Na moderna performance, o artista valoriza tanto o(s objecto(s) dela resultante(s), que até podem ser precários, ou não serem nenhuns, como (e sobretudo) A ACÇÃO que a própria performance constitui. Ela (acção, acto único, irrepetível, não dirigido a um fim, mas a múltiplos, tantos quantos os efeitos que provoca nos participantes/circunstantes) é que é a obra de arte.
A mesma ideia aplicamos ao "artista" e ao "arquitecto" pré-históricos (com a devida vénia, uma vez que estas palavras podem-nos mistificar): era tão importante o acto de construir, de fazer, como a própria obra feita e o que se fazia com ela, dentro dela, à volta dela. Na verdade, provavelmente, nunca havia nenhuma obra feita (por isso a ideia de monumento pode ser falaciosa): havia, sim, um work in progress.
Ora, dando um passo mais, podemos aplicar isso à própria arqueologia: não se trata de identificar, registar, exumar e de recolher objectos ou estruturas para ulterior estudo, só então começando a verdadeira arqueologia.
Não: a arqueologia é toda ela como uma performance, significativa desde o início: é a própria escavação, e a sua HISTÓRIA, que antes de tudo devemos contar, e até MOSTRAR AO PÚBLICO.
Ou seja, descolarmo-nos do pressuposto realista ingénuo, dicotómico, de que há uma técnica que leva a uma interpretação que é a verdadeira obra (monografia, tese, paper, sítio apresentável ao público, etc), para valorizarmos a própria performance do arqueólogo no seu todo, incluindo, está claro, as fases sucessivas em que, por uma questão logística, se vê encadeado.
Assim, o visitante de um sítio deveria poder ver (e talvez essa "entrada de bilheteira" fosse ainda uma das maneiras de financiar os trabalhos - há que pensar em toda uma gestão moderna aplicada à arqueologia, já é tempo!) o acto da própria fabricação do conhecimento arqueológico, dentro de certas normas que são necessárias em qualquer tempo e lugar para não se gerar o caos, como é evidente...
Naturalmente que esta valorização da acção se liga à ideia de Latour de "fabricação dos factos científicos", e que todas estas concepções - que invertem o sentido tradicional da arqueologia, como um "meio" (auxiliar da história, subsidiária disto ou daquilo, etc.) para valorizar o trabalho do arqueólogo em si como uma realidade que deve narrada e descrita como "acto de fabricação" - não podiam surgir senão na fase fluída do capitalismo actual, com a qual estão em íntima relação. Só o pós-modernismo, que é a sua ideologia (sem juízos de valor políticos ou outros) poderia valorizar não as "coisas em si", o produto hirto, acabado, final, mas, bem ao contrário, o processo de fluxo que leva até ele...ou até já nem leva a ele, mas a outros fluxos.
Marx tinha razão: não o Marx dos compêndios e dos "aproveitamentos" de todo o tipo, mas o que ele escreveu mesmo - há uma relação íntima entre os sistemas de produção da realidade e os seus sistemas de representação; uns são solidários dos outros, reforçando-se mutuamente, aparecendo na história coetaneamante.
A ideia de fluxo como leit motiv de quase todos os discursos actuais só se pode perceber em relação com a fluidez dos capitais que passam ao lado dos Estados, com rapidez fulgurante permitida pela novas tecnologias de comunicação.
Mas, já agora, o grande capital não deseja a diluição dos Estados, desde que tenha os seus off-shores e possa fazer os seus negócios segundo as leis que para si próprio criou e constantemente recria a seu bel-prazer, "rindo-se" do afã dos governos.
Ele fica com a carne, e os Estados, os seus governos, e nós, contribuintes, que mantemos isto tudo (os Estados com os nossos impostos, e o sistema em geral com a nossa incapacidade de o ultrapassar, obsoletas que estão as ideas revolucionárias), com os ossos (v. David Harvey, The Limits to Capital, Londres, Verso, 2ª ed. 2006).
Veja-se a questão das grandes multinacionais turísticas: exploram o planeta todo e vendem-no como um produto (incluindo, está claro, a sua arqueologia), mas não dão um chavo para a manutenção das investigações. E há lucros fabulosos - o turismo é a "indústria" que mais cresce...
Quando muito, a platónica UNESCO (melhor que nada) lá vai fazendo umas campanhas em prol de um monumento ou outro do terceiro mundo... mas o património, a obra que custa dinheiro, fica a cargo dos Estados, quer dizer, de todos nós, claro! E como não há dinheiro... o melhor é irmos pensando em copiar os capitalistas inteligentes, seguindo-lhes a filosofia de gestão.
