sábado, 19 de maio de 2007

Com o mal do Outro...

"Para quem nasceu na década de 80, é muito mais difícil «chegar» onde «chegaram» o pai e a mãe e muito mais provável «ficar pior» do que «ficaram» o pai e a mãe"

Vasco Pulido Valente, Publico 19/5/2007

Começo já por dizer que não costumo concordar com Vasco Pulido Valente (VPV). Aliás, estou a ser brando, eu geralmente tendo a discordar fortemente com o VPV. Mas quando vi hoje a última página do Publico lembrei-me obviamente de um post que o Vítor colocou aqui há uns dias e que foi alvo de uma longa troca de comentários (a mais longa e participada deste blog).
Tive oportunidade de falar com o Vítor por telefone sobre esta matéria. Penso que o Vítor se esquece de algumas questões quando acusa as novas gerações de uma queixa vã.
Antes de no entanto abordar as queixas dos doutorandos e recém-doutorados (nos quais forçosamente estou incluído, mesmo que o Vítor não o tivesse em mente quando escreveu aquele post) convém esclarecer um ponto. É óbvio que o Vítor passou (e passa) por diversas dificuldades. Trabalhando com ele sei que é essencialmente um lutador. Ele é a imagem das palavras de um colega meu em Coimbra, que me disse que para se conseguir algo é preciso ser chato, muito chato. O Vítor é incomodo porque dá-se ao trabalho e chateia sobretudo quem está estabelecido. Por essas e por outras razões a sua vida não foi fácil.
Contudo, há uma frase que nós conhecemos e que rima bem com o mundo capitalista e individualista em que nos situamos hoje. Dizemos nós em português que: "Com o mal do outro posso eu bem". Pois foi exactamente isso que me lembrei quando li o post do Vítor. Há um erro fundamental na sua argumentação. O seu mal, as suas dificuldades e problemas não o legitimam. A exposição destas questões numa linha que o leva a situar-se num "topos" face aos demais, tornam-se palavras vãs quando o sentido é denunciar determinados comportamentos. A ideia é simples: "Comparem o que eu sofri e comparem o que vocês sofreram". A conclusão para mim é inevitável: Não há comparação.
Quando o Governo Sócrates denuncia os "privilégios" da função pública tende a seguir o mesmo discurso. "Já se comparam com as condições da maioria da classe trabalhadora? Pois é, vocês são uns privilegiados!". Já denunciei no Gundisalvus a perversidade desta comparação.
E parece-me que tudo isto se liga com uma perversidade imensa do mundo em que vivemos. Nunca como hoje tivemos acesso a tanto (argumento máximo de um capitalismo que avança sob a bandeira do progresso). Mas à minha volta eu não vejo progresso. Comparo com os meus colegas que trabalham na arqueologia empresarial e vejo um cenário triste, sem condições. São os jornaleiros do século XXI. Percorrem o país de lés a lés saltitando de empresa em empresa. No seu local de trabalho há uma lei fundamental: o mercado. O Património não está a saque, está em destruição massiva diariamente. Já denunciei tudo isto (e o Vítor também).
Haverá privilegiados? Sim é certo que os há. Há quem por exemplo consiga o sonho de fugir de tudo isto com uma bolsa da FCT e arranjar espaço (financeiro e temporal) para poder de facto trabalhar seriamente em arqueologia. Mas é uma fuga com pernas curtas. Quando termina a bolsa (de oxigénio) volta-se à asfixia do que é Portugal. Muitos seguem um rumo: mudar de país. Essa mudança é o sintoma de que em Portugal os emigrantes tornaram-se um pouco mais qualificados, mas o "salto" continua como a opção real para uma vida com melhores condições.
As Universidades são o espaço vergonhoso pontuado pela imobilidade. Não há lugar para os novos a não ser como clientes pagantes de cursos de licenciatura, mestrado, ou doutoramento. O seu enquadramento na investigação dá-se em redes de clientelas que asseguram a figura do "chefe", mas que não garantem qualquer tipo de qualidade ou inovação (a não ser aquela que o "chefe" permita).
Podia continuar o cenário negro que é a arqueologia, como podia abordar a maioria das outras áreas de investigação. Como sabemos qualidade e inovação não são bem as características deste nosso país.
Poderia dizer que face a de tudo isto me sinto como um privilegiado. Estou numa instituição com uma dinâmica forte, que aposta em mim (embora não me possa conceder nem um dia de licença sabática, muito menos 3 anos). Entrei para ela pouco depois de concluir a licenciatura (directamente após cumprir quatro meses de serviço militar obrigatório, que quase impediram essa mesma entrada). Tive o privilégios de integrar redes europeias de excelência (que me ocuparam o tempo em que devia redigir o meu doutoramento). Vivo numa habitação própria com dois quartos (que custa metade do meu salário, estando endividado para o resto da vida). Possuo um veiculo (de 1993 com um defeito estrutural que me faz gastar mais em pneus que em gasóleo e cujo arranjo custaria o meu salário de 5 meses). Mas este discurso todo, para além de ser apenas um mero exercício de exposição própria, só me ajuda a perceber como o meu privilégio apenas depende de com quem me comparo e como me comparo. É absolutamente idiota.
No fundo isto parece-me aquele sketch do Gato Fedorento, do concurso de velhas para ver quem sofre do maior mal.

