto, a superfície do terreno – o que terão escondido? O espectador compulsivo que somos passa o tempo a olhar, a monitorizar, a tentar captar pequenos sinais, vive sob o regime da vigilância. É um monitor de video-segurança virado para dentro de si.
É também o que parece advir de tanto a arqueologia como a psicologia ou psicanálise (como em geral as ciências ou formas de saber) derivarem todas da mesma “episteme” moderna (bem nítida no séc. XIX, princípios do séc. XX) que consiste, entre múltiplos aspectos, numa valorização da profundidade “versus” a superfície (Thomas, 2004). Numa obsessão pela visão, tão patente na fenomenologia de um Merleau-Ponty, por exemplo.
Mas não nos enganemos: o objectivo mítico último seria, para muitos, desvelar essa “profundidade” ficcionada numa conclusão óbvia: a “descoberta” da interioridade radical de cada ser, que vai a par da sua progressiva “objectificação” – sou sujeito nos dois sentidos, isto é, sujeito como realidade individual e sujeito como objecto da observação de um Estado implacável – teve tantas ramificações, que, hoje, falar em psicanálise, por exemplo, é entrar num oceano de muitas correntes e derivas, onde (aos olhos do leigo) muitos parecem andar (arriscaria dizer: andam mesmo) perdidos. E ainda pagam (muito bem), testemunho do seu empenhamento: para serem analisados, eventualmente para poderem ser futuros analistas. A linguagem da psicanálise e das ciências “psi” está cheia de “economia”: é o investimento do desejo, é a economia libidinal, é a gestão do tempo da sessão, etc.
A visão é então privilegiada em relação a outros sentidos, e tanto em medicina, como em arqueologia, o importante seria, a partir do “sintoma”, da aparência, do vestígio, ver a causa ou a realidade subjacente, contemplar a totalidade, tornar o opaco transparente, desmontar as peças e voltar a remonta-las, ver como funciona. É atrás disso que anda a inteligência artificial, a robótica, as neurociências, a própria biologia com o mito da programação genética.
Freud, por exemplo, foi um grande amante de arqueologia e coleccionador de objectos, como muitos homens do seu tempo. Mas também foi um dos homens que mais contribuíram para desmistificar essa visão intuitiva, corrente, do conhecimento como algo centrado de si a si mesmo, na consciência do indivíduo. Costuma-se a esse respeito falar das feridas narcísicas que a modernidade trouxe, e que seriam, além desta, a “revolução” de Darwin (o ser humano decorre de um “jogo cego” da “natureza” e não de um “plano de Deus”) e a “revolução” de Marx (o que eu digo, faço, e sinto provém de uma “fonte” – a minha condição social – que eu estou longe de consciencializar ou de controlar, porque a maior parte das vezes é uma “falsa consciência”). Mas muitas outras se poderiam mencionar (segundo o estruturalismo de um Lévi-Strauss os mitos falam entre si, segundo Foucault o sujeito está inscrito numa ordem do discurso que fala por ele-sujeito, etc.).
Todas estas “feridas narcísicas” vieram instalar inquietação na doce paz de um conhecimento centrado e doméstico, todo-poderoso: seja o que for que eu sou, ou faço, isso não é o que julgo ser ou fazer, o que é “evidente” decorre de algo de mais estrutural que está subjacente, de algum modo, às aparências, e que por vezes frontalmente as contraria.
Face ao saber comum, temos a “era da suspeita”; a instalação da pergunta, da distância, como valor crucial, face à resposta ou acção imediata. O ser humano “descola-se” de si próprio, vê-se a si mesmo como um objecto, no sentido de algo exterior que pode analisar, e no sentido da carnalidade do seu corpo físico.
