quarta-feira, 6 de junho de 2007

reforma do ensino

Imagem: Palácio de Vaux-le-Vicomte, França
Reprodução permitida por:

freephotobank.org

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Imaginemos um professor que entra numa turma, para dar ali uma indisciplina.
A ideia é mesmo a de, juntamente com os alunos, ir lá aprender, e ensinar a aprender. Para tanto a arquitectura da sala não ajuda: uma mesa e um quadro de parede, de um lado, e as carteiras todas alinhadas do outro. O palco e a assistência.
De forma que a primeira tarefa é de alterar essa disposição para um estilo, por exemplo, de mesa-redonda, que deixe um certo espaço ao centro, um espaço vazio onde as palavras possam circular de parte a parte.
Imaginemos que o professor tinha sido contratado e avaliado periodicamente para ensinar, por exemplo, história da arte, um assunto que tem a sua beleza (apesar de muitos andarem a profetizar ou mesmo a diagnosticar a morte da dita arte há pelo menos um século).
Com o seu power point e o seu écrã, a tradicional disposição da sala estava perfeitamente adaptada ao evento, diríamos ao espectáculo.
Os alunos, focalizados para o mesmo sítio, podiam no fim comentar, pôr questões, dúvidas, a que o liberal professor responderia, dando a sua vez a cada um de se exprimir, e a ele, evidentemente, a de dizer a palavra final. Para isso é que lhe pagam.

Porém, em disposição de mesa-redonda, as novas tecnologias resolvem o problema: cada estudante com o seu computador portátil poderia seguir a lição, debruçado sobre as imagens, sobre a sua experiência pessoal, individual, intransmissível; sugerir até uma paragem quando quisesse, comentar o documento, abrir o debate.
A circunstância puramente especulativa de se ter de intervir, para melhor expressividade face a face, colocando a cara entre os computadores, não teria grande mal; a tampa dos ditos abre e fecha facilmente, e se a pessoa preferisse outro exercício bastaria apenas falar por cima do écrã do mesmo computador. Isto sem qualquer risco de os companheiros poderem pensar que, para melhor absorver o assunto, o aluno iria agora absurdamente ter tendência a de vez em quando parecer estar a trincar o aparelho, no calor do argumento, na paixão da intervenção participada.
Vocês falam aqui de estudos visuais, de fotografia e de cinema, vídeo, por exemplo? Poderia perguntar um estudante trabalhador mais velho, frequentador dos colóquios de Serralves, e já com o poder de compra para de vez em quando ir à livraria, e orientar-se ali a pontos de comprar um livro pertinente sobre o assunto, sobre a polémica que há décadas, em certos paises, se gera em torno da renovação dos velhos estudos de arte. Mas este seria um aluno inverosímil.
De modo que a reforma destes estudos consistirá, dita o bom senso, primeiro nestas pequenas-grandes coisas, a atitude, a abertura, a tecnologia, o modo de comunicação. Há uma determinada "matéria" para "dar", até certo ponto pré-programada, que o docente pode até diariamente copiar por itens do seu programa para os sumários em suporte informático. É muito prático, facilita imenso.
Mas imaginemos que o professor em vez de dar a indisciplina que essas possibilidades introduzem (depois da aula é preciso voltar a pôr todos os móveis no sítio, por exemplo) queria mesmo ir mais longe. Poderia dizer-lhes: sabem, as máquinas ajudam-nos imenso, são o ambiente de um novo saber. Mas, para que tal aconteça, temos de ser nós a usá-las, e não elas a nós. Tenham uma atitude crítica, problematizem mais. O que significa que nelas, máquinas, vamos buscar informação, experiência, documentação, mas em última análise o fundamenal é mesmo discutir o que estamos todos a fazer aqui, ir ao núcleo das coisas, das novas combinatórias de saberes, das paisagens intelectuais que hoje a modernidade tardia nos proporciona.
Tem sentido esta organização geral de cursos, de saberes, de indisciplinas? De por exemplo se procurar alguma interdisciplinaridade, ou mesmo até, imaginem, transdisciplinaridade, diálogo, convidando professores de outras unidades a virem aqui debater connosco, enfim, indo ao que parece ser hoje o nó dos problemas (isto é, adiantarmo-nos à realidade evidente) e tentando fazer mesmo, juntos, um trabalho, montar aqui uma performance ou produzir um texto, um estudo, uma pesquisa, um resultado qualquer em comum?