Por mim não me importo (até gosto) de ser fotografado por turistas no sítio arqueológico enquanto escavo, desde que não façam muito barulho, se mantenham a uma distância razoável, e desde que tenhamos uma infra-estrutura de acolhimento desses visitantes... prefiro isso a ter de parar por falta de verba, como está prestes a acontecer por carência de apoios que este país fornece, por exemplo a uma pessoa com 40 anos de arqueologia como eu... Enfim - sou um entre muitos a sofrer na pele esta asfixia, esta falta de perspectivas na manutenção de projectos, para já não falar nos jovens que andam nas obras a fazer arqueologia a martelo, numa espécie de produção "fast past".
(Atenção jovens que trabalhais nas emergências, não vos enganeis: com estas palavras estou a defender-vos, e não estou a assumir qualquer posição académica anti-empresas, nem nada disso. É que algumas pessoas estão sempre sequiosas de ler o que se não escreveu para polemizar em torno de imaginações suas, o que só nos divide, profissionalmente falando, afastando do tema principal. E eu sou um formador de profissionais.)
Até admito - e de que maneira - que alguns daqueles "turistas" de que falava, desde que não venham dar mais despesa e confusão, participem nos trabalhos, devidamente triados depois de uma selecção de candidatos... trabalhos esses que podem constituir uma Summer School, uma acção de formação creditada.
Temos de nos adaptar aos tempos, na acção e na perspectiva. O mal às vezes não está na sociedade em que vivemos, e contra a qual não vale a pena esbracejar numa atitude vã (quer dizer, em actos que não têm sequência, porque manter uma atitude crítica e uma acção protestante é sempre fundamental... acomodados mas não tanto!).
O mal está em sermos na prática colocados na margem dessa sociedade, vendo a arqueologia levar migalhas do que vai para a História, Herança cultural, e outros campos, eles próprios já muito desfavorecidos em relação às ciências de aplicação considerada lucrativa. Quando as leva, porque por vezes nem migalhas há...
Se as câmaras não podem, muitas delas, financiar a investigação; se as universidades vão para o sistema de Bolonha sem por vezes terem meios para pôr uma equipa de arqueologia em campo, a coisa complica-se... com as exigências actuais deste domínio de investigação, que é mais caro do que produzir filosofia ou poesia. Ou fazer uma performance barata, adaptada aos tempos... Naturalmente que a solução pode vir de parcerias, e de uma lei do mecenato renovada, que não sirva só para o Estado subsidiar grandes eventos, mas também contemple o tecido social no seu todo.
Já alguém pensou que em muitas localidades do interior, onde se faz arqueologia, é esta que as põe no mapa dos eventos culturais actuais? Que leva aí pessoas de várias partes da Europa, como voluntários de trabalho ou visitantes?
Cara Isabel Pires de Lima, querida amiga e colega, Exma Ministra da Cultura, olha um pouco mais para a arqueologia... Olha que isto bem gerido e programado até dá lucro e boa imprensa! Um abraço desde o Porto!
Caro amigo João Pedro Ribeiro, sub-director-geral do IGESPAR, faz finalmente um milagre e olha por isto... e bate também à porta do Senhor Ministro Mariano Gago, para que ele de uma vez se puder ordene que a arqueologia deixe de ser um domínio menor, metido, entalado na FCT - que tem pessoas tão competentes à sua frente - entre a História e a Herança Cultural!
Exmo Ministro e Caro Amigo Mariano Gago, a nossa arqueologia merece mais, uma autonomia maior no financiamento por parte do Estado! Dêem-nos só um pouco de alento, e faremos maravilhas, porque há muita generosidade por parte da maioria dos arqueólogos e dos candidatos a tal.
Fazemos muito por este país, muitos de nós trabalham duramente para se equipararem aos seus colegas europeus, em nada temendo comparações e avaliações... mas por quem nos saiba avaliar, naturalmente.
O que há é pouco apoio, poucas bolsas, e por vezes instala-se o desalento. E o desalento é o pior que há! Temos de manter a irreverência e a força de vontade de mudar isto que foram bandeiras da nossa geração!
A mesma ideia aplicamos ao "artista" e ao "arquitecto" pré-históricos (com a devida vénia, uma vez que estas palavras podem-nos mistificar): era tão importante o acto de construir, de fazer, como a própria obra feita e o que se fazia com ela, dentro dela, à volta dela. Na verdade, provavelmente, nunca havia nenhuma obra feita (por isso a ideia de monumento pode ser falaciosa): havia, sim, um work in progress.