Pois é claro que as coisas não são assim tão simples quanto muitas pessoas (incluindo os “utentes” ou destinatários do trabalho dos arqueólogos e dos multímodos “tratadores da psique”), na sua prática corrente, imaginam, ou exigem. A vulgarização da actividade da psicanálise nos EU, tornada prática terapêutica consumista de tipo “ginásio”, é bem característica disso. Não é essa “psicanálise” terapêutica light, banalizada, que me interessa, nem a arqueologia comercial banalizada que me interessa – a psicanálise levanta problemas básicos da filosofia, que interessam a todos, na medida em que todos deveríamos sentir a obrigação de “ser filósofos”, isto é, de incorporar os conceitos básicos que, na perspectiva de cada um, lhe permitiriam escapar à tirania das evidências, tanto mais tirânica quanto naturalizada, e portanto não problematizada. Este é um dever e um direito fundamental de cidadania: pensar, sair da preguiça, sobretudo quando se pode, quando se tem os meios para o fazer, e para ser útil, a si e aos outros. Há uma ética anti-hedonista que temos que “violentamente” contrapor à ética do “fique bem” desta sociedade. Nesse aspecto subscrevo e aplaudo entusiasticamente muito do que escreve Slavoj Zizek.
Há de qualquer modo, tanto em arqueologia (ou história) como em psicologia (ou psiquiatria, ou psicanálise, apesar das profundas divergênciuas entre estes três últimos “campos”) uma vontade de suturar feridas, inquietações, interrogações identitárias. Quem somos e de onde viemos, qual a razão de estarmos aqui e agora a sentir e a vivenciar assim, como conjugar a nossa individualidade e solidão radical com a necessidade profunda do outro, do que pode conter a explicação, a redenção, até como objecto do meu desejo? Como suportar o abismo entre esse desejo e a sua insatisfação, que permanentemente o alimenta, como querer continuar a precisar de um mito sabendo-o mito, como aliviar esta nostalgia da perda, do desencanto? É ela algo de especificamente ocidental, ou há uma interioridade reflexiva (“self-awareness”) em todo o ser humano, como parece acreditar, por exemplo, H. Moore (bibliog., p. 33)?
A ontologia ocidental é dualista; separa, desde os gregos, matéria e espírito, corpo e alma, biologia e cultura, forma e conteúdo, aparência e realidade (Ingold, 2002). Freud era obviamente dualista também, como escreve Pontalis: “(...) o pensamento freudiano, pensamento dualista por excelência, pensamento do conflito e do par de opostos”, acrescentando porém que “não se deixa encerrar num isto ou aquilo”. O nosso reino é o do entre-dois (...)” (ver bibliog., p. 11).
Aqueles pares de opostos desdobram-se em dezenas de outros – são estruturantes do nosso modo de pensar e de agir. Pertencem ao mundo da ilusão incontestável – daquilo que ainda alguns chamam a ideologia (ou seja, o que é tido e crido como natural, e portanto não se pode pôr sequer em dúvida; nomeadamente para o tal realismo espontâneo, que é o que reina na nossa experiência diária, o que se pensa coincide, ponto por ponto, com a realidade). É a falta de consciência da ordem simbólica em que estamos inscritos.
Tal ocorre mesmo – e às vezes sobretudo – quando se insiste em que são aspectos inextricáveis, que se não podem apartar (nunca ninguém viu um corpo – pelo menos vivo – sem uma alma, ou vice-versa); esse discurso repete afinal, em sinal contrário, e por complementaridades desejadas, oposições efectivas.
A esta dicotomia poucos, pois, escapam, se é que é mesmo possível, utilizando a nossa linguagem, escapar-lhe. Obviamente que muitos autores não vêem qualquer interesse nesse esforço de superar tais dicotomias, esforço que se tem notado mais na linha filosófica fenomenológica (Heidegger, Merleau-Ponty, etc.), cuja motivação principal é restituir, se possível, a experiência humana na sua totalidade vivida, imersa no mundo, e não apenas sobreposta a ele, ou actuando sobre ele. Há em Merleau-Ponty, por exemplo, ao valorizar a actividade do fazer (por exemplo, a arte do pintor) sobre a do feito (o quadro pronto) uma espécie de recuperação de algo primordial, pré-linguístico. Algo que lembra a poesia, o seu radical paradoxo: dixer o indizível, dizer o silêncio que precisamente o dizer perturba.
