Querer mostrar-se aos outros como isento de qualquer perversidade,
isto é,
que se é, de algum modo específico, e como indivíduo,
a própria incorporação da norma geral.
A norma e os seus "desvios" são uma criação (contingente, será preciso acrescentar?) de sistemas de justiça (de um determinado momento histórico da justiça), e não o contrário, quer dizer, a justiça é que, como é óbvio, delimita e marca o que é "crime"
ou não é.
O "crime" (comportamento de desvio em relação à norma e sua produção como tal) alimenta a justiça, porque também como é óbvio se não houvesse "crimes" qualificados como tais não havia aparelho de justiça: ambos estão em sistema, estão casados intimamente, e em contínua "altercação conjugal".
Cada época (as forças no poder de cada época, é óbvio) cria, produz o seu sistema de subjectividades, o seu regime que demarca o que é objectivo, certo e público (correcto, normativo, bom, normal, verdadeiro, científico, divulgável, etc.) e o que é subjectivo (o que é da esfera do desvio, ou da intimidade, da subjectividade, do não comprovável, do privado, do "artístico", e pode até ser "desviante" desde que não prejudique o próximo ou não se note muito publicamente de modo a incomodar a norma).
Esta divisão é o resultado de uma determinada economia política, tão só.
E sempre tensional, senão não havia história.
Hoje o sistema é tolerante para certos "desvios" antes pornográficos, ou obscenos, porque obviamente esses "nichos" (?) são cada vez mais importantes no mercado, o qual necessita da produção e lançamento contínuo de novidades bombásticas, sensacionais.
O mercado alimenta-se de um "novo" que em grande parte é sempre "mais do mesmo", mas mesmo assim tem brechas, é uma avalancha onde algo de novo em relação ao "novo" se vai ("perversamente"...) insinuando, fazendo a norma estar atenta, corrigir-se, avançar, retrair-se, proibir, fechar os olhos, etc.
É um jogo permanente, de interessses poderosíssimos à escala global, onde entram muitas sensibilidades, desde as mais liberais às mais dogmáticas, e de todos os matizes.
O sistema tornou-se, pela sua própria dinâmica, muito rápido, tem dificuldade na estabilização de si mesmo (é a famosa crise dos valores pós-moderna, que alguns ainda andam a querer consertar com normas da sociedade moderna !!), mas mexe contudo os cordelinhos, sempre complexos, no sentido de uma certa norma, que hoje se disputa à escala planetária, claro.
Ou seja, é como um barco em que os passageiros e os tripulantes já não se sentem muito seguros, e o comando também não, mas tem de fingir até ao mergulho final... ou ao happy end do filme (para não ser apocalíptico, parece mal...). Esse fingir nunca parece fingimento, mas convicção inabalável, optimismo de mar livre e sereno. Nestas coisas ou se é profissional ou se sai do jogo.
A "perversidade" (desvio) é apenas um dos modos ou produtos de um trabalho de cartografia de uma economia política das subjectividades, um dos processos de subjectificação, quer dizer, de sujeição.
Por isso há cortejos de indivíduos "desviantes", ansiosos de ocuparem (nem que seja de forma carnavalesca) por momentos o espaço público, o espaço da norma.
Mas muito do que é ensinado hoje em universidades ou está canonizado em museus já foi perverso, desviante, ou mesmo "criminoso"... or próprios campos de batalha ou de extermínio "viram", com o tempo, "património".
O cúmulo da hipocrisia é alguém querer apresentar a norma como auto-justificativa, e apresentar-se como o próprio corpo da norma:
debaixo do fato, como o rei, qualquer norma vai nua.
E nem sempre é bela, ou eficaz, ou bondosa.
Leva sempre qualquer coisinha no bolso de perversidade...é a velha dialéctica do carcereiro e do encarcerado: acaba por haver uma certa mimética entre eles.
Ou do senhor e do escravo: se ninguém quisesse ser escravo, não havia senhores. Pois, mas muitos, quando eram libertados, ficavam desamparados: ficavam desprovidos da norma cá de fora que, intra-muros, não tinham aprendido.
PERTENCIAM A OUTRA ESFERA DA ECONOMIA POLITICA DE PRODUÇÃO DE SUBJECTIVIDADES.
Preferiam continuar a ser escravos, delegar noutros o seu destino, porque tomar nas mãos o "destino próprio" é uma responsabilidade, exige estar dentro da realidade conflitual, quer dizer, jogar com as normas e os desvios e as surpresas que todos temos.
O escravo era feliz, a seu modo, porque não podia conceber (conviver, lidar com) o desvio.
A produção de subjectividades é a principal norma social a medida em que inculca nos indivíduos a ilusão de que o seu desejo é a norma, se confunde com ela... inculca pela acção mesmo, não resulta de nenhum "complot" ou cérebro maquiavélico. Por isso isto tanto interessa, mesmo aos arqueólogos... como se agencia o poder de forma subtil, mesmo sem que haja um centro emissor formalizado (um aparelho de Estado).
ver a este respeito: Micropolitiques, de Suely Rolnik e F. Guattari, Paris, Seuil/Les Empêcheurs de Penser en Rond, 2003.
Suely é Profª. da Pontífícia Universidade Católica de S. Paulo, Brasil.
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