sábado, 8 de agosto de 2009

Escavações em Foz Côa (Castanheiro do Vento, Horta do Douro; base logística da maior parte da equipa: Freixo de Numão)


O ponto mais elevado da colina de Castanheiro do Vento. Aqui, o arado poupou uma estrutura de base pétrea ainda relativamente bem preservada, mas complexa na sua organização interna e na sua articulação com as estruturas em redor. CV testemunha um autêntico "horror ao vazio", sendo todo o terreno um autêntico "bordado de pedra". Este "bordado", que podia ter uma espécie de organização por módulos, desenhava no solo, ao nível da planta, a estrutura a três dimensões que se ia erguer. Essa implementação dos embasamentos era feita sobre um manto de argila húmida, como ligante. Agora imagine-se a grandiosidade do trabalho, pois que a área conservada no sítio é só uma pequena parte do monumento original, que até grandes menires incluía (há dois tombados na encosta leste, perto do topo).



Enquanto esta equipa operava no terreno, havia outra no museu a trabalhar materiais recolhidos.







Convívio na ACDR, em Freixo, ao almoço.


Paisagem a partir do quarto da residencial Quinita, na Teja, onde este ano fiquei.




Um grupo de trabalho, constituído sobretudo por estudantes canadianos, coordenados por Chris Watts.



Entre duas linhas paralelas de um embasamento de estrutura circular, toda uma "fabricação" do espaço com pequenas lajes, embutidas na argila fresca no momento da construção (o que pressupunha quantidades de água enormes), de modo regular e que, no entanto, não ficariam à vista. Não era o que se via que importava, mas a ordem global criada desde o início da fabricação do sítio, através do próprio afeiçoamento do seu substrato xistoso. Cada coisa que se encontra em CV não está ali por acaso, ou como "resto", mas como depósito, como um elemento de uma construção monumental, significante, intencional, a todas as escalas. Assim, os elementos arqueológicos devem ser em princípio encarados como escolhas e não como simples restos ocasionais. Poderia dar milhentos exemplos, desde os fragmentos de cerâmica partidos (como se fossem talhados) para serem insertos em determinados locais, ou as centenas de plaquetas de xisto trabalhadas, talhadas e ou polidas, para também serem insertas em certos pontos da construção, os seixos de rio de diferentes cores e formas, as "estelas" (grandes placas de forma regular e de cor especial), etc, etc.
É esta nova forma de encarar este tipo de sítios que é fundamental perceber e incorporar, sem a qual, julgo, a escavação se pode tornar numa autêntica depredação, menosprezando imensos detalhes significativos porque querendo colar tudo o que se encontra a interpretações simplistas, baseadas em teorias muito rudimentares e nunca questionadas, tidas como evidências, de forma ingénua.
Uma escavação é um trabalho intelectual e manual em profunda união, e até nisso ela é muito importante para superar dicotomias da nossa tradição metafísica e teológica ocidental. Toda uma postura CRÍTICA se exige, permanentemente atenta contra a rotina ou o já pretensamente compreendido. É também importante o trabalho de equipa, incorporando diferentes sensibilidades e capacidades, e incluindo a tensão inerente a diferentes personalidades em confronto. Longe de ser um handicap, ou um "deixa andar" pós-moderno, isso cria energias positivas, porque as decisões são alvo de disputa e negociação, obrigando a objectivar as intuições de cada um dos dirigentes.