Em termos muito esquemáticos a perspectiva corrente – a que a fenomenologia se tem procurado contrapor, revalorizando a experiência sensível até ao seu mais ínfimo detalhe – a matéria, o mundo físico, o corpo, seriam realidades mais ou menos inertes (ou animadas, mas por factores mecânicos, repetitivos), sujeitas a leis, do domínio do quantitativo. A cultura seria um manto que viria cobrir com diferenças e especificidades esse universo in-diferente.
A natureza pertenceria ao tempo lento (universo, geologia, etc.) ou à evolução (das espécies); a cultura, o mundo humano, estaria na história, que seria a narração da evolução cultural, quer dizer, do progresso, até à sociedade civilizada contemporânea (leia-se ocidental).
É daqui que deriva a noção de “cultura material”, muito comum ainda hoje no mundo anglo-saxónico (“material culture studies”): os objectos, sendo matéria (inerte) e cultura (gosto, estilo, tradição) sobrepostas, servem para entender a vida corrente e são por vezes mesmo motivo quase exclusivo da atenção dos arqueólogos. Um fetichismo banal?...
Medeiam entre o presente em que sobrevivem, fragmentados, transformados em vestígios (o vivo) e o passado que representam, e que a partir deles se pode extrair (reconstituir) e até fazer reviver (o morto ressuscitado).
Neste sentido, a atitude “científica” tem um efeito securizante, que desemboca na paranóia patrimonial, compensadora do sentimento de perda, e particularmente no museu, o asilo do inútil-não funcional para passar a ser útil-contemplativo (ver por exemplo Guillaume, 2003). O passado pode ser recuperado no seu essencial, numa escatologia que evidentemente herda a ideologia judaico-cristã que nos é matricial. A forma e o conteúdo sobrepor-se-iam. Ao guardar tudo, preparamo-nos para uma espécie de dia do juízo final, em que as almas se juntarão aos corpos, num delírio universal da harmonia. Os objectos sairão das vitrinas e voltarão a encontrar os seus utentes, finalmente felizes para sempre, como no fim dos contos infantis. A psicanálise permitiu-nos perceber como permanecemos infantis ao longo da vida toda e, ao nível da sociedade, como esta se estrutura sobre um conjunto de forças que não são, afinal, muito diversas, desde há milénios (pelo menos na “nossa civilização”).
Durante muito tempo, e até praticamente hoje no senso comum ou nas práticas, certas realidades ocuparam um espaço de limbo, de limiar, entre o natural e o humano: por exemplo, a mulher, a criança, o primitivo (selvagem ou pré-histórico). Foram todos formas de representar o Outro do pensante (ser masculino adulto, activo e educado). A mulher dá à luz, nutre a vida, gere o quotidiano doméstico, tem um comportamento imprevisível, indecifrável ou temível, histérico; a criança é uma miniatura do adulto, sem grande estatuto ontológico; o primitivo ou selvagem faz a ponte entre nós e os animais, estando submetido às leis naturais, as quais procura defrontar com uma tecnologia rudimentar e com formas mítico-mágicas de actuação, em tudo opostas ao racionalismo ocidental que começou a despontar no séc. XVII com Descartes ou Bacon, e veio a consumar-se na revolução francesa e nas suas sequelas, até agora.
A psicanálise – tal aliás como a arqueologia – tem ainda hoje um estatuto um pouco ambíguo, ou diminuto, face à psiquiatria ou mesmo à psicologia (a arqueologia é também “parente pobre” relativamente à história, da qual, na visão de alguns, nunca se devia ter “separado”).
Na verdade, tendo arrancado da medicina, e de todo o movimento de objectificação e de “saneamento” do corpo e alma que vem do século XIX, a psicanálise é uma prática que pode ser subversiva, e se funda numa relação muito particular entre observante (sujeito) e observado (objecto), na medida em que implica que, com o tempo, se dê uma transferência, conceito complexo do qual não estará obviamente isenta uma erótica relacional (con-fusão) entre os dois. De facto, num ambiente ainda hipocritamente puritano (“vícios privados, públicas virtudes”) um dos grandes méritos de Freud foi “erotizar” toda a perspectiva que temos do mundo relacional humano, desde a mais pequena infância. Por assim dizer, nenhum de nós é “inocente” – somos todos seres clivados.
