domingo, 16 de novembro de 2008

O Grande Segredo


Tudo aquilo que é importante
Vem fora de horas, invisível,
Pelas ruas frias, pelas noites abandonadas
Aos globos de luz no ar.

E não tem explicação, nem palavras,
Nem tempos ou horas de repouso.
Vem intempestivamente, como o salto
De um animal imprevisível.

E rompe. a colcha dos dias. os livros
Para ler, os trabalhos para cumprir.
É uma urgência, leva uma pessoa
A expor as veias, a irrigar a cama.

Fica-se desamparado, de súbito sozinho
No meio da noite. com uma imagem.
Com um corpo cruel. na iminência
De conhecer o Rosto, esse assassinato
Entre mesinhas de cabeceira.

Assombro perante a malícia
Da presença inesperada, do Corpo
Exposto, tão exposto, tão solicitante
E no entanto tão definitivamente inacessível.

Perante o ardil da imagem, a perfeita composição
Da cintura, o umbigo que está nos seios,
Os seios que estão no rosto,
E essa disponibilidade central,
Vulnerável.

Há indícios. mas todos eles apontam
Para o não dito, para o não mostrado,
Para o entrevisto,
Que por esse movimento mesmo
Ostensivamente pede, solicita, se mostra.

O corpo nu debaixo dos seus artifícios.
O vibrar dos músculos sob os livros
Num apelo a serem desfolhados,
Decifrados, retirados da sua materialidade

Para que o Rosto apareça em todo o seu
Esplendor, o apelo irrecusável,
O murro na cara, a manhã feliz do amor
Que tem de ser agora, urgente,
Entre os balões
da noite,
Sangrando as colchas, parando as mesas,

Atando os tornozelos.

Rendo-me. por esse momento sublime
Dou os pulsos, dou os lábios, sinto a frémito
De entre os seios, as contracções dos músculos,
Da cintura,
A inicial, subtil queda,

Das calças de pijama.

Por que nervo passa este movimento?
Por onde se pode começar a esquadriar
Esta geografia?
Oh infinita lentidão

Com que as mãos se aproximam!

Com que os corpos se podem
Enlaçar, travejando costelas, clavículas,
Espáduas, numa luta tremenda
Para se fundirem, para se entrechocarem,
Num trabalho de fúria e espuma.

Sujando as colchas,
Desalinhando as almofadas,

Suicidando-se entre os glóbulos
Misteriosos da noite,

Unindo o que está longe
No espaço e no tempo,
Rompendo a solidão intempestivamente,
Fazendo correr os fluidos
Ao lado das margens.


Deixando apenas a cor,
O Corpo repousado, os livros de novo
Tapando os rostos, os seios de novo
Erguendo-se como pequenas dunas,
Dóceis, infinitamente dóceis!

A cintura apertando-se na expectativa
Do abraço, o umbigo sugando ainda
A aproximação da língua,

Os braços desmembrados
Um para cada lado
Do Grande Segredo.

O lençol que tapa como sudário
O corpo jovem
Recentemente transfigurado,

E ergue a cama ao alto,

Alta como uma catedral,
Fazendo o sinal da cruz.

Exposta ao culto.

Altar magnífico
De onde partem as naves escuras
Do Futuro incerto, sob abóbadas;

Onde ressoam os cânticos repetitivos
Dos Arcanjos ascendentes,
A multidão
Do Grande Desejo, desta vontade brutal

De estoirar com os balões solitários
Que povoam os pináculos da noite.

Uma revolta que vai até ao coração da luz.
E só se apazigua
Quando agarra o Corpo até então incólume
Entre as hélices do frenesim.

Dando então possibilidade
De novo à solidão da noite;

À reconciliação -
Com o mais imperioso
Segredo.

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texto voj 2008, novembro, porto

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