Ao longe, alto da Senhora do Viso. O Castanheiro do Vento tem apenas uma monumentalidade "a duas dimensões"... poucas são as estruturas com alguma altura (embora por vezes possamos atingir algo como um metro ou mais). A metodologia escolhida desde o início adaptou-se a essa circunstância e ao facto de estarmos perante uma realidade que só em área, num grande espaço, faz sentido. Por isso a nossa preocupação é extirpar os níveis superficiais de terra humosa e cheia de raizes, profundamente afectados pelo arado, erosão, etc., e atingir a primeira "camada" onde as estruturas arqueológicas (embasamentos, na maior parte) estão minimamente preservadas. Até aqui, de facto, a "estratigrafia" arqueológica propriamente dita não existe, mas sim níveis pedológicos, não fazendo sentido confundir coisas tão diferentes.
Temos procurado mais decapar em área, segundo este método, do que propriamente aprofundar muito, entrando na complexa estratigrafia arqueológica do sítio que não se pode compreender senão, também ela, em área. Isso implicaria uma equipa e meios muito maiores. De qualquer modo, já se fez uma ou outra "incisão" no "corpo" do sítio, ao nível de bastiões ou de estruturas circulares.
Este morro de xisto foi intensamente aplanado no topo pelos "arquitectos" calcolíticos, que usaram o afloramento por eles moldado como qualquer outro elemento do sítio ou para ele trazido. O que seria um espaço eriçado de afloramentos inclinados transformou-se numa arena plana sobre a qual assentam embasamentos de construções em terra.
Não estamos perante um "povoado". Sítios usados primordialmente para "habitação" não faltariam nas redondezas, em cotas mais baixas. Estamos perante uma colina monumentalizada que poderia servir de local de reunião, de congregação de diferentes grupos, famílias, linhagens, etc, mas esse "préstimo" (para cairmos na linguagem funcionalista actual) era apenas um entre muitos, pois o principal objectivo destes sítios seria, provavelmente, o de unir as pessoas através do próprio acto construtivo e de manutenção/renovação dos espaços. Quer dizer, valeria como uma referência identitária espacial, de grande visibilidade a partir de alguns pontos do território, e na qual se sintetizavam, por assim dizer, elementos heterogéneos, senão mesmo "caóticos", vindos de várias proveniências, numa ordem expressa em três dimensões, num cosmos. É de supor que tal cosmos não estaria estabilizado numa narrativa única, própria de uma sociedade estatal (e mesmo nestas, vemos o proliferar das diferenças e a luta constante do poder central pela uniformização de narrativas desconexas) mas sujeito a uma negociação permanente, a que se adaptava bem a plasticidade das arquitecturas de terra.
Assim, os objectos que encontramos não estão em posição primária, nem são desperdício. São elementos, a diversas escalas (do caco cerâmico até à colina inteira), da construção desse cosmos, dessa ordem. Aquilo a que chamamos arquitectura tinha pois, nestes sítios, um papel crucial, porque moldava, num espaço a três dimensões, formas possíveis de dar sentido ao mundo, de o tornar habitável dentro de uma estrutura simbólica que caracteriza o humano. Por isso estes sítios são também uma espécie de "escrita", desenham no espaço "real" uma cartografia microcósmica que tentamos entender através da distribuição espacial e do relacionamento das estrutruras e das outras formas de fabricação do espaço. Assim, a nossa opção vem na linha de A. Leroi-Gourhan e de outros autores que vincaram a importância da escavação horizontal sobre a vertical, em determinado tipo de sítios. Isso não significa - antes ao contrário - que não estejamos atentos às temporalidades, mas estas só se poderão detectar se, primeiro que tudo, se valorizar a decapagem em área e se se perceber como se distribuem no espaço as várias estruturas e suas eventuais remodelações, dentro daquilo que podemos ainda observar.
A metodologia de Castanheiro do Vento continua e prolonga a de Castelo Velho e afirma uma nova maneira de fazer arqueologia do Calcolítico em Portugal, fora dos estereótipos correntes. Porém, não se afirma como sendo a única certa, ou a melhor: há que ter prudência e sentido das nossas infinitas restrições e deficiências.
Portanto está ainda em experimentação e não esquece que estamos a abordar sítios excepcionais, isto é, sítios cerimoniais colectivos, e não locais de povoamento corrente ou outros, e muito menos a complexa teia de relações e de circuitos que os uniriam territorialmente. Temos consciência do carácter muito fragmentário e limitado do nosso estudo. Mas já dá para entender que "o que iria na mente destes indivíduos", a sua estrutura mental nada tinha a ver com a nossa. E essa intuição é de hoje, sempre e definitivamente nossa, como em qualquer outra ciência. Uma certa objectividade (porque obedece a regras de objectificação de uma determinada realidade) sempre em relação com uma certa subjectividade (porque tais regras são consideradas, são tidas - regime da crença - como as mais acertadas para a objectificação referida).
Assim sendo, trata-se agora cada vez mais de comprovar e documentar no maior detalhe possível e com o mais rigor exigível o acerto da nossa opção, não distinguindo dados de teorias, o que é um fetichismo redutor, mas mostrando como um olhar é sempre posicionado, sem que isso o impeça de estabelecer condições de partilha no acesso à objectificação.







Fotos da segunda semana de trabalhos (6 a 10 de Julho)

5 comentários:

Anónimo disse...

