Sobes às vezes para um plinto, onde costuma estar um vaso de flores, e pedes-me insistentemente: trata-me como um bibelot, pega-me com jeito, muda-me de sítio para sítio.
Não faltam mesinhas, peanhas, pedestais onde possas colocar-me.
Que sou eu, senão um objecto de contemplação e um brinquedo requintado, um ornamento que quer estar em palco, ter espaço para desdobrar as suas pregas, pela sala fora, como um vestido de noiva, estender as suas atracções como um campo de papoilas?
Sim, posso levar-te de um lado para outro, és leve como as palavras que transcorrem pela atmosfera das salas e se podem sempre arrumar em versos, expor, enfim, ficar bem.
Mas tu és um homem velho, diz-me uma voz, debruça-te sobre a secretária com uma mão no estilete e outra no crânio pousado.
Tu estás sentada no alto de uma prateleira, dentro de um móvel aberto, com uma portada para cada lado, e as pernas muito esticadas para cima, juntas, coladas uma à outra, e com um borrão de tinta castanho-avermelhada ao meio.
E dizes-me: tira-me daqui, lava-me, apaga-me esta tensão dos músculos, massaja-me, muda-me de sítio, coloca-me num jardim de inverno, e ai ficarei nua entre as outras estátuas nuas, estendo-me o mais que puder em todos os sentidos.
E todos esses sentidos serão das tuas mãos, uma matéria, um equipamento para tu brincares.
Sim, posso fazê-lo, quero fazê-lo, deixa apenas que se escoem pelas janelas as últimas imagens de realidade que se aproximaram dos vidros, e que a noite acenda as paredes de veludo vermelho, o chão axadrezado a preto e branco.
Deixa-me tirar a a capa que traz ainda os odores lá de fora.
Mas tu és um homem já velho, volta a voz, a vida para ti passou no seu esplendor, agora podes apenas olhar as janelas da nostalgia e escrever a tua obra, o teu livro, desenhando alegorias, confeccionando formas.
A tua estética é a das ninfas que nas paredes te olham dos quadros, a entrar na água, num fim de tarde pré-rafaelita.
Tu giras como um grande pião no meio da sala, enchendo toda a altura desta, do chão ao tecto. E à medida que ganhas velocidade, o teu riso aumenta.
Tenta, meu doido, tenta parar-me, prometo-te um beijo fundo, tão longo que te perderás nos seus intertícios, e cada uma das minhas pequenas cavidades terá um sabor diferente para ti, um sumo de framboesa de mucosas, um tacto tão suave que nunca mais poderás depois disso abrir a boca, fugir ao meu amplexo, deixar de penetrar-me eterna e suavemente pela frente e por detrás, quando eu fizer apenas um pequeno movimento no sentido de te abranger.
Muda-me desta condição de excessiva beleza, quero ser suja, quero ser indecente, quero que me atravesses com as línguas de fogo do pentecostes e me abrases as costas e o peito de tal modo que eu perca os sentidos, porque tos entrego todos a ti.
Olha o teu corpo, diz o espelho, contempla a velhice e a sua degradação: as carnes moles, as gorduras sobrepostas, as pregas do envelhecimento, a falta de proporções. Despe-te, fotografa-te, radiografa-te, tem vergonha.
Como se eu não conhecesse todos esses diálogos.
Como se eu não tivesse sempre ao meu lado duas estátuas protectoras:
A da ousadia;
E a da espera do momento certo, do kairos, aquela que me indica quando serei eu a ter a ilusão de me infiltrar entre as desconexas insistências, entre as pequenas jelosias de onde espreita o para lá do possível.
Do alto do castelo, sou como a ave pétrea, a águia vigilante que ornamenta os beirais dos cimos:
um dia desprender-se-á do plinto, dizem;
E é ela quem finalmente pica sobre a realidade, levando a presa certa entre as garras, com os olhos dilatados de uma alegria vampírica, e um som de música de angelo badalamenti como fundo:
O verdadeiro som do amor, da posse assassina, do ódio total ao mais pequeno atrito da atmosfera, ao mais breve intervalo entre os dois tempos do sangue.
