terça-feira, 4 de novembro de 2008

Entrevista dada ao jornal A Página da Educação de Novembro de 2008


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direcção de José Paulo Serralheiro
Entrevista de Ricardo Jorge Costa

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Nascido em Lisboa a Janeiro de 1948, Vítor Oliveira Jorge licencia-se em História pela Faculdade de Letras de Lisboa decorria o ano de 1972. No ano seguinte viria a tornar-se professor assistente dos Cursos de Letras da Universidade de Luanda, lugar que ocupou até Setembro de 1974, tendo, após o seu regresso a Portugal, ocupado este mesmo cargo na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) até 1982. Nesse ano doutorou-se em Pré-História e Arqueologia nesta faculdade, prova na qual obteve a classificação máxima. Em 1984 torna-se professor associado da FLUP, e seis anos depois, em 1990, toma posse como professor catedrático.
No âmbito da sua actividade docente, foi durante vários anos coordenador do mestrado de Arqueologia da FLUP, desde a sua fundação, no ano lectivo de 1989/90, naquela que constituiu a primeira formação autónoma nesta área em Portugal. Foi também presidente do conselho directivo da FLUP entre Dezembro de 1994 e Dezembro de 1995. Ainda nesse ano, e até Setembro de 1996, presidiria à Comissão Instaladora do Instituto Português de Arqueologia, organismo tutelado pelo Ministério da Cultura.
Tem presidido à direcção da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia ao longo de diversos mandatos, e em 1997 fundou, no Porto, juntamente com outros colegas, a Associação para o Desenvolvimento da Cooperação em Arqueologia Peninsular, a cuja direcção preside também actualmente. Arqueólogo, poeta e ensaísta, Vítor Oliveira Jorge publicou cerca de 300 trabalhos científicos e de divulgação e várias dezenas de livros. É colaborador regular deste jornal desde 2006, assinando a rubrica “Consumir-se e Consumar-se no Consumo”.


Apesar de ser formado em História, é sobretudo um investigador apaixonado pela arqueologia. Enquanto professor, sente que existe interesse por parte dos alunos por esta área?

Sim, bastante. Acontece-me inclusivamente ser abordado por pessoas que, estando a tirar outros cursos, me dizem que gostariam de ter tirado arqueologia. Não há, portanto, aquela ideia de que a arqueologia é uma formação de banda curta, pelo contrário. Porque de facto ela incide desde os tempos mais remotos da humanidade até à actualidade. Ainda recentemente, o caso da nau portuguesa encontrada ao largo da Namíbia é testemunho do interesse bastante generalizado pela arqueologia.

E que demonstrará, provavelmente, que esse interesse terá frequentemente o seu quê de comercial...

Sim, mas infelizmente o que é que hoje em dia não tem um carácter comercial a gravitar em torno de si? Há, de facto, empresas internacionais especializadas na caça ao tesouro. Mas compete a cada país ter os meios de vigilância e de controlo adequados a esta actividade. E não apenas no domínio da arqueologia subaquática, mas também na protecção e na construção de uma ideia de património público, possibilidade que, no nosso país, ficou comprometida por várias décadas de ditadura, que impediu a construção de uma modernidade. Ao mesmo tempo que se democratiza, descoloniza e faz retornar cerca de um milhão de pessoas ao país, Portugal quis modernizar-se, mudar de ciclo e entrar na Comunidade Económica Europeia. Tudo isto é feito encavalitando períodos históricos uns nos outros, o que nos fez, na prática, transitar de uma pré-modernidade para uma pós-modernidade.
E toda a estrutura de inventariação, protecção e uso comum do património como recurso cultural - para aplicar uma expressão muito do agrado dos actuais gestores - está muito ligada à modernidade europeia. Nos países industrializados, sobretudo os do norte da Europa, desde o século XIX que se criou uma indústria de turismo condensada em torno do interesse pelo património, pelo pitoresco.

É uma profissão difícil de exercer?

