terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Tenho dito aos meus alunos...

Comecei a ensinar na Universidade no ano lectivo de 1972/73, e na do Porto no ano lectivo "quente" de 1974/75.
Sempre digo aos meus alunos, reconvertendo a célebre frase de Abel Salazar: "Quem só de arqueologia sabe, nem de arqueologia sabe." Ou seja, a tão propalada interdisciplinaridade é fundamental. Só que se trata em geral de uma retórica que depois não se pratica, ou se procura praticar apenas como uma mais-valia individual, sem partilha, nesta corrida de cada um ao sucesso. Não é de esperar que instituições venerandas, com "reformas" mais ou menos apregoadas, a passem a praticar de um momento para o outro. Os próprios alunos só pedem muitas vezes aos docentes uma "matéria" para papaguear no exame, em muitos casos "absorvida" à pressa, ou seja, não absorvida. Mas alguma razão existe para este desfasamento entre uma "cultura dos jovens" e uma "cultura culta" que é suposto ser transmitida na Universidade... é aí que devia incidir a nossa reflexão e a mudança dos nossos (professores e alunos) hábitos. Não podemos continuar, nós próprios docentes, a papaguear matérias que aprendemos (com muito custo, é certo), segundo quadros de pensar e agir que já não são os de hoje, num sentido pouco activo e pouco participado pelos estudantes. Tem de haver uma certa intolerância aqui. E os estudantes não podem ir às aulas (quando vão) com a disposição de assistirem a um filme, ou a um monólogo do professor. Os estudantes são - ou devem ser - co-autores da aula, pela sua intervenção na mesma... depois, como muitos o não são, ou o não praticam, admiram-se de "chumbos", quando, se fôssemos a ser rigorosos, estes seriam em muito maior número.
O professor universitário não é um debitador de matérias: ele dá tópicos, propõe problemas, expõe conhecimentos e sugere pistas para a própria formação do aluno, que, para ser um valor incorporado, tem de ser uma auto-formação. Em última análise, somos todos auto-didactas, que procuram alguns pontos de referência. Em absoluto, não há "mestres". Postos perante problemas, temos de saber como os afrontar e como os resolver na vida prática, que inclui também a redacção de artigos e de teses. Temos de amadurecer muito também aqui, não ficando à espera de "orientações" a todo o passo, assumindo riscos como qualquer adulto. Há nitidamente na sociedade e nos jovens actuais os efeitos de um processo de infantilização (não falo dos muitos excluídos do sistema...), facilitado pela sociedade neo-liberal hedonista e de consumo. Não de trata de demonizar o consumo e de propor um espartanismo ridículo que ninguém aceita. Trata-se sim - e isso é um processo difícil em cada ser humano - de adquirir um equilíbrio, uma autonomia, um "savoir-faire", um "know how" que nos libertem da angústia, da ansiedade e da depressão. Trata-se de aprender a fazer algo que nos dê mesmo gozo fazer, e que ao mesmo tempo seja útil aos outros. Não há qualquer dicotomia, idealmente, entre a realização individual e a utilidade colectiva: pelo contrário, deveriam antes tentar convergir... eu só ganho com as aquisições dos outros, desde que estes tenham a generosidade de, pelo menos em parte, as transmitir. Na base, está uma ética de partilha, hoje ameaçada pelo excesso de competitividade negativa (não da positiva, que corresponde à vontade de afirmação de qualquer ser humano). Sem essa ética, que também pressupõe modelos de sociedade diferentes que ninguém pode impor ou fazer emergir como se tivesse uma varinha mágica, não se vai a lado nenhum. Ao menos aqueles que já dispõem de alguns meios económicos deveriam dar o exemplo. A mudança começa com cada um que tenha meios para mudar alguma coisa. Este blog, por exemplo, é um pequeníssimo instrumento (entre milhões) que eu procuro utilizar para, ao mesmo tempo, me realizar na minha necessidade de transmissão, de exposição (por que não?...) e de (espero) ter algum interesse para os que se dão ao trabalho de o "visitar".

É preciso aprender um ofício, um conjunto de regras, de autores, incorporar uma experiência, adquirir uma identidade, uma certa "disciplina", senão fica-se toda a vida um superficial e um incapaz "topa a tudo". Certo. Há que evitar a todo o custo esse diletantismo, às vezes tão favorecido nas chamadas "Humanidades"...
Mas há que - ao mesmo tempo, não é depois, quando já se está totalmente "formatado" - se abrir ao mundo, não fazendo do saber um oposto da vida e do prazer de viver, mas pelo contrário transformando-o, confundindo-o com a própria vida. A necessidade de saber, de ver claro, de ter uma opinião que seja digna de esperar a atenção dos outros não serão formas de prazer e de poder fundamentais?... Esse prazer implica a aquisição de posturas, inclusivamente de leitura e de certa reclusão, hoje um bocado difíceis. Mas, meus amigos, é uma banalidade dizer isto: se não se aprender a ler, a estudar, e a estudar com prazer, não há internet nem "informação" que nos valha. Os instrumentos tecnológicos são indispensáveis, sob condição de serem instrumentos de um objectivo muito mais amplo, eficaz, e, a prazo, compensador.

2 comentários:

Anónimo disse...

"Os próprios alunos só pedem muitas vezes aos docentes uma "matéria" para papaguear no exame"
Isto realmente é uma grande verdade.. mas feliz ou infelizmente tenho uma grande dificuldade em "decorar" textos, em fabricar respostas para depois as "colar" no exame como se fosse um copy/past. Por este motivo não passei num exame e no recurso acabei por desistir... não consigo decorar matérias. Mas entendo que com um pouco mais de estudo conseguía. Quanto ás intervenções nas aulas a minha opinião é de que os alunos não estão disciplinados para isso, porque somos "levados ao colo" até à universidade e não é fácil perder o hábito. Pessoalmente não costumo fazê-lo talvez por ser uma pessoa introvertida e sentir alguma dificuldade em falar em público, o sentir-me observada, mesmo que por breves instantes, é algo que me incomoda.

Vitor Oliveira Jorge disse...

De acordo consigo.
Os professores que obrigam os alunos a decorar matérias por decorar - não a incorporá-las, mas a fixá-las artificialmente - não são professores; exercem esse cargo indevidamente.
É muito importante, como uma competência a adquirir, a desinibição, que permita a uma pessoa exercer o mais inteiramente possível o seu papel interventivo e a ir adquirindo a sua autonomia.Mesmo com sofrimento, esse esforço é capital para a aquisição de uma "posição" adulta... desculpe o tom professoral...