Dizer que esta é uma geração de privilegiados é perverso. Retirar o poder de alguém se queixar é mais perverso ainda.
Quem hoje tem 30 anos não viveu com o fascismo, mas também não sabe o que foi viver o 25 de Abril. Não pode entrar nessa aspiração de construir um Portugal de novo. Vive apenas nesse mundo de clientelas chefiadas por quem herdou o poder após a Revolução.

Mais uma vez penso que se percebe que só o capital beneficia com o discurso dos privilegiados. É que assim tem sempre uma desculpa para se justificar: "Têm de lutar pela vida meus amigos. É montar empresas, sobreviver, comer ou ser comido. São as regras do jogo. Lutem contra os interesses instalados. Tirem-nos de lá. Trabalhem!". Tudo muito bem premiado com gadgets, móveis, arte e luxo, alicerçado em crédito e exploração.
A defesa de qualquer outro modelo torna-se a defesa do poder instalado. Os comunistas lembram-se decerto bem de como eram acusados pela direita de defenderem o estado "do faz-nenhum". O capital sempre soube pintar a contestação de defesa de interesses instalados (não é essa a acusação que é feita aos sindicatos?).
Como todos sabemos, esta defesa da diferenciação positiva, meritrocracia selvagem, é a máscara de uma sociedade de privilegiados. Após a queda do Bloco, todos se rendem à ideia de que este é o único mundo possível. Perverso como o capitalismo sabe tão bem ser.
Foi o VPV que uma vez afirmou: "Vivemos num mundo perigoso". Pois é, vivemos mesmo num mundo perverso e perigoso. Afinal concordo mais com ele do que eu pensava.

14 comentários:

Anónimo disse...

Gosto apenas de comentar aquilo com que não concordo. Ao lê-lo sinto que devo fazê-lo mesmo concordando. De facto todos temos o direito de nos queixarmos e ser-nos retirado esse direito é retirar todos os outros. Quando alguém se queixa podemos ter várias atitudes, ouvir, não ouvir, desconversar, conversar e muitas, muitas outras. Por vezes só ouvimos os nossos próprios problemas levando-nos à surdez. Ainda bem que foi tocado este assunto pois todos devemos lutar contra a adversidade. Afinal "a mais bela flor nasce da adversidade".

Vitor Oliveira Jorge disse...

O Gonçalo, que me ajudou tecnicamente a criar este blog, e é uma pessoa minha amiga, utilizou o facto de ser uma das pessoas que tem acessso directo à postagem, para fulanizar (neste caso em relação a mim) uma questão que parte de uma postagem minha que nem é pessoal, como já acentuei, nem dirigida às pessoas que estão a fazer teses em arqueologia ou noutro domínio qualquer. Ora, ter-lhe-ia ficado melhor (minha opinião subjectiva e contingente, discutível) apresentar esta mesma mensagem como comentário... mas aí (pensou ele) não tenho a visibilidade que obtenho na minha qualidade de colaborador. E assim, lá vai disto. Não tem mal, não há assuntos tabu. O único aspecto negativo - e esse é que me leva a escrever este comentário, e não uma postagem sequer - é que tenho procurado dar ao blog um carácter lúdico mas também uma certa dimensão cultural, filosófica, informativa, de interesse geral. Os blogs são o local ideal dos delírios pessoais e dos desabafos narcíssicos, a que nenhum de nós escapa.Mas há que tentar evitar isso. Desvia-nos do geral, do interessante. Este é um blog sobre os problemas do nosso tempo, vistos por uma pessoa que o pensou criar, e que pediu a ajuda de outra, que é seu colaborador, colaborador e amigo que tem sido muitíssimo generoso e útil nas ajudas que me tem prestado. Mas ponhamos no blog, sff, coisas que não sejam pessoais, e ponhamos nos comentários ou noutras ocasiões (mails, etc.) os desabafos que todos temos que ter, entre amigos. E peço desculpa pelo aspecto um pouco complacente, professoral, paternal talvez, deste pedido... temos tanto que ler e estudar... os leitores feste blog não querem ouvir falar do Vítor ou do Gonçalo em si, mas daquilo que eles têm para oferecer como elemento de interesse para eles, leitores. Não é?...