Não faltam mesinhas, peanhas, pedestais onde possas colocar-me.
Que sou eu, senão um objecto de contemplação e um brinquedo requintado, um ornamento que quer estar em palco, ter espaço para desdobrar as suas pregas, pela sala fora, como um vestido de noiva, estender as suas atracções como um campo de papoilas?
Sim, posso levar-te de um lado para outro, és leve como as palavras que transcorrem pela atmosfera das salas e se podem sempre arrumar em versos, expor, enfim, ficar bem.
Mas tu és um homem velho, diz-me uma voz, debruça-te sobre a secretária com uma mão no estilete e outra no crânio pousado.
Tu estás sentada no alto de uma prateleira, dentro de um móvel aberto, com uma portada para cada lado, e as pernas muito esticadas para cima, juntas, coladas uma à outra, e com um borrão de tinta castanho-avermelhada ao meio.
E dizes-me: tira-me daqui, lava-me, apaga-me esta tensão dos músculos, massaja-me, muda-me de sítio, coloca-me num jardim de inverno, e ai ficarei nua entre as outras estátuas nuas, estendo-me o mais que puder em todos os sentidos.
E todos esses sentidos serão das tuas mãos, uma matéria, um equipamento para tu brincares.
Sim, posso fazê-lo, quero fazê-lo, deixa apenas que se escoem pelas janelas as últimas imagens de realidade que se aproximaram dos vidros, e que a noite acenda as paredes de veludo vermelho, o chão axadrezado a preto e branco.
Deixa-me tirar a a capa que traz ainda os odores lá de fora.
Mas tu és um homem já velho, volta a voz, a vida para ti passou no seu esplendor, agora podes apenas olhar as janelas da nostalgia e escrever a tua obra, o teu livro, desenhando alegorias, confeccionando formas.
A tua estética é a das ninfas que nas paredes te olham dos quadros, a entrar na água, num fim de tarde pré-rafaelita.
Tu giras como um grande pião no meio da sala, enchendo toda a altura desta, do chão ao tecto. E à medida que ganhas velocidade, o teu riso aumenta.
Tenta, meu doido, tenta parar-me, prometo-te um beijo fundo, tão longo que te perderás nos seus intertícios, e cada uma das minhas pequenas cavidades terá um sabor diferente para ti, um sumo de framboesa de mucosas, um tacto tão suave que nunca mais poderás depois disso abrir a boca, fugir ao meu amplexo, deixar de penetrar-me eterna e suavemente pela frente e por detrás, quando eu fizer apenas um pequeno movimento no sentido de te abranger.
Muda-me desta condição de excessiva beleza, quero ser suja, quero ser indecente, quero que me atravesses com as línguas de fogo do pentecostes e me abrases as costas e o peito de tal modo que eu perca os sentidos, porque tos entrego todos a ti.
Olha o teu corpo, diz o espelho, contempla a velhice e a sua degradação: as carnes moles, as gorduras sobrepostas, as pregas do envelhecimento, a falta de proporções. Despe-te, fotografa-te, radiografa-te, tem vergonha.
Como se eu não conhecesse todos esses diálogos.
Como se eu não tivesse sempre ao meu lado duas estátuas protectoras:
A da ousadia;
E a da espera do momento certo, do kairos, aquela que me indica quando serei eu a ter a ilusão de me infiltrar entre as desconexas insistências, entre as pequenas jelosias de onde espreita o para lá do possível.
Do alto do castelo, sou como a ave pétrea, a águia vigilante que ornamenta os beirais dos cimos:
um dia desprender-se-á do plinto, dizem;
E é ela quem finalmente pica sobre a realidade, levando a presa certa entre as garras, com os olhos dilatados de uma alegria vampírica, e um som de música de angelo badalamenti como fundo:
O verdadeiro som do amor, da posse assassina, do ódio total ao mais pequeno atrito da atmosfera, ao mais breve intervalo entre os dois tempos do sangue.
voj 2008
Foto: Martin Junius
Fonte: http://photo.m-j-s.net/
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