Oh diabo, diriam os alunos, mesmo os mais advertidos e motivados, isto já está a ir longe demais. Assim torna-se difícil, nós pagamos as propinas para alguma coisa, queremos aprender algo, e depois mais tarde poderemos vir, pela experiência, a tentar outros vôos. Vamos por partes, senão essa reforma do ensino pode degenerar em grande confusão. Nós não temos ainda maturidade para tão grandes riscos... e mesmo os que fazemos doutoramentos, repare, já não são os de antigamente, calhamaços que levavam uma vida a preparar. Não há tempo nem ocasião para pensar, para escrever, quanto mais paara incorporar e criar uma "tese", quer dizer, fazer alguma coisa que vá além do já feito antes?
Quando muito, podemos trazer alguns documentos inéditos, esforçadamente procurados, fazer algumas sugestões, aventar hipóteses, sugerir inovações metodológicas, perspectivas. E sobretudo produzir uma coisa legível, com boa apresentação, escorreita e eficaz.
O professor quer pôr-nos a pensar e a fazer em comum coisas novas, coisas nossas, ir da disciplina à indisciplina, e desta ainda ao núcleo mesmo da questão? Isso não será exigir demais?! É preciso um certo equilíbrio.
É que, olhe, nem todos estamos preparados para tal exigência, isso elitiza as coisas, eu por exemlo até trabalho num supermercado, aquela minha colega tem de fazer hamburgers à noite, o outro veio para aqui porque este sempre foi o seu sonho, a arte, o belo, o passado, mas ainda está a ver o que quer, já experimentou várias formas de expressão e ainda não se encontrou. E cada um tem de se achar por si mesmo, não é? Uma pessoa pode ter tudo, família, casa, carro, filhos, todos os confortos e tecnologias, e até ser rico, mas não ter um projecto de vida é muito triste, não é? Além de que a maioria limita-se a sobreviver como pode, isto está mesmo muito mau. Tenho um primo que fez uma banda, mandou uma série de videos para o you tube, é bom naquilo, é criativo, tem jeito, mas não se sente bem, não sei porquê queria ir mais longe, queria ser músico mesmo, com CD's dele à venda na FNAC. É muita ambição. Pelo menos vai de terra em terra a tocar em palco, forte e feio, rodeado de uma malta nice, e curte a dele, meu, prá frente e a abrir!
Aqui, nós, não será melhor adiarmos certas reformas e irmos por partes, devagar, como requer a segurança das instituições, a administração das coisas, os orçamentos e planeamentos, enfim, um mínimo do que pareça ordem, estabilidade? Uma pessoa também precisa das suas distracções, de ver o Dr. House, por exemplo, de consultar os seus sites na net para arejar a cabeça, do convívio pelo convívio, do amor e da amizade, de ser um ser humano, em suma. Há tempo para tudo - com um pouco de jeito, consegue-se.