A nossa sociedade criou uma ideia, na minha opinião ao mesmo tempo pragmática e perversa, assente num funcionalismo e num utilitarismo excessivos, ou seja, esquecendo que tudo aquilo que não é imediatamente útil hoje poderá revelar-se de extrema utilidade no futuro. Ora, se existe uma indústria que cresce e que cria empregos a nível mundial ela é a cultura, no sentido geral do termo. E com ela a arqueologia. A indústria do turismo precisa de vender os sítios, e para isso é preciso ter museus, monumentos e locais de interesse para mostrar. Neste sentido, a arqueologia não será mais do que o processo de fabricação de sítios arqueológicos, ou seja, daquilo que se vai vender. Tudo isto, para dizer que o mercado de trabalho na arqueologia existe, e que actualmente existirão talvez cerca de mil arqueólogos (ou perto disso) credenciados, ou seja, que estão autorizados a dirigir escavações arqueológicas no nosso pais.
O problema é que, tendo em conta que o sistema empresarial nesta área está numa fase pouco amadurecida, as empresas ligadas a ela tendem a funcionar numa lógica que, em certa medida, é contrária àquela a que me habituei, ou que sempre quis seguir quando optei pela carreira de professor universitário, que é a lógica do investigador.

A conservação do património tem de passar necessariamente por esse intuito de carácter comercial?

Nós conhecemos o mundo e o país onde vivemos e a situação que atravessamos actualmente...
Além disso, a arqueologia, tendo na sua matriz uma ideia de antiguidade, de história, de origens, é uma área do saber que, enquanto disciplina científica, surge, como muitas outras, no século XIX, com o advento da industrialização. Portugal tem aí, desde logo, um primeiro atraso, e quando no século XX teve oportunidade de modernizar-se e acompanhar o desenvolvimento da arqueologia, a ditadura provoca um corte profundo, de base política, que impediu a sua promoção e modernização como sistema, quer do ponto de vista de uma investigação séria, profunda e continuada, quer do ponto de vista da organização estatal, regional e local dos serviços de protecção, acautelamento e prevenção do Património. O que significava um ordenamento do território que incluísse a arqueologia.
Ora, se o ordenamento do território não existiu em termos geográficos e ambientais, ou se traduziu em legislação que nunca se cumpriu, evidentemente que a arqueologia tinha de ter ficado - e continua a ficar - na cauda de toda essa falta de controlo sobre o que é o ordenamento do território, que é um conceito moderno, de planeamento, prevenção e de estudo atempado.
Ao mesmo tempo, não houve também ainda tempo de fazer a devida articulação entre as universidades, que no fundo concedem os graus, a formação e preparam as pessoas, e o mundo real. Apesar de hoje existir um número bastante razoável de arqueólogos licenciados, a primeira licenciatura autónoma nesta área aparece na Faculdade de Letras do Porto no ano lectivo 1999/2000. Antes disso, ela era apenas uma variante dos diversos cursos de História. Ou seja, a maioridade da arqueologia como área de ensino ocorre apenas no final dos anos noventa.

Mas esse carácter comercial está ou não presente na ideia de preservação do Património?

Comercial talvez num sentido muito mais geral, da economia imediata comandar tudo, mas na verdade nada pode subsistir sem ser pago pelos contribuintes ou pelos utentes...

Ou financiado pelas grandes empresas, que actuam como mecenas...

Sim, apesar de aqui o mecenato não ter a mesma expressão de outros países, como acontece com o sector bancário em Espanha, por exemplo, que financia muitas publicações e iniciativas diversas na área da arqueologia, da defesa do património e da promoção da cultura em geral. Em Portugal nunca tivemos essa tradição, e para os bancos é mais vantajoso promoverem espectáculos de grande impacto mediático que garantam uma maior repercussão pública. Não faz sentido, na sua lógica empresarial, patrocinar as pequenas entidades.
Em Portugal faz falta a existência de um tecido associativo forte, difícil de consolidar-se porque, mais uma vez, não existe uma tradição de modernidade, de associativismo, de voluntariado, enfim, a ideia de um espaço público onde se pode intervir de uma maneira não lucrativa. O voluntariado que ainda vai subsistindo é praticamente inexistente na área da arqueologia, porque na perspectiva do funcionalismo e do utilitarismo imediatos a que a nossa sociedade está confinada não é considerada uma necessidade prioritária. A factura que Portugal herdou do salazarismo - muitas pessoas escamoteam isto e os jovens simplesmente ignoram-no – irá perdurar por décadas.

Considera, ainda assim, que exista algo como uma política coerente de salvaguarda do Património?