Este ano faz vinte anos que comecei a escavar em Castelo Velho e este ano também entrei para a equipa coordenadora de Castanheiro do Vento .Escavei aqui durante o mês de Julho e gostava de expôr algumas reflexões resultantes da minha experiência em campo.Vou pensar.

Antes...apenas gostava de dizer ao Vítor que afirmar que estes sítios podiam servir para "unir as pessoas através do próprio acto construtivo e de manutenção" ...para além de emergir da nossa concepão moderna ocidental na sua vertente antropológica ( a antropologia ocidental ajuda-nos a construir modelos e narrativas que auto-confirmam as nossas expectativas enquanto modernos ocidentais)...corre o risco de não explicar nada: porque ou é geral...e todas as "construções" em todos os tempos "atam" socialmente as pessoas envolvidas...ou é particular...relativamente a um mundo imerso em outra racionalidade....e "unir", "acto construtivo e de manutenção" são expressões que usamos como expediente para tentar definir acções e intencionalidades que, na singularidade dos sítios que escavamos, são, de facto, indecidíveis. Estamos a projectar novamente na Pré-história um paradigma identitário moderno. Não saímos do mesmo. Falo por mim. Não é por aqui que se reformula o questionário.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Parece haver subjacente à tua crítica, como sempre útil, um fantasma, o fantasma de reconstituirmos o "passado realmente acontecido", o fantasma da verdade insofismável. Essa, é o nada.Claro que o passado é sempre uma construção do presente com conceitos do presente.Não somos Deus, não olhamos fora da história, da nossa contingencialidade. Vamos é descartando narrativas e conceitos que, por serem obviamente mais centradas no que fomos, já não nos servem, hoje. A verdade tem uma história...há que dar aqui um salto epistemológico, crítico, que a maior parte dos arqueólogos, mesmo os mais inteligentes, ainda não deu. Eu n~çao digo que dei, como se fosse um iluminado: mas tento saltar o abismop do lugar-comum. Ora, descrever o passado pelas palavras do passado é uma contradição nos termos, como o conceito de cultura material, por exemplo.

Anónimo disse...

É por já não ter esse fantasma, o do "passado acontecido", que eu me questiono sobre a utilidade de buscar padrões de comportamento identitário .Padrões que terão ocorrido lá.... no tal "passado acontecido". Ainda buscas o passado acontecido, mas aparentemente não te dás conta. Existe uma contradição fundamental na tua argumentação. Enquanto este ano escavava em Castanheiro do Vento pensei muito sobre as palavras no discurso arqueológico corrente. E sobre a ideia de verdade. Enquanto decapava o sedimento amarelo duro....no interior da "estrutura" x...ou do "arco" y.....

Vitor Oliveira Jorge disse...

Não busco senão construir uma metodologia e um discurso abertos ao diálogo e à discussão... não confundir o aspecto telegráfico de um blogue com um artigo científico. O passado é o objecto do arqueólogo, se quisermos. Ora todo o objecto científico é uma criação da ciência, um regime de verdade contingente e não de verdade teológica...O que há que desmistificazr é a teologia da ciência, a sua dogmatização como religião. Na verdade a ciência é um modo de operacionalizar o mundo, que tem a sua história e todas as nossas ideias e interpretação são apenas propostas plausíveis em função de uma certa realidade conhecida e observada. Já sabemos isso tão bem... por que vou, por exemplo, aos TAGs todos os anos, e a outras reuniões que até não têm a ver directamente com a arqueologia? Para apurar esse sentido crítico... aqui, no blogue, só "mando bocas"... é o meu recreio, e creio que é um exercício saudável, porque é também um serviço público que presto. Se cada pessoa se esforçasse como eu - passe o auto-elogio - talvez o ambiente (mental e de relacionamento pessoal) fosse outro... gosto de curtir como os outros, mas uma das coisas que curto à brava é ler, pensar, escrever e tentar ver novas vias para avançarmos todos, partilhando-as...

Anónimo disse...

Quanto ao teu conceito de ciência...que eu partilho....não é nada pacífico entre os arqueólogos em geral. É só ler a forte discussâo na COMPLUTUM nº 20 entre auto-designados "processuais" e "pós-processuais"... uma bela peça de troca de gallardetes. Útil ler! Para ter uma ideia do que pensam alguns dos arqueólogos espanhóis contemporâneos sobre ciência, verdade, objectividade, arqueologia, passado!