Ora, dando um passo mais, podemos aplicar isso à própria arqueologia: não se trata de identificar, registar, exumar e de recolher objectos ou estruturas para ulterior estudo, só então começando a verdadeira arqueologia.
Não: a arqueologia é toda ela como uma performance, significativa desde o início: é a própria escavação, e a sua HISTÓRIA, que antes de tudo devemos contar, e até MOSTRAR AO PÚBLICO.
Ou seja, descolarmo-nos do pressuposto realista ingénuo, dicotómico, de que há uma técnica que leva a uma interpretação que é a verdadeira obra (monografia, tese, paper, sítio apresentável ao público, etc), para valorizarmos a própria performance do arqueólogo no seu todo, incluindo, está claro, as fases sucessivas em que, por uma questão logística, se vê encadeado.
Assim, o visitante de um sítio deveria poder ver (e talvez essa "entrada de bilheteira" fosse ainda uma das maneiras de financiar os trabalhos - há que pensar em toda uma gestão moderna aplicada à arqueologia, já é tempo!) o acto da própria fabricação do conhecimento arqueológico, dentro de certas normas que são necessárias em qualquer tempo e lugar para não se gerar o caos, como é evidente...
Naturalmente que esta valorização da acção se liga à ideia de Latour de "fabricação dos factos científicos", e que todas estas concepções - que invertem o sentido tradicional da arqueologia, como um "meio" (auxiliar da história, subsidiária disto ou daquilo, etc.) para valorizar o trabalho do arqueólogo em si como uma realidade que deve narrada e descrita como "acto de fabricação" - não podiam surgir senão na fase fluída do capitalismo actual, com a qual estão em íntima relação. Só o pós-modernismo, que é a sua ideologia (sem juízos de valor políticos ou outros) poderia valorizar não as "coisas em si", o produto hirto, acabado, final, mas, bem ao contrário, o processo de fluxo que leva até ele...ou até já nem leva a ele, mas a outros fluxos.
Marx tinha razão: não o Marx dos compêndios e dos "aproveitamentos" de todo o tipo, mas o que ele escreveu mesmo - há uma relação íntima entre os sistemas de produção da realidade e os seus sistemas de representação; uns são solidários dos outros, reforçando-se mutuamente, aparecendo na história coetaneamante.
A ideia de fluxo como leit motiv de quase todos os discursos actuais só se pode perceber em relação com a fluidez dos capitais que passam ao lado dos Estados, com rapidez fulgurante permitida pela novas tecnologias de comunicação.
Mas, já agora, o grande capital não deseja a diluição dos Estados, desde que tenha os seus off-shores e possa fazer os seus negócios segundo as leis que para si próprio criou e constantemente recria a seu bel-prazer, "rindo-se" do afã dos governos.
Ele fica com a carne, e os Estados, os seus governos, e nós, contribuintes, que mantemos isto tudo (os Estados com os nossos impostos, e o sistema em geral com a nossa incapacidade de o ultrapassar, obsoletas que estão as ideas revolucionárias), com os ossos (v. David Harvey, The Limits to Capital, Londres, Verso, 2ª ed. 2006).
Veja-se a questão das grandes multinacionais turísticas: exploram o planeta todo e vendem-no como um produto (incluindo, está claro, a sua arqueologia), mas não dão um chavo para a manutenção das investigações. E há lucros fabulosos - o turismo é a "indústria" que mais cresce...
Quando muito, a platónica UNESCO (melhor que nada) lá vai fazendo umas campanhas em prol de um monumento ou outro do terceiro mundo... mas o património, a obra que custa dinheiro, fica a cargo dos Estados, quer dizer, de todos nós, claro! E como não há dinheiro... o melhor é irmos pensando em copiar os capitalistas inteligentes, seguindo-lhes a filosofia de gestão.
Por mim não me importo (até gosto) de ser fotografado por turistas no sítio arqueológico enquanto escavo, desde que não façam muito barulho, se mantenham a uma distância razoável, e desde que tenhamos uma infra-estrutura de acolhimento desses visitantes... prefiro isso a ter de parar por falta de verba, como está prestes a acontecer por carência de apoios que este país fornece, por exemplo a uma pessoa com 40 anos de arqueologia como eu... Enfim - sou um entre muitos a sofrer na pele esta asfixia, esta falta de perspectivas na manutenção de projectos, para já não falar nos jovens que andam nas obras a fazer arqueologia a martelo, numa espécie de produção "fast past".
