domingo, 18 de outubro de 2009

sobre uns canaviais que avisto daqui






agora que as glórias do último verão
tendem a passar para a efabulação da memória...
as terras de foz côa onde julho decorreu
no júbilo dos trabalhos arqueológicos, com amigos...
agosto numa tavira vivida a partir do seu núcleo,
as refeições no claustro renascentista,
as descidas depois para o centro vibrante de gente...
e o fim de agosto, começo de setembro, com a aventura jordana
e as suas paisagens fabulosas, que vão parecendo irreais...

agora que os dias de sol permanecem, mas no seu âmago
há já um frio, um prenúncio de outono, dessa melancolia
de folhas que amarelecem e caem, ou avermelham numa espécie de agonia...
agora que é preciso viver dia a dia, na sua rotina, e nem uma pequena fuga
para outro país por breves dias é possível...

e os olhos se voltam de novo para os livros, que de facto
nunca deixaram, mas os abarcam mais dedicadamente
enquanto do computador vêm as imagens dolorosas do verão que passou,


reconforto-me com os meus objectos envolventes,
com esta espécie de cabina de livros e computadores e memórias
que orquestro todos os dias solitariamente,
acreditando com as minhas teclas acrescentar alguma coisa ao mundo...


e vejo pela janela não o que passa, mas o que permanece,
e nunca é igual a si próprio, antes vai mudando na forma e cor
consoante a hora, a estação do ano, a disposição de espírito...

e torna-se-me nítido, familiar, referencial como um monumento,
um renque de canas, um canavial que avisto daqui,
entre pinheiros e choupos, e outras árvores e plantas cujo nome não sei.

e penso como ele cresceu provavelmente sem eu me aperceber,
nos últimos anos ou até meses, e já ali estava quando eu passava
pelo planalto do castanheiro do vento, ou recebia a brisa morna
sobre a ponte antiga de tavira, ou atravessava o desfiladeiro de petra...

e de repente dou comigo a considerar essa injustiça que fazemos às coisas
que ficam aqui enquanto partimos, e estão aqui quando chegamos,
e constituem a nossa casa, asseguram a nossa permanência
na imprevisibilidade e perigo dos dias, dos meses, dos anos...


e penso como é urgente registar, fotografar, falar dessas coisas,
porque a contemplação em si, solitária, não é suficiente,
e as coisas só existem se olharmos para elas com uma espécie de carinho
e de conforto íntimo, e de reconhecimento por nos fazerem companhia
durante tantos dias, e dormirem de noite no escuro para estarem lá
na manhã seguinte, expondo-se a uma iluminação diferente e nova...


será esse o privilégio do que se habituou a escrever, e a olhar
para os cenários que o rodeiam, não como cenários, não como paisagens,
mas como conjuntos animados e vivos, cheios de alma, povoados de almas,
que por vezes parecem querer chamar-nos a atenção, olhar para nós, e dizer:


escreve-nos também a nós, que te esperámos até ao fim do verão,
escreve-nos também a nós, dá testemunho da nossa mudez e persistência,
a nós que aqui estamos para te acompanhar pelo inverno, pelo túnel do tempo,


para que tenhamos também direito à existência...


a esse pedido fui sensível...


bem hajam canaviais que me acompanham sempre, amigos fiéis,
no meio dos pinheiros, e dos choupos, e das outras árvores e ervas cujo nome não sei.




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foto e texto voj porto out 2009

2 comentários:

Blogat disse...

os amigos fiéis,mesmo aqueles cujo nome não se sabe...permanecem.E são testemunho de nós.Lindo texto!

Vitor Oliveira Jorge disse...

Isto não pretende ser um poema, é claro... apenas uma reflexão ou lamento (alguns chamarão lamúria...) melancólicos...