O que há de mais interessante nesta abordagem é pois o seu estatuto ambíguo, vivo, sempre em desenvolvimento, desde a sua criação por Freud. Este, como é sabido, reformulou quase constantemente a sua teoria, e os seus “discípulos” (ou os que nele de algum modo se inspiram, mesmo para o contradizer) constituem um universo muito heterogêneo, conflitual mesmo. Os grupos de psicanalistas, incluindo Lacan e tantos outros, caracterizam-se precisamente pelas suas contínuas dissidências. O facto de cada um deles passar também pela situação de analisado antes de ser analista, e a relação muito especial (oposta à da psicologia tradicional; da psiquiatra é melhor nem falar) que se estabelece entre analisante-analisado mostram bem o carácter, por assim dizer, subversivo deste saber e desta prática, a que já aludi (bem longe do panorama corrente, também atrás aflorado, perfeitamente corriqueiro e doméstico, tipicamente americano, de se frequentar o psicanalista, para a “alma”, como se vai ao ginásio, para o “corpo”). Com a “americanização” da sociedade estes hábitos tornaram-se típicos das classes médias ocidentais, como todos sabemos. É um sinal de distinção de classe.
Ora tal atitude matricial da “boa” psicanálise é, ou era até há bem pouco tempo, absolutamente proibida pela ciência, que se baseia na divisão entre um sujeito neutro e um objecto distanciado, por forma a permitir o conhecimento objectivo, produzindo resultados independentemente do autor (é este carácter despersonalizado que sacraliza a ciência, e que tem como contraponto a personalização romântica do artista como génio, faces positiva e negativa da mesma realidade, própria das sociedades laicas, isto é, não governadas pelo Transcendente. Ou seja, trata-se de uma religião do humano como autor do seu destino, liberto dos projectos ou dos ditames de Deus).
Por outro lado, a psicanálise introduz o desejo (no seu sentido mais geral, mas também sexual, como é bem sabido), factor perturbador de uma certa “ordem”, como elemento estruturante do humano. Em última análise, parte da assunção de que todos temos algo de neurótico ou de psicótico, porque o meu eu não é presentificável a mim próprio, nem eu sei, de facto, quem sou, uma vez que existe (para não irmos mais longe) a instância do inconsciente, que me descentraliza de mim mesmo, que me obriga a “olhar de lado” (quer seja analisado, quer analista). Ninguém é “normal” apesar dos esforços de normalização higienista que, em regimes extremos, deram os resultados conhecidos.
Talvez sem a psicanálise não tivesse sido possível toda a emergência da mulher no “palco da história”, e a progressiva “legalização” de comportamentos que antes as leis se esforçavam por contrariar, como sejam todos os conceitos e práticas que ligam o sexo à procriação, à família, ao casal heterossexual, etc., como a norma social aceitável, até para a própria reprodução da espécie (e portanto inscrita na ordem natural) e da sociedade. Feminismo, psicanálise, antropologia emergem coetaneamente, embora mantenham entre si muitas vezes relações conflituais, ambíguas, ou de rejeição.
Ora, na modernidade, todos os saberes ou práticas “sérios” se procuram apresentar como desinteressados ou reportando-se a valores “elevados”, morais ou éticos, que os transcendem, que são o sustento da respectiva acção. Veja-se o caso do direito, que também se não pode considerar “ciência exacta” (é mais que todos um campo óbvio de jogo de poderes), mas que visa alcançar o supremo bem de administrar a justiça, um direito intrínseco a uma realidade que a modernidade criou, o cidadão. Assim, a introdução do corpo, das suas pulsões e “materialidades” (simbolizadas, claro) no próprio coração das chamadas ciências sociais e humanas, não poderia deixar de causar algum mal-estar, que todavia é, como o interesse pelo passado e pela terra que o “contém”, elemento típico da modernidade, toda feita de paradoxos, de contradições, como disse. A psicanálise não foge às regras desse saber moderno (muito ao contrário, visa sondar as profundezas do ser) mas desorienta as suas formas mais extremas e maquínicas, ultrapassando de longe a mera funcionalidade de “curar”, isto é, de apaziguar, de acomodar o “desviante” à regras em vigor.