Leis existem muitas, e em Portugal elas serão até das mais coerentes a nível europeu. E também não será pela ausência de formação ou da competência dos profissionais ligados esta área. O problema, na minha opinião, está na falta de recursos e, sobretudo, na ausência de uma ampla discussão pública sobre este tema. Que deriva, ela própria, da falta de consciência pública para a questão. A organização do aparelho de Estado e a importância que os diversos governos atribuem à cultura, que ficou agora patente na aprovação do Orçamento para 2009, tudo isso é o reflexo da consciência pública dos cidadãos – ou da falta dela, neste caso. Se a isso acrescentarmos o facto de estarmos a viver numa época de grande crise económica e de instabilidade global, evidentemente que se torna muito difícil traçar uma política para a arqueologia com efeitos concretos.
O problema de fundo, a par da desarticulação do debate político e cultural em Portugal, é que não há uma consciência pública do valor do Património, que é um valor a longo prazo, que não se coaduna com os ciclos eleitorais, por um lado, e com a mercantilização e o desejo de retorno financeiro imediato de quem nele investe – mesmo que muitas vezes esse dinheiro seja público. Há, portanto, uma espécie de choque ideológico e prático entre o que seria desejável e o acontece decorrente de uma falta de planeamento que já vem muito de trás.
Ou seja, a política que existe é talvez a possível. Cada país tem o que merece e o que os seus cidadãos querem - ou que são induzidos a querer, que é uma questão um pouco mais complexa. O espólio da nau portuguesa recentemente encontrada na Namíbia, por exemplo, irá ficar, julgo, exclusivamente na posse do governo deste país, que nos autorizou apenas a estudá-lo. E talvez, apesar de tudo, Portugal estivesse em condições económicas de negociar a vinda de uma parte deste espólio para o país.


Paralelamente a este tema, existe uma outra questão que, de certa forma, reflecte também essa consciência pública a que se refere: o ensino da História. Formulo esta pergunta nos mesmos termos com que iniciei esta entrevista: existe hoje em dia interesse pela aprendizagem e pelo ensino da História?

Julgo que sim. Aqui na Faculdade de Letras, aliás, nunca tivemos falta de alunos nesta área, e a minha percepção é de que existe uma crescente curiosidade pela História. E este interesse acompanha, evidentemente, o grau de escolaridade e de modernização do país. Veja-se, por exemplo, o fenómeno José Hermano Saraiva, que através da televisão se transformou num “best-seller” nacional... Claro que não se trata de um tipo de abordagem que traduza a minha perspectiva, mais problematizante, da História, mas mostra que, apesar de tudo, há uma aptidão popular pelos assuntos a ela ligados.

Pensa que esse rigor está patente no ensino da História nas escolas ou ela é, de alguma forma, mistificada para passar uma imagem glorificadora do passado de Portugal?

A História tem sempre uma perspectiva política, porque ela é sempre elaborada de um determinado ponto de vista. Evidentemente que a História séria é aquela que, assumindo essa necessária subjectividade e ponto de vista, se procura munir de elementos de contrastação para atingir aquilo que se poderá designar por uma certa objectividade. Mas não há nenhuma História que seja como a matemática, ela não é passada pelo éter, digamos assim... A História é toda ela uma visão dos acontecimentos passados através da qual se procura uma ordem que de, certo modo, justifique e consolide uma perspectiva presente. Ou seja, existe sempre uma perspectiva interessada da História, qualquer que ela seja.

Mas será assim tão subjectiva que cada país tenda a construir e a promover uma perspectiva histórica própria?

Penso que essa tendência estará intimamente relacionada com a tradição nacionalista que se origina no século XIX. É preciso ver que muitos países se constituiram- enquanto tal já na modernidade; não tinham, por exemplo, a unidade territorial e linguística que Portugal tem desde há séculos. E, no caso português, talvez essa tenha sido uma das razões pela qual nunca houve um grande interesse pela arqueologia, em particular por parte da ditadura.
Porque as grandes ditaduras – veja-se o caso do nazismo e da cruz gamada, um antiquíssimo símbolo solar, ou do nacional socialismo italiano, que recuperou algum do aparato do antigo império romano – foram buscar à arqueologia a inspiração para muita da sua imagética. Também na União Soviética e nos países da sua esfera de influência se promoveram grandes escavações arqueológicas de prestígio, tal como aconteceu com países sociais democratas do Ocidente, como a França, que apostou na recuperação de locais carismáticos, particularmente aqueles que se relacionavam com Vercingetorix e a sua resistência ao império romano. Uma recuperação, enfim, do nacionalismo, ao qual a arqueologia está muito ligada, sobretudo a partir dos séculos XVIII e XIX, com a valorização das raízes que deram sustentação ao Estado nacional.

