quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

coral


não sei como pedir-te a unidade,
um eixo que me oriente,
a ti que te desdobras
e expandes rostos
para todo o quarto.

existirá ainda algo
que eu possa tratar por tu
fora deste texto encapsulado?
estarei a ser vítima
dos ardis que devolvem
a mesma pergunta?

onde encontrarei partes de ti
que possa recompor com tesoura e cola,
num entretém de bricollage?

nos cortinados,
nos restos por detrás da cabeceira?
haverá mundos que se abrem
para além das janelas disfarçadas?

pego em coisas, para me agarrar
a algo de palpável:
a viscosidade líquida de nervos,
os tendões que sobem, as sinapses coloridas
coladas à ponta dos dedos,
excrescências húmidas, escorregadias,
que tento afastar;

vejo narinas a pairar no ar, e delas
saem asas de borboletas
latejando;
há botões de flores caindo
dos papéis de parede do quarto
contíguo;

há dias acumulados
na planta dos pés,
nos atacadores das sapatilhas.

e se ao abrir um gavetão pesado
achar esboços antigos do corpo humano,
músculos, costelas, contorcendo-se
contra o forro de papel amarelecido?

dedos que se esticam para encontrarem
as pernas, a sua tensão elástica,
rasgada ao centro pelo cordão do sentido!

deito-me no tecto, tentando agarrar-me
a um espelho que havia na infância.
há uma série de pessoas mortas
lá deitadas, a dormir.

nuvens deslizam para um fundo de quadro,
como se estivessem ainda presas à lógica do tempo,
procurando
um ponto de fuga que se tenha esquecido.

debaixo da cama há um aeroporto
onde alinham filas e filas de pessoas
que vão partir para os terminais do coral,
carregando de antemão
as lembranças que hão-de trazer das praias.

há armações inteiras de cabelos
com uma personalidade muito própria
quando deslizam de um lado para outro,
numa dança de cabides,
numa voluptuosidade antiga.

aqui existem candeeiros
que se mantêm acesos há milénios.

será que fora do texto decorrem ainda dias e noites
na sua sucessão natural,
pessoas caminhando para os seus fins?

é liso, liso este mundo
onde a tua expressão ficou prometida
no reflexo que já a susteve,
na casa de banho azulejada.

as paredes parecem de um barro mole,
como se, pressionadas, abrissem ocos,
e mesmo desvãos que levassem
a fundos de escada em caracol.

mas,
não serão também uma ilusão literária,
uma cena de um filme que escrevi
e que tenha acabado por me absorver
para lá da película?

as sombras brincam; fazem jogos no chão;
tecem e destecem os tapetes de noite,
as esperas da insónia, quando de dentro
dos armários saem as avós antigas.

quem me transportou até aqui?!

dá-me uma tesoura e muitas folhas de papel.

se tu ainda existes, se ainda és real,
por forma a haver um tu do outro lado
que escute o meu apelo,

comunica por favor esta mensagem
à terceira pessoa do plural:

quero estar sozinho,
sentado no meio da tontura,
entretido a consertar o mundo;

farto de aturar os verbos
em todos os seus tempos e declinações,

agora quero só assistir, no espelho,
ao lento e imperceptível
crescimento do coral.



copyright voj 2007
Foto de Ian Britton. Fonte da foto: http://www.freefoto.com/
preview.jsp?id=33-04-22&k=Water+Texture

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