Também aliás a antropologia (com a qual, repito, tanto a arqueologia como a psicanálise frequentemente se têm cruzado, desde os precursores) teve um papel algo contraditório (na linha do que direi a seguir), pois sempre oscilou entre as noções de bom e mau selvagem, entre o colonialismo e a troca entre pares supostamente iguais (abertura ao outro para melhor, mais inteligentemente, o invaginar, absorver, e dissolver). Todo o poder perdurável foi sempre feito de tolerâncias para com as diferenças, subsumidas no seu poder maior. O neo-liberalismo contemporâneo e a libertação de costumes são sintoma disso: estamos todos bem controlados para nos poderem dar a liberdade (autonomia individual) como motivação e sonho.
A modernidade – que, como já disse, se caracteriza por instalar uma série de paradoxos de difícil solução, como seja a do incremento paralelo dos indivíduos, quer dizer, do princípio do prazer hedonista, e das regras sociais, ou seja, da necessidade de obedecer a normas cada vez mais estritas e controladas por via tecnológica – implicou uma reformulação global do mundo humano, e ainda hoje está em curso, não só devido ao processo de expansão mundial (globalização) da tecnologia ocidental, mas sobretudo devido às inúmeras remodelações locais que esse processo despoleta (novas “localizações”, etc.). Por isso (como Latour) se afirma que não hegamos a ser “modernos”, ou que a modernidade tardia (“pós-modernidade”) é apenas um momento de um processo de longo alcance.
A arqueologia e a psicanálise de algum modo “nobilitaram”, trazendo à visibilidade, muitas realidades que estavam recalcadas, reprimidas, no saber e na prática (ou, melhor, que eram praticadas mas não tinham sido alvo de um processo de objectificação como saberes; sabemos mais uma vez, desde Foucault pelo menos, o carácter ambíguo destas objectivações). Elas integram-se matricialmente (embora muitos praticantes digam que não) na lógica iluminista de tudo presentificar, de tudo escavar, de tudo exumar.
Ambas visam revelar, trazer à superfície, algo de “invisível” – na terra e no corpo, no ambiente e no ser humano. Algo que eventualmente poderia ser subversivo, isto é, produtor de novidade num sentido diferente da moral mais conservadora e da forma mais oportunista de desvalorização de bens tão importantes como o do meio ecológico e da felicidade dos indivíduos (“qualidade de vida”, como hoje se diz).
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* Não sendo versado em psicanálise, muito agradeço aos colegas os reparos ou criticas que entendam fazer-me.
Referências
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-Benjamin, Walter (2004), Imagens de Pensamento, Lisboa, Assírio & Alvim.
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- Guillaume, M. (2003), A Política do Património, Porto, Campo das Letras.
- Ingold, Tim (2000), The Perception of the Environment, Londres, Routledge.
- Moore, Henrietta (1994), A Passion for Difference, Cambridge, Polity Press.
- Pontalis, J.-B. (1999), Entre o Sonho e a Dor, Lisboa, Fenda ed.
- Porge, Erik (2006), Jacques Lacan, um Psicanalista. Percurso de um Ensino, Brasília, Editora Universidade de Brasília.
- Thomas, Julian (2004), Archaeology and Modernity, Londres, Routledge.
- VV.AA. (2007), Qu’est-ce qu’ un Corps?, Paris, Musée du Quay Branly/Flammarion.
- Zizek, Slavoj (2003) (coord.), Ideología. Un Mapa de la Cuestión, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica.
- Zizek, Slavoj (2006), Elogio da Intolerância, Lisboa, Relógio d’ Água.
- Idem (2006), Bem-vindo ao Deserto do Real, Lisboa, Relógio d’ Água
- Idem (2006), A Subjectividade por Vir - Ensaios Críticos sobre a Voz Obscena, Lisboa, Relógio d’ Água.
- Idem (2006), As Metástases do Gozo - Seis Ensaios sobre a Mulher e a Causalidade, Lisboa, Relógio d’ Água.
- Idem (2006), A Marioneta e o Anão - O Cristianismo entre Perversão e Subversão, Lisboa, Relógio d’ Água.
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