Nesse caso, que visão subjectiva da História deveria Portugal promover?

Nunca teria, obviamente, a pretensão de sugerir a promoção de qualquer tipo de receita para a História de Portugal. Considero é que a História deve, tal como todo o ensino, seja ele da arqueologia ou de qualquer outra matéria, envolver de perto os dois elementos fulcrais do acto de comunicação: o professor e os alunos. Julgo que os alunos devem aprender a ser os professores de si mesmos, em todos os graus de ensino. E para isso tem de haver um ensino activo, em que o aluno seja levado a tal e não obrigado. Ao mesmo tempo, tem de haver disciplina - até para que eles se possam revoltar contra ela.
Acima de tudo, porém, é fundamental dar-se a possibilidade a cada estudante de construir a sua própria visão da História, começando desde logo pelo ensino primário, senão mesmo antes. E de não se fixar o ensino apenas nas grandes figuras, nos reis, nas batalhas ou nas chamadas descobertas – do nosso ponto de vista, claro, porque quem lá estava descobriu-nos a nós também – que mais não foram do que pontos de encontro de culturas. Há que reformular essa visão da prática da História, porque ela deve ser uma prática vivida pelos povos, tanto quanto possível com algum cuidado e rigor para não cairmos por exemplo em certas ridicularias folclóricas de cortejos históricos que de histórico têm muito pouco... Mas que, enfim, são melhores do que nada, mostrando uma certa aptidão e vontade públicas de apreender a História.

Concorda com a ideia de que a perspectiva histórica ensinada nas escolas parte quase invariavelmente de um olhar ocidentalizado e que se esquece frequentemente o papel das outras civilizações?

Esse é um problema muito mais profundo. Como já referi há pouco, a História não é inocente e evidentemente que está eivada de uma ideologia que considera o Ocidente como a linha da frente. E esta perspectiva está associada a uma crise da ideia de progresso hoje em crise através da qual ainda nos consideramos superiores a praticamente todo o resto do mundo. Quanto muito temos uma atitude tolerante de afirmar que os outros também têm muito interesse - até porque são parceiros comerciais -, mas há de facto uma discriminação subjacente a muitos discursos bem intencionados.
Um exemplo disto mesmo é o exótico que se encontra dissimulado numa certa ideologia orientalista, toda uma mistificação que hoje em dia vende imenso, seja em termos musicais ou turísticos. Hoje o que se vende é o exótico, as pessoas querem ir cada vez para mais longe, terem experiências, se possível, no limite. E nós somos atraídos por isso de uma maneira um pouco fácil.
A História dessas civilizações “exóticas”, como elas surgiram, o interesse que têm para o estudo de uma História descentrada e não eurocêntrica, esse é que é o problema fundamental. Mas isso é muito difícil de conseguir porque ainda existem em todos os países fortes tradições nacionalistas que cerceiam essa perspectiva. E essas tradições acentuam-se na medida em que há um sentimento de globalização que se associa a uma certa perda de identidade, havendo, portanto, uma procura de novas âncoras identitárias. E essa procura faz-se habitualmente no sentido da valorização do nacional, do regional e do local. Cada terra quer ter o seu herói, o seu doce, o seu festival, o seu centro cultural, qualquer coisa que chame a atenção. E também a sua História. Só que essa História muitas vezes não se apoia numa investigação científica rigorosa e não passa muitas vezes de uma historieta.

Referiu-se à procura de âncoras identitárias. A rubrica que o professor assina mensalmente na PÁGINA designa-se “Consumir-se e Consumar-se no Consumo” e vai um pouco de encontro a isso mesmo, ou seja, a procura de uma identidade baseada no consumo. Concorda com esta ideia?