Com certeza, responde o professor, adiamos a "verdadeira reforma", a universidade com que eu sonhei quando era ingénuo, para um próximo século.
Mas o século ainda agora começou, lembra uma jovem timidamente.
Não tem mal, responde o professor cuja profissão o habituou à resposta pronta, os séculos agora são mais curtos, devido à aceleração das tecnologias.
Vamos lá dar esta indisciplina, ou disciplina, ou cadeira, ou lá o que é isto, que também temos que deixar alguma inovação para as gerações (ou os anos lectivos) que virão a seguir. Além disso apetece ir lá para fora, faz bom tempo, e há este nervoso miudinho que eu sinto instalar-se na assistência, esta vontade mais ou menos urgente de ir fazer outra coisa, qualquer coisa.
Já inovámos imenso, estamos praticamente ao nível do melhor que se faz na Europa. Praticamente. Porque também não podemos mitificar o que vai lá fora, há aqui centros de excelência, nesta aula já estamos a tentar inovar bastante, e com resultados à vista, que eu posso sentir de vez em quando, e apesar de tudo, no feedback das vossas expressões.

E terão ficado assim, parece, todos felizes, a inovar. Imaginemos.
Só houve um pequeno pormenor um pouco estranho: ao passar algumas vezes no corredor, e observar daí o interior através do vidro, um funcionário não viu nunca ninguém na sala durante todo aquele tempo lectivo.
Os alunos faltam com bastante frequência, mas sempre há um ou dois que vêm, que persistem; e o professor, esse, é suposto estar lá.
Ah, lembrou-se o funcionário, isto é capaz de ser aquilo que chamam do virtual, a realidade virtual, pois é, uma coisa que existe mas não se vê. É isso. O mais moderno de tudo.
A sala naturalmente estava cheia. É a reforma, mais uma, está a dar resultados que verdadeiramente nos aproximam cada dia da Europa, cogitou. Que evolução, meu deus, quem diria!
E apressou-se a ir tirar a sua pós-graduação nocturna, a sua formação em exercício, que cada vez a exigência de qualidade e de preparação é maior.
O professor já tinha entrado, e tinha aberto os apontamentos do dia, rejuvenescidos com umas imagens novas e umas bibliografias já desse ano, imagine-se!
O show podia (re)começar, com alguma disciplina - e talvez mesmo indisciplina - bem doseadas. Pode-se brincar com tudo, mas há certas rotinas para cumprir, senão o viver em sociedade (ainda por cima dita civilizada) torna-se impossível.

2 comentários:

Anónimo disse...

Uma vez há muito, muito tempo ouvi dizer que o professor tinha que ser um sedutor, seduzir os alunos de forma a que eles se interessassem pelos assuntos dados na aula. Achei curioso porque pensei que a grande parte do esforço deveria provir do aluno e da sua capacidade própria de se motivar. O insucesso escolar advém talvez da incapacidade de uns e outros (professores e alunos) comunicarem e as causas desta falta de comunicação jazem fundo na mente de cada um. Ora porque o professor é aborrecido, ora porque o aluno é desmotivado e no meio existem um sem número de hipóteses.
Podemos não democratizar o ensino, estudando apenas aqueles com maior motivações e obviamente maior poder económico, certamente que nessa altura o grau de insucesso diminuirá. No entanto se queremos lutar por uma sociedade em que maioria dos seus cidadãos não ande a "dormir" têm os professores de fazer um esforço para ensinar aqueles que devido à sua má vida se tornaram incapazes de se motivarem. A questão deve colocá-la cada professor: será que eu sou democrático? Será que eu quero me preocupar com a massa de "burros" que anda para aí? Ou será que eu não quero saber e apenas quero bons e melhores alunos? Eu sempre achei que um bom aluno numa turma de trinta chegava para fazer a diferença e se o professor tivesse que dar a aula só para ele então deveria fazê-lo e com todo o gosto.

Anónimo disse...

Quem quer preocupar-se com a massa dos "burros"??? Eles ferem a auto-estima docente. Podemos encontrar docentes que se auto-avaliam a níveis tais que considerarão desperdício perder o seu precioso tempo com os tais "burros". Outros poderão reclamar dia e noite por técnicos e mais técnicos especializados, tomando para si apenas a tarefa de trabalhar com os alunos muito bons, os tais, os que gratificam,os que certificam como excelentes, os ditos professores...O sistema não tem paciência nem respeito pelos que menos podem.