quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Concepções sobre o corpo no séc. XVIII


CONCEPÇÕES SOBRE O CORPO NO SÉCULO XVIII




Apresentação


Albrecht von Haller (1708-1777) é uma figura ímpar do seu tempo, com uma obra multifacetada: médico, professor, cientista, filósofo, poeta, romancista, homem público e cidadão interveniente. Essas várias facetas compõem uma personalidade complexa, que apela a uma pluralidade de focagens.
No início era o poema. Foi esse o primeiro modo de expressão do jovem Haller. A poesia assume nele uma dupla função: estética e filosófico-pedagógica. A beleza e finalidade são dimensões inalienáveis da natureza concebida como arte divina da criação. Efectivamente, a estética halleriana articula-se com uma religiosidade profunda, que coloca o autor na corrente optimista, que vê no mal uma ocasião para maiores bens, não uma mancha inapagável. Daí a polémica com Voltaire a propósito do terramoto de Lisboa (1755), que foi sem dúvida o fenómeno mais perturbador da consciência europeia no século XVIII.
Haller exerceu a filosofia como polemista e crítico, à margem de qualquer intento sistemático. Demarcou-se do cepticismo que, na esteira de P. Bayle, seduziu muitos dos seus contemporâneos, e combateu a tendência para o ateísmo e fideísmo que florescem no século XVIII e que englobou sob o termo “Unglaube” (descrença).
A fama que Haller granjeou junto dos seus contemporâneos e que perdurou durante quase um século advém da sua reputação como médico e cientista. Tal reputação está bem expressa nas cadeiras que regeu (Anatomia, Cirurgia, Botânica), nos títulos e cargos honoríficos (por exemplo, Conselheiro e médico principal da corte inglesa), na deferência com que os contemporâneos o trataram (de que é exemplo o facto de a Encyclopédie d’Yverdon, dirigida por Fortuné Barthélemy de Felice, lhe ser dedicada, bem como os termos do Elogio feito por Condorcet). O mérito que lhe foi reconhecido assenta no talento excepcional do autor, no seu “génio”, mas também na formação que recebeu de respeitáveis professores de Medicina como Camerarius (Tubingen), Winslow (Paris) e, sobretudo Hermann Boerhaave, que passava por magister totius Europae e é apontado por D’Alembert na Enciclopédia (Physiologie) como “o maior teórico de sempre” e um excelente clínico. Foi igualmente estimulado pela pertença a muitas Academias e Associações científicas, às quais incumbia a tarefa de submeter à prova e aperfeiçoar as descobertas individuais.
A obra médica de Haller desenvolve-se simultaneamente em dois planos: no plano teórico, através de uma reordenação e inovação conceptual, em que a noção de fibra assume o estatuto de elemento fundador, que fornece um novo tipo de inteligibilidade, sobrepondo-se à tradicional doutrina dos humores; no plano experimental, pautado pela exigência metodológica de “refazer tudo e verificar absolutamente todas as experiências fisiológicas, incluindo as mais simples, como as da circulação” (Carta a Charles Bonnet, de 15.03.1755).
Sem menosprezar o esforço desenvolvido no âmbito da cirurgia e da embriologia, o labor mais persistente e substancial do autor diz respeito à Fisiologia entendida como uma “Anatomia animada”. De facto, no artigo da Enciclopédia sobre “Fisiologia”, como um século depois nas Lições sobre Fisiologia de Claude Bernard, a Fisiologia é a ciência dos fenómenos vitais, recobrindo o âmbito do que virá a ser a Biologia. Não se trata, pois, de simplesmente descrever as partes do corpo humano, mas de indagar os seus “usos”, isto é, a função de cada uma das partes relativamente ao todo no qual está integrado.
A Fisiologia halleriana veicula uma nova concepção do organismo cuja base é teoria fibrilista: “a fibra é para o fisiologista aquilo que a linha é para o aritmético”. Trata-se de um primeiro elemento, “invisível”, que subjaz a toda a composição orgânica. Nervos e músculos constituem os dois tipos principais de fibras, mediante os quais se exercem duas propriedades fundamentais do ser vivo: sensibilidade, ligada aos nervos, e irritabilidade, ligada aos músculos, “independente da alma e da vontade”, resultante de “uma violência exterior”. A primeira envolve alguma espontaneidade, a segunda reage a extímulos externos, a “uma violência exterior”. Esta teoria da separação entre sensibilidade e irritabilidade (provincias irritabilitatis et sensibilitatis diversas esse) esteve na génese de uma viva controvérsia na segunda metade do século XVIII.
O juízo de G. Canguilhem aplica-se com toda a justeza a Haller: “A fisiologia do século XVIII representa aquele momento de frescura de um estudo em que as ideias tradicionais explodem em contacto com a experiência, em que muitas audácias são permitidas”. Audácia e exigência de inteligibilidade são porventura os dois traços mais salientes de uma obra extraordinariamente fecunda e controversa.

Adelino Cardoso
Palmira Fontes da Costa

Fonte e contacto: cdlisboa@fc.ul.pt
Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa

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