quarta-feira, 16 de maio de 2007

Teatro e arqueologia

Foto: Pascal Renoux
Fonte: http://www.pascalrenoux.com
(reprod. autoriz.)

Colóquio Internacional
Lugares do Palco, Espaços da Cidade
1 e 2 de Junho de 2007, FLUP

Intervenção de Vítor Oliveira Jorge

Encenações do passado: coreografia de sítios arqueológicos

resumo


Conceito do senso comum: a vida é um teatro, cada um de nós um actor; e, podia acrescentar-se: se cada um de nós tirasse as máscaras todas, ficaria sem cabeça. Não há uma “verdade” por detrás da máscara, do véu, de um ser humano, nem nunca houve. Não há uma “essência” por detrás da aparência. Não acredito nas generalizações modernas que procuram encontrar “universais”, por exemplo, na expressão facial das emoções. Somos seres da ambiguidade; vivemos no plano do simbólico. É isso que é a base de qualquer encenação, e em particular do teatro: todos (actores e espectadores) participarmos continuamente de uma “verdade” mentirosa e de uma “mentira” verdadeira, que às vezes encenamos sob a forma de espectáculo.
O laço social é criado pela partilha de crenças e de tarefas que ligam as pessoas a uma realidade vivida como natural, e portanto continuamente reproduzida (até certo ponto, pois há momentos de ruptura ou de inovação acelerada) como a única possível. Mas na verdade a(s) fantasia(s), o desejo, é o que conduz o ser humano. E essas fantasias são também a “alma” do teatro formal, quer dizer, do teatro como espectáculo, como objecto para ser visto a certa distância, o que por exemplo já não acontece no ritual ou na performance moderna, onde a divisão actor-espectador se dilui. O teatro é um jogo, uma brincadeira, muito importante, diria vital, porque nela se podem plasmar as nossas ambiguidades, as nossas fantasias, até um ponto praticamente ilimitado, servindo de contraponto às misérias da rotina quotidiana.
Olhar para os seres humanos anteriores à nossa cultura greco-latina, por sua vez de raiz próximo-oriental, isto é, ser um arqueólogo como eu, que se dedica ao “passado pré-histórico”, significa ter estas ideias sempre em mente, senão vou projectar numa humanidade-outra aquilo que é específico da minha cultura ocidental, cristã, moderna, etc. Esse descentramento filosófico, antropológico, é criticamente importante. Por isso perceber o que há de constante e o que há de contingente na história do ser ambíguo por excelência que é o humano habilita-me a tentar compreender outras humanidades, outras formas de criação (de encenação) da identidade, tanto individual como colectiva. Essa obsessão de compreender o Outro, de representar o Outro, é aliás tipicamente ocidental.
Quando um “sitio arqueológico” é criado para visita pública, como dispositivo comunicacional incluído numa certa paisagem, isso insere-se numa atitude moderna ligada ao turismo, à viagem, ao conhecimento que valoriza muito o visual e a experiência directa, táctil, sensorial, etc. Claro que há aí todo um lastro de ingenuidade sobre a “verdade” do visível e do palpável. Por ser “material”, o objecto, sítio ou paisagem arqueológicos passa por ser a re-presentação de algo acontecido, de uma verdade. Não o é, nem podia ser, porque as categorias de passado, presente e futuro são produtos da nossa imaginação. Mas pode-se fazer uma utilização didáctica dos sítios, por exemplo, mais ou menos séria, dependendo da investigação científica subjacente e da colaboração de especialistas da comunicação no seu sentido mais alargado (que de certo modo tendencialmente somos todos).
Um sítio pode ser “reactivado” por uma performance, mas não no sentido passivo, “decorativo”, de ele ser utilizado como um mero “cenário” estático (como por exemplo quando se monta uma ópera num teatro grego ou romano).
Um sítio pode ser um produto de consumo fácil (o que eu chamo “fast past”), quer dizer, uma mistificação quase “dysneylândica” (com a diferença de que quando vamos a um parque arqueológico podemos julgar estar a ouvir/ver/experienciar a verdade e não a fantasia).
Por fim, a consciência coreográfica de um sitio, a percepção de que a própria intervenção arqueológica num espaço é uma performance, pode-nos ajudar a perceber as múltiplas formas de vivência e de conceptualização, consciente ou inconsciente, verbalizada ou não, que a vivência de um determinado sítio pode eventualmente comportar.
A experiência teatral e a experiência arqueológica (que ambas partem de um património e de uma cultura escrita para a tornar em acto croporal, em vivência física) têm assim, pois, muito em comum, e são dois campos que se podem retro-alimentar mutuamente, para não dizer que se confundem, como hoje acontece aliás em todos os domínios do saber e da experiência. Eu posso sentir-me (e sinto-me) um actor enquanto escavo; qualquer participante numa escavação se pode sentir numa performance; e qualquer visitante de um sítio “vivo” (em estudo, em restauro, em âmbito de ser “explicado” por imensos processos de reactivação, de debate, de interpretação) é ele próprio espectador e até actor, se quiser entrar em interacção com quem ali está, com o que ali está a decorrer.
Para além das meras adições de saberes, hoje o que está em causa é a superação das barreiras entre os saberes, é isso que dá sentido às nossas fantasias de futuro: a possibilidade de abrirmos novas fronteiras, de voltarmos a ser pioneiros num mundo já gasto e explorado, recuperando o sentido, tão tipicamente ocidental, de aventura.


Staging the past: choreography of archaeological sites

abstract


In recent years, to think theatre and archaeology together has become one of the ways of overcoming traditional archaeology, in its positivistic and naive obsession of “rebuilding the past”.
First, the conceptual boundaries of theatre and common life have dissolved. We know that every human action is representation, in the sense that every human being is submerged in the symbolic (in the sense of the French psychoanalyst and philosopher Jacques Lacan). Formal theatre and the representation of each one of us in everyday life is intrinsically ambiguous: that ambiguity, that incapacity of reducing everything to a definitive “explanation” is the very reason of life, of desire, of the capacity for us to fantasize.
Second, any field of knowledge / creative activity is equality able to let us enter into the world of transdisciplinarity that characterizes our present attitude: the dissolution of boundaries. Archaeological sites / landscapes are not fixed settings. Their are enhanced by our own activity of studying them, restoring them, using them for our own good. An archaeologist is an actor as any other social being; and people who participate in this activity (as collaborators or as simple consumers of its products) are actors too. We are all consumers of the “past”, as proposed to us by heritage and tourist industries.
Archaeology should not be considered as a minor partner is this building of modern landscapes, where the symbolic order presents itself as a reality of signs, of “culture values”, full of “place-myths” (John Urry) to be appreciated as public resources.

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