terça-feira, 4 de novembro de 2008

o mais recente


uma remota civilização acaba de nos revelar uma das suas mais importantes manifestações. há milénios sob a areia, em completo silêncio, alguém se atou para venerar os deuses. os deuses agradeceram-lhe conferindo-lhe pele de cobra. permitiram-lhe também que subsistisse nessa posição submissa, enquanto eles abriam e fechavam os olhos de lápis-lazúli, até que se desse a descoberta. a criatura estava viva e em perfeito estado até à sua completa exumação pelos arqueólogos. estes, deparando com o espectáculo que no fundo há muito procuravam, escarvaram a areia em volta dando gritos altíssimos; chamaram as autoridades e a imprensa, colmatando a figura com medições, fichas, bases de dados, aplicações de computador, e milhares de notícias. uma dessas manchetes dizia precisamente que a criatura ainda respirava, ainda estava viva, fazia menção de falar. após dar três voltas luminosas ao globo terrestre, metamorfoseou-se tal notícia em serpente, e veio a rastejar até à boca do acontecimento, mesmo ao centro da luz, lá onde residia a atenção que concentrava as multidões. enrolou-se ao lado do achado, e a determinada altura confundiu-se com ele. isso perturbou as atenções. onde estava o dado, a descoberta impecável, por um lado, e, por outro, a teia de discursos que sobre ela circulava, que com ela se confundia, que a voltava a atar para uma espécie de nova eternidade? os arqueólogos arranharam-se para tentar encontrar a verdade. mas, cada dia que passava, a figura, confundida com a filigrana de interpretações e de informações que sobre ela transcorriam, ia - se dissolvendo, parecendo desaparecer. de modo que quando o primeiro ministro local e uma quota parte significativa do seu governo se deslocaram para ver o achado que finalmente ia dar estatuto à arqueologia, uma visibilidade de primeiro plano ao nível global, observaram apenas uma extensão de areia, e uma multidão infinda de fotógrafos à volta. veio a televisão, perguntou um assessor, para podermos dar início ao boletim de notícias, já que vamos entrar em directo em prime time? mas só há areia, senhor primeiro ministro, senhores ministros. a descoberta voltou ao limbo de onde veio, sumiu-se entre os grãos invisíveis do deserto, vossas excelências deslocaram-se aqui em vão, lamentamos muito, este é o dia mais negro das nossas vidas profissionais, de reconstituidores do passado. qual em vão, vocês não vêem que um primeiro ministro vem sempre onde não acontece nada mais ?! o acontecimento é ele, o seu aparecimento. esta é a função de um político, seja o que for que aqui tenha acontecido; essa é a mais recente notícia. para que nos interessa o passado, e as vossas escavações na areia, que gretam as mãos e desperdiçam recursos. a figura que respira está aqui. e a soberania do presente voltou a desenlaçar-se aos olhos de todos, magnífica, cheia de brilho, base e laca para as filmagens, e limpando com o lenço os restos de espuma que o discurso deixara entre os lábios.
as múmias estavam vivas. ninguém tinha sonhado, nem os deuses ficaram desiludidos, começando a preparar as camas para a noite; enquanto, cá em baixo, a caravana de automóveis voltava à cidade, para mais um acontecimento.
os arqueólogos coçaram a cabeça e as barbas, e voltaram a escavar, de novo entretidos, envolvidos no seu mais recente desempenho.
que delírio.

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Imagem: Cecilia Paredes
Rep. com autorização da galeria Arthobler, Porto
site: http://www.arthobler.com/artists/cecilia%20paredes/pages/cecilia%20paredes%20home.htm

texto: voj porto novembro 2008

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