quarta-feira, 9 de maio de 2007

Esquematicamente


Há duas grandes maneiras de encarar, ou de viver, a existência (são essencialmente tendências ou pólos extremados e abstractos, porque todos temos um pouco de cada uma delas...):
- Uma, que eu acho ser a mais optimista, e que consiste em tornar a vida uma "obra de arte" - a dedicação aos outros, às crianças, aos animais, à família, ao chamado "bem público" ou tão só ao prazer hedonista inserem-se aí... as pessoas realizam-se no interior da sua própria acção quotidiana, no desvanecer dos dias.
- A outra é não ter assim tanto respeito ou amor pela vida (afinal de contas não pedimos para nascer, e viver é chato a maior parte do tempo) e tentar fazer neste mundo ao menos uma "obra de arte", algo que seja da ordem do grandioso ou magnífico, que nos sirva de redenção, na tradição judaico-cristã, mesmo que com sacrifício.
A maior parte das (relativamente poucas) pessoas deste segundo tipo fazem o possível por evitar mostrar que o procuraram deliberadamente: quanto mais espontâneo seja o produto do seu "valor", quanto menos rebuscado, mais intrínseco, mais metafísico, mais possuído de poder simbólico (mais "natural" e consuetudinário... há aqui laivos de aristocracia).
Depois de perdermos a crença nos deuses e nos reis, seus representantes na terra - quer dizer, num mundo unificado por uma ordem - ficámos de certo modo à deriva da procura de um modelo que seja o da glória própria; mesmo que apareça como a sua recusa obstinada. Os mais modestos são muitas vezes os mais orgulhosos!
Essa procura tem então as duas versões:
- a da espuma dos dias, em que nos vamos arrastando na flânerie quotidiana (a primeira a que me referi acima);
- e a dos que, dotados de tal busca de satisfação, ou necessidade compulsiva, de fazerem coisas, que chegam a sentir prazer no masoquismo ou na orgia de continuamente perseguirem a obra, o livro, a imagem, a marca que os distinguirá; e muitos destes não podem deixar de saltar fasquias cada vez mais altas...
Verdade se diga que se não fossem eles não tínhamos nada de "humano" para admirar ou contemplar neste mundo, e lá ficariam os do primeiro tipo um tanto descalços...
A propósito, lembrei-me do barroco e da encenação do sublime, do excesso, a que ele está ligado, e em particular a corte de Luís XIV em França e o seu palácio de Versalhes. Vê-se ali o auge de qualquer coisa que anuncia o seu reverso.
Leiam os dois livros acima, que são muito interessantes (um é apenas um dos muitos volumes da célebre obra de Pierre Nora sobre os lugares da memória, e contém dois importantes textos sobre aquele palácio - Paris, Gallimard, 1986); o outro é sobre a construção da imagem de Luís XIV, que acompanhou todo o seu longuíssimo reinado (Vale de Cambra, Caleidoscópio, 2007).
Na época neo-barroca em que nos encontramos, e em que pequenos "luíses XIV" se acotovelam nas ruas, na maioria anónimos, não é desinteressante pensar sobre estas coisas... da representação.
Porque tanto flâneurs, como trabalhadores inveterados e outros, se encontram aí, como actores inescapáveis do teatro do mundo: tentando criar uma imagem. Por muito que se reduzam à sombra: pois não é da sombra que surge o maravilhoso, o fascinante, o totalmente inesperado?
A exacerbação moderna de tudo isto pelo mundo dos media (em que agora por exemplo os próprios emissores da imagem, os jornalistas, se auto-produzem como ícones, aparecendo a anunciar, em tom de auto-elogio glorioso, os seus próprios programas) faz parte de uma longa história... sobretudo nos últimos séculos e no Ocidente.
Aliás toda a gente sabe que a questão das imagens, ligada à ética e ao "modo de vida", e à problemática do verdadeiro e do falso, vem desde as raizes da nossa cultura, tem milénios.

E aqui está uma postagem... algo barroca. Gosto destas volutas, é um prazer de feira popular.

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