Sim. Até porque o consumo é um sistema que se baseia no desejo. Nós consumimos porque temos desejo de ter alguma coisa. Hoje em dia é ridículo e inocente afirmar uma divisão entre necessidades básicas e necessidades superfluas, isso está completamente ultrapassado. Basta irmos a um supermercado ou a um centro comercial para reparar que as pessoas vão lá atraídas principalmente não por aquilo que é absolutamente necessário, mas pelos extras. As pessoas querem sempre levar qualquer coisa mais, esse “quanto mais” do desejo que Lacan designava como o “pequeno objecto a”, que, em boa verdade, é o que de facto nos leva a ir lá consumir.
Evidentemente que os publicitários, os economistas e as pessoas que gerem toda esta sociedade de consumo sabem perfeitamente disso. Desde a disposição dos stands, passando pela publicidade e pela maneira como o produto é apresentado, a embalagem, etc. Tudo é pensado para nos levar a consumir. Ou seja, a imagem, o signo, sobrepõe-se à suposta “utilidade” do objecto; o significante sobrepõe-se ao significado, se quisermos. Vivemos numa sociedade de signos, isto é, temos de perspectivá-la como uma economia política do signo, como dizia Jean Baudrillard.
Vivemos, portanto, nessa base do desejo, que nos mantém permanentemente activos e a pensar no que vamos comprar a seguir. O desejo cria-nos essa necessidade. E para não nos sentirmos culpados desse impulso, sobretudo se for uma compra dispendiosa, compramos a crédito ou de uma forma que seja muito justificada pelo nosso desejo. E nessas alturas somos capazes de arranjar as mais incríveis justificações para o fazer.

Acha que se pode então dizer que somos hoje o que consumimos?

Sim, concretizado numa espécie de tríade: o consumo, que se sobrepõe a tudo o resto; o turismo, que é uma forma de consumo que nos leva a deslocar-nos para sítios mais ou menos exóticos ou apresentados como tal; e no outro vértice o museu, com tudo aquilo que não é lixo e não se destina à reciclagem a ser musealizado. Musealiza-se o mundo, portanto, transformando-o numa máquina de memória.
E neste processo há sempre um diálogo conflitual e extremamente complexo, político, entre aquilo que se deve conservar, já não apenas objectos para pôr em vitrinas mas até modos de vida, e aquilo que não cabe nesses parâmetros. Mas é preciso ver que as pessoas não são animais em jardins zoológicos, ou não deveriam sê-lo. As pessoas têm direito a ter as suas casas com conforto, a modificar os seus modos de vida, a terem boas acessibilidades e a não viverem numa espécie de mundo mais ou menos musealizado para prazer do resto da população que os vai ver e até compra bilhetes para esse efeito.
Esse é que o grande problema do mundo: uma parte tem dinheiro para comprar a outra parte que está exoticizada. Nessa outra parte do mundo actuam minorias, empresas e algumas das vezes até organizações mafiosas que exploram essas pessoas, que são musealizadas, fotografadas, produtos de visita, mas que não ganham muito com isso, ganham os intermediários de todo esse comércio.
As pessoas nunca viveram numa sociedade tão invadida por dispositivos de controlo. Toda a gente se sente, em maior ou menor grau, extremamente controlada. E quem tem possibilidade para isso procura fugas de todo o tipo, incluindo as fugas turísticas. O turismo tornou-se, assim, numa indústria da evasão de um mundo que se tornou desumano, maquínico.
E essa, infelizmente, é a base actual do próprio ensino. Porque razão os alunos se desinteressam das aulas por mais que o professor faça um esforço no sentido de cativá-los? Porque eles percebem que estão a ser alvo de um sistema de integração um pouco forçado e que não tem em vista o seu envolvimento afectivo, que não tem em conta eles o facto de eles terem uma outra cultura, uma outra forma de estar, uma respiração e um desejo orientado para outros sentidos. Como vamos conseguir que esse desejo, orientado para outras perspectivas, conserve, apesar de tudo, alguma da velha dialéctica entre herança e criatividade? De que forma conseguir que essas pessoas, que têm vontade de fazer coisas, que podem e devem ser mobilizadas para fazer coisas, para criar as suas vidas, não percam valores que vêm do passado e são fundamentais – coisas tão simples como ler e tirar prazer da leitura? O que a escola faz, como já dizia o Bourdieu, é reproduzir as diferenças sociais e até acentuá-las de forma evidente. Mas não podemos passar sem integrar as pessoas no conhecimento. O problema é: que conhecimento e para que fins? Sou por um conhecimento plural, livre, exigente, e participado.


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