(Atenção jovens que trabalhais nas emergências, não vos enganeis: com estas palavras estou a defender-vos, e não estou a assumir qualquer posição académica anti-empresas, nem nada disso. É que algumas pessoas estão sempre sequiosas de ler o que se não escreveu para polemizar em torno de imaginações suas, o que só nos divide, profissionalmente falando, afastando do tema principal. E eu sou um formador de profissionais.)
Até admito - e de que maneira - que alguns daqueles "turistas" de que falava, desde que não venham dar mais despesa e confusão, participem nos trabalhos, devidamente triados depois de uma selecção de candidatos... trabalhos esses que podem constituir uma Summer School, uma acção de formação creditada.
Temos de nos adaptar aos tempos, na acção e na perspectiva. O mal às vezes não está na sociedade em que vivemos, e contra a qual não vale a pena esbracejar numa atitude vã (quer dizer, em actos que não têm sequência, porque manter uma atitude crítica e uma acção protestante é sempre fundamental... acomodados mas não tanto!).
O mal está em sermos na prática colocados na margem dessa sociedade, vendo a arqueologia levar migalhas do que vai para a História, Herança cultural, e outros campos, eles próprios já muito desfavorecidos em relação às ciências de aplicação considerada lucrativa. Quando as leva, porque por vezes nem migalhas há...
Se as câmaras não podem, muitas delas, financiar a investigação; se as universidades vão para o sistema de Bolonha sem por vezes terem meios para pôr uma equipa de arqueologia em campo, a coisa complica-se... com as exigências actuais deste domínio de investigação, que é mais caro do que produzir filosofia ou poesia. Ou fazer uma performance barata, adaptada aos tempos... Naturalmente que a solução pode vir de parcerias, e de uma lei do mecenato renovada, que não sirva só para o Estado subsidiar grandes eventos, mas também contemple o tecido social no seu todo.
Já alguém pensou que em muitas localidades do interior, onde se faz arqueologia, é esta que as põe no mapa dos eventos culturais actuais? Que leva aí pessoas de várias partes da Europa, como voluntários de trabalho ou visitantes?
Cara Isabel Pires de Lima, querida amiga e colega, Exma Ministra da Cultura, olha um pouco mais para a arqueologia... Olha que isto bem gerido e programado até dá lucro e boa imprensa! Um abraço desde o Porto!
Caro amigo João Pedro Ribeiro, sub-director-geral do IGESPAR, faz finalmente um milagre e olha por isto... e bate também à porta do Senhor Ministro Mariano Gago, para que ele de uma vez se puder ordene que a arqueologia deixe de ser um domínio menor, metido, entalado na FCT - que tem pessoas tão competentes à sua frente - entre a História e a Herança Cultural!
Exmo Ministro e Caro Amigo Mariano Gago, a nossa arqueologia merece mais, uma autonomia maior no financiamento por parte do Estado! Dêem-nos só um pouco de alento, e faremos maravilhas, porque há muita generosidade por parte da maioria dos arqueólogos e dos candidatos a tal.
Fazemos muito por este país, muitos de nós trabalham duramente para se equipararem aos seus colegas europeus, em nada temendo comparações e avaliações... mas por quem nos saiba avaliar, naturalmente.
O que há é pouco apoio, poucas bolsas, e por vezes instala-se o desalento. E o desalento é o pior que há! Temos de manter a irreverência e a força de vontade de mudar isto que foram bandeiras da nossa geração!
1 comentário:
" (...)Por mim não me importo (até gosto) de ser fotografado por turistas no sítio arqueológico enquanto escavo, desde que não façam muito barulho, se mantenham a uma distância razoável, e desde que tenhamos uma infra-estrutura de acolhimento desses visitantes... prefiro isso a ter de parar por falta de verba, como está prestes a acontecer por carência de apoios que este país fornece, por exemplo a uma pessoa com 40 anos de arqueologia como eu...(..)"
Por muito que "aceite" que por vezes o "desespero" nos possa colocar e levar a aceitar situações limite... prefiro o fim da arqueologia em Portugal - se é que alguma vez existiu - a torna-la num circo (maior do que o que já é...), ou melhor, num zoo...
julgo que a rentabilização e a colocação/abertura da arqueologia ao publico, massas, ou la o que lhe queiram chamar é imperativa - afinal só elas nos podem financiar e a elas teremos que mostrar "obra" - mas a dignidade da actividade e seus profissionais (e ate amadores) não pode nunca ser posta em causa...
[comentário de mero estudante (desiludido) de arqueologia]
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