José Manuel disse...

Infelizmente o que diz hoje VPV, e que eu próprio tenho vindo a dizer há algum tempo, não se aplica apenas ao mundo da arqueologia mas é transversal a toda a sociedade portuguesa.

A grande diferença entre 1974 e 2007 é que no 25 de Abril acreditava-se que "toda a esperança é legítima" e hoje já poucos acreditam nisso.

A ideia duma meritocracia, como alguns acenam, tornou-se uma quimera porque em ultima análise o que conta, como dizem os brasileiros, é o Q.I. ou seja Quem Indica. Ou como dizia um conhecido treinador de futebol ("fair play é uma treta) em Portugal "o mérito é uma treta" porque em última análise um licenciado num curso obscuro numa universidade duvidosa´, desde que com as indicações correctas, terá sempre mais sucesso do que um doutorado brilhante numa universidade de prestígio. Alguns até chegam a ministros...:-)
E por qui que me fico, porque agora na DREN dizer estas coisas dá direito a processos disciplinares. O VPV tem mesmo razão. O mundo está mesmo perigoso :-)

Vitor Oliveira Jorge disse...

O que eu pessoalmente tenho pena é que neste blog, por exemplo, disseminado por postagens múltiplas, existe pelo menos um livro de poemas meu!
Ultimamente, e dialogando com fotos, cuja autorização de reprodução me deu trabalho a obter, tenho tentando fazer alguns ensaios em inglês nesse domínio, muito pobres por certo. O que gostava é que me criticassem, sugerissem alterações,ajudassem a melhorar, nesses e noutros aspectos. É esse o interesse de um blog: pode-se publicar coisas que são partes de um "work in progress" e receber comentários dos outros. Não é elogios... são comentários e contributos substanciais! É isso que ajuda a progredir... nem que venha de um aluno do 1º ano.
A arqueologia para mim é apenas um pequeno ponto num grande, grande mapa... e ao mesmo tempo o único mapa onde num pequeno, pequeníssimo ponto, eu sei alguma coisa, porque a fiz com as minhas mãos. Creio que por vezes na poesia também não terei feito coisas que sejam para esquecer, mas isso terão os leitores e os críticos que dizer, não eu. É até o parecer de muitos poetas que me tem levado a prosseguir nessa actividade. Nesse campo, o domínio da criação literária é EM GERAL mais saudável (parece-me) que o da arqueologia. Acentuo: FALO EM GERAL.

Alexandre disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Alexandre disse...

Por acaso, e já que me é pedida a minha opinião como leitor deste blog, interessava-me mais saber do VOJ a sua opinião sobre a arqueologia em geral do que ficar a conhecer a sua poesia que considero fraca e insonsa (mas isto sou eu, que não percebo nada de poesia). Considero que usar este blog para postar reflexões inócuas, publicitar congressos, apontar referências bibliográficas ou recordar tempos passados da sua vida pessoal - embora plenamente justificáveis como opção do próprio autor, dono e senhor deste espaço - é desaproveitar este meio de comunicação. Esperava mais do VOJ, autor, por exemplo, de um livro de que gostei muito de conhecer ("Olhar o Mundo como Arqueólogo"), tal como esperava mais das grandes figuras de proa - se assim as posso chamar - da arqueologia portuguesa, entre as quais poderia incluir o Jorge Alarcão, o Cláudio Torres, o Francisco Alves, o João Zilhão, o José d' Encarnação e que se demitiram, pura e simplesmente, se tentar mudar o estado das coisas. Estão, é claro, no seu direito - mas compartilharão com todos nós o que quer que possa acontecer ao nosso património cultural (aliás, como pessoa ligada à arqueologia, cada vez mais me convenço que os maiores inimigos do património são os arqueólogos, mais as suas quezilias inter-classe, as suas coutadas, as suas sedes de protagonismo, os seus ciúmes, as suas capelinhas e, sobretudo, a sua má-língua). Por tudo isto, acho refrescante o post do GLV, que deveria fazer parte de uma discussão mais alargada que não está, pura e simplesmente a acontecer.

PS: só compreendi que o GLV não faz parte deste blog embora, contraditoriamente, surga como "contribuidor".

Vitor Oliveira Jorge disse...

Agradeço os comentários do Alexandre - de que neste momento me não estou a recordar, apesar de ter ido consultar os seus blogs, o que é natural - mas chamo a atenção para o facto de nas centenas de postagens deste recente blog estarem também incluídas muitas reflexões sobre arqueologia...até textos longos e até alguns em inglês, para ser entendido por colegas de outros países...mas se quiser aproveitar este espaço para debater um tema, sugira!
Recordo outros livros meus em que não fiz outra coisa (julgo) que discutir questões da arqueologia, que também abordo todas as semanas nas minhas aulas e, às vezes, em conferências. Recordo que, depois do livro que cita, já publiquei outros três: A Irrequietude das Pedras, Porto, Ed. Afrontamento, 2003;
Vitrinas Muito Iluminadas, Porto, Campo das Letras, 2005;
Fragmentos, Memórias, Incisões, Lisboa, Colibri/IELT, 2006... como a feira do livro está à porta...
Saudações!

Alexandre disse...

Sem dúvida que os consultarei (leia-se comprarei), tanto mais que o que citei está devidamente lido e anotado.

Alexandre disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Vitor Oliveira Jorge disse...

É sempre uma satisfação saber que um livro é útil - é uma luta tão grande publicar qualquer coisa... infinitamente mais trabalhoso que ler, pensar e escrever! O pior é arranjar um editor...não publicar apenas nas revistas académicas e às vezes um pouco cinzentas, mas sim ver os livros de arqueoloogias ao lado dos dos outros, nas bancas da feira do livro. É isso que também promove o respeito público pela arqueologia e faz contra-corrente à apresentação da arqueologia como um conjunto de aventuras e de descobertas, o que profundamente nos ridiculariza.

Oberon disse...

Acho que o autor deste blogue pode falar aqui do que quiser; agora como espaço público tem de saber encaixar as críticas porque senão torna-se de facto professoral e paternalista. Acho que se o GLV também figura como contribuidor tem o direito de dizer o que lhe vai na alma. E acertou na mouche... Concordo inteiramente com ele. É preciso tomar o touro pelos cornos e falar (também) no concreto, no real (eu sei que o real é persona non grata, mas que existe, irremediavelmente existe) da arqueologia portuguesa. Andar perdido de citação em citação pensando tocar o Olimpo faz bem ao ego de qualquer um (eu incluído) mas as vezes a 'real politik' amarra-nos ao concreto... A não ser que seja que continuemos com a demissão e fuga em frente para os nossos campos, quintas e coutadas virtuais 'em geral'. Demissão essa, já agora, (assim como as queixas) que não é exclusivo desta ou daquela geração.
Se eu agradeço a VOJ o tempo que nos dispensa para nos entreter (não num sentido perjorativo, mais de entartainment 'arqueólogico' e cosmogónico) também gostaria que ao menor indício de contrariedade não se esconda num mundo virtual que por muito interessante que seja não nos diz nada sobre a 'realidade' e o que é que andamos aqui todos arqueólogos a fazer...

José Manuel disse...

Pelo teor de muitos comentários e dos posts que suscitam mais comentários, dá para perceber que a arqueologia portuguesa está mergulhada numa crise profunda, que existe uma grande apetência para este debate (apesar de muitas vezes ser feito de forma anónima devido ao famoso problema da não-inscrição). A caixa de comentários torna-se assim uma "caixa de desabafos". Só tenho pena que as estruturas associativas, a começar pela "Associação Profissional de Arqueólogos" estejam completamente alheadas destes problemas.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Gostei da expressão "não inscrição" que o Zé invocou... É curioso o carácter opaco de certos blogs...aqui apetece citar Zizek a propósito do cinema,e lembrando Hegel: "(...) a exposição de si e a transparência totais, quer dizer a consciência de que não há conteúdo escondido, tornam por vezes o sujeito ainda mais enigmático." (in Lacrima Rerum, Paris, Ed. Amsterdam, 2005, p. 235 - cap. David Lynch et l' art du sublime ridicule).
Outra coisa curiosa é as pessoas raramente focarem problemas GERAIS, de um ponto de vista de consciência histórico-política... se alguém me indicar um blog inteligente, giro, que abra novas ideias - e há certamente muitos, quero acreditar - agradeço!

Anónimo disse...

"(...) a exposição de si e a transparência totais, quer dizer a consciência de que não há conteúdo escondido, tornam por vezes o sujeito ainda mais enigmático." (in Lacrima Rerum, Paris, Ed. Amsterdam, 2005, p. 235 - cap. David Lynch et l' art du sublime ridicule).
Alguém é completamente transparente? Não creio (duma forma geral...).
Só se for o David Lynch...
A sua obra de tão enigmática torna-se realmente transparente... lol

Ha, e já agora, um blogue é aquilo que o autor quiser, anónimo ou não, (e pode existir nem sequer para ser considerado inteligente ou não...) e nem por isso menos 'inscritivo' (expressão que me parece não ter muito haver com aquilo de que falamos mas pronto).

De qualquer modo, desde que Adão trincou a maçã, à espécie humana esgotaram-se-